Delação premiada
Quanto vale o quê na bandidagem carioca
Paula Scarpin | Edição 27, Dezembro 2008
Quando chegou à esquina da rua da Alfândega, Bruna apertou o passo, deixando Carlos para trás, como combinado. Às três da tarde de uma quarta-feira, era intenso o movimento na maior zona de comércio popular do Rio de Janeiro, o Saara. Ao passar pelo portão da Igreja de São Jorge, escondida pelos camelôs, ela notou um rapaz com pouco mais de 18 anos, acanhado em uma camiseta de basquete americano, exatamente como dissera que viria. Voltou a vista para Carlos, que fingia interesse em um carrinho eletrônico na barraquinha em frente. Tranqüilo, ele fez sinal para que a companheira entrasse na igreja. Bruna percebeu o olhar desconfiado da senhora que vendia velas na entrada. “Já é a terceira vez que marcamos aqui; estamos dando bandeira.”
Carlos entrou na igreja atrás de Bruna, fingindo não notar o rapaz com a camiseta de basquete na porta. Certificou-se de que o lugar era seguro, voltou e perguntou: “Pô, meu irmão, tu sabe que igreja é essa aqui?” Intimidado, o rapaz gaguejou: “São Pedro.” A troca proposital do santo era a senha. Com uma risadinha, Carlos tirou do bolso um bolo de dinheiro preso com um elástico. “Tá aqui a recompensa. Pode contar se quiser.” O rapaz agradeceu, escondeu o volume no bolso traseiro e sumiu na multidão.
Na volta para o escritório, Carlos e Bruna já não se chamavam por esses nomes – na verdade, alcunhas adotadas desde que começaram a trabalhar no Disque-Denúncia, há quase dez anos. Por segurança, todos os funcionários são orientados a se apresentarem sob codinome e só contarem onde trabalham para pessoas mais próximas e de extrema confiança, como pais e cônjuges.
Às 11h25 do dia 13 de maio, o garoto da camiseta de basquete discara 2253-1177, sendo atendido pelo funcionário de codinome Haroldo, um dos doze de plantão no horário. Haroldo fez as perguntas de praxe, e preencheu as lacunas. “Esse Sérgio é alto, baixo ou de estatura mediana, senhor?” Extraiu o máximo de informações, e, ao fim da conversa, orientou o interlocutor a anotar um número de protocolo, para acompanhar o andamento da denúncia, que, caso vingasse, resultaria em uma recompensa.
Com os dados preenchidos, o atendente produziu um pequeno relatório, que, como sempre, começava por “Relata que, no endereço citado…” e terminava com “sem mais, pede providências”. Por se tratar de um esconderijo de traficantes em Copacabana, a denúncia do garoto foi cadastrada como urgente e direcionada ao 19º Batalhão de Polícia Militar, responsável pelo bairro. Meia hora após o telefonema, foram apreendidos dois fuzis com carregadores, doze caixas com munições, uma granada de luz e som, um radiotransmissor, 423 pedras de crack, 106 sacolés de cocaína, 85 bolas de haxixe, dezoito comprimidos de ecstasy e quatro tabletes de maconha. Pelo serviço prestado, o denunciante, que provavelmente soube da operação pela tevê, voltou a procurar o Disque-Denúncia.
Uma vez que uma suspeita apresenta resultado, o responsável precisa ligar semanalmente à entidade até que a recompensa seja providenciada. Como apenas 30% da verba que sustenta o Disque-Denúncia vêm dos cofres públicos, o grosso precisa ser bancado por empresas ou doadores particulares, que se responsabilizam pelos pagamentos aos delatores. Quando o dinheiro finalmente chega ao escritório, Bruna combina com o denunciante o local (geralmente público, de grande movimento), além do traje e da senha para o encontro. Por isso, tardou quatro meses desde o primeiro contato para que o rapaz da camiseta de basquete recebesse seus mil reais.
Bandidos e armas, assim como jogadores de futebol, também são escalonados em valores monetários. Na tabela da criminalidade carioca, uma denúncia que resulte na apreensão de um balão vale 300 reais; em uma fábrica de balões, mil reais. Mil também é o valor pago pela localização de um fuzil (pistolas e drogas, no entanto, não valem nada), ou por uma dica que leve ao traficante Gil, gerente do morro do Dendê, descrito no site procurados.org.br como detentor de um “exército com pelo menos 100 homens e, possivelmente, de uma metralhadora Madsen, que tem capacidade para disparar até 550 tiros por minuto”. Por “trabalhar” numa área mais central da cidade, o traficante Nem, chefe da Rocinha, vale 2 mil reais. Já Tota, líder do Comando Vermelho no Complexo do Alemão, supostamente incinerado por rivais em setembro, vale cinco vezes mais. Enquanto a morte não for comprovada, a recompensa continuará vingando. Até hoje, a gratificação mais cara foi de 100 mil reais, oferecida em 2001 por informações que levassem ao paradeiro de Fernandinho Beira-Mar. Como a captura não foi intermediada pela entidade, a quantia não foi desembolsada.
Primeiro a ser criado no Brasil, o Disque-Denúncia carioca surgiu em 1995, a partir de uma conversa entre o publicitário Roberto Medina, que organizou os festivais Rock in Rio, e o empresário José Isaac Peres, que administra uma rede de centros comerciais pelo país. Assustados com os altos índices de criminalidade (Medina havia sido seqüestrado cinco anos antes), os dois reuniram um grupo de executivos e levantaram um nome para coordenar o projeto: o do especulador financeiro José Antônio Borges, o Zeca Borges, que, na época, prestava assistência a empresas em crise.
Quando surgiu, o Disque-Denúncia era uma ferramenta para ajudar a polícia a solucionar casos de seqüestro. Com a redução desse crime, a organização passou também a tratar de outras infrações, como roubo e tráfico de drogas – que, por afetar de forma menos direta a camada mais rica, diminuiu o interesse dos patrocinadores. Hoje, Borges precisa ir pessoalmente às empresas apresentar o projeto e pedir colaborações. Em contrapartida, oferece dossiês sobre determinados crimes ou regiões da cidade. Transportadoras que têm problemas com pilhagem de carga, por exemplo, podem pedir um relatório sobre assaltos a caminhões na Linha Vermelha. Para o Disque-Denúncia, são tempos mais austeros. “Na primeira reunião que fizemos com os empresários, conseguimos arrecadar 1,2 milhão de dólares. Hoje eu não consigo juntar isso em um ano”, queixa-se Borges.