ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
O renascentista de Miraflores
O nariz de Fidel é um problema
Douglas Duarte | Edição 27, Dezembro 2008
O venezuelano Armando Julio Reverón foi um dos principais pintores modernistas de sua época. Seu compatriota Jesús-Rafael Soto, falecido em 2005, ficou notório pelo legado de obras cinéticas. O caraquenho Carlos Cruz-Diez já teve suas peças expostas no MoMA, na Tate Modern e no Centre Georges Pompidou, três templos da arte contemporânea. É considerado hoje um dos maiores artistas plásticos vivos da América Latina.
Mas o quadro mais caro a ir a leilão na Venezuela não foi assinado por nenhum deles, e sim por um diletante, famoso por outras façanhas que não as pictóricas: Hugo Rafael Chávez Frias, apresentador televisivo de verve, cantor bissexto, militar condecorado e presidente em tempo integral da República Bolivariana.
La Luna de Yare foi vendida em setembro a três empresários venezuelanos. Os 550 mil bolívares fortes (cerca de 480 mil reais) desembolsados caíram direto nos cofres do Partido Socialista Unido da Venezuela, empenhado em mais uma campanha. As eleições regionais – que muitos encaram como um novo plebiscito sobre Chávez – ocorreram na segunda quinzena de novembro.
A tela, de 50 centímetros de base por 60 de altura, fez parte do jogo político desde sua criação: foi pintada em 1993, enquanto Chávez esteve preso na Penitenciária de Yare, após um fracassado golpe contra o presidente Carlos Andrés Pérez. Reproduzindo a paisagem gradeada vista de sua cela, o artista pintou um céu negro, uma lua alaranjada, uma guarita de vigilância e dois postes acesos, cada um com sua nuvem de cupins. Embaixo da janela, colocou uma frase do filósofo grego Sexto Empírico, não se sabe se rabiscada na parede original ou se acrescentada apenas na tela: “O moinho dos deuses… mói lento!” A frase está pela metade, parecendo manifestar pouco mais que tédio. O verdadeiro sentido vem à tona quando se conhece a outra parte: “Mas mói muito fino.” É a perfeita expressão de um homem que sabia ter perdido a batalha, mas não a guerra.
Quando a notícia do leilão se espalhou, a intelligentsia local se retorceu em cólicas estéticas. “Não exibiria o quadro no meu museu porque só exponho obras criadas por artistas. E para a minha coleção pessoal não quero isso nem se me for dado”, disse um iracundo Ali Cordero Casal, presidente do prestigioso Museo de Arte Acarigua-Araure. Noves fora as ressalvas às grades (“nota-se certo esforço”, ajuizou mais de um), a maioria fez coro com o artista Ricardo Benaim, que cunhou o termo “cagante” especialmente para descrever a obra. “Chávez é nosso melhor artista conceitual. Se em vez da presidência se dedicasse a fazer performances do que é ser um chefe de Estado, seria convidado para todas as mostras.” Pela pintura? “Pagaria trinta contos.”
Parecia não haver mais caldo a entornar quando o maior crítico de arte do país, Perán Erminy, levantou suspeitas sobre a autoria da obra. Por pior que fosse o quadro, disse, ainda era muito melhor que tudo já feito pelo suposto autor: “Não corresponde em nada à maneira dele pintar. As grades, por exemplo, estão bem feitas, em linha reta, espaçadas com regularidade. Tudo que Chávez desenha fica torto. É uma coisa quase patológica.”
Erminy fala com propriedade. Foi o primeiro – e até onde se sabe, único – curador a montar uma exposição do Chávez pintor, no Museo Salvador Valero, quando ele ainda estava preso. “Eu preparava uma coletiva de artistas populares quando seu pai apareceu com três quadros. Pedi mais alguns para fazer uma individual – me pareceu curioso que um militar golpista tivesse pendores artísticos.” Hoje, justifica sua escolha com o seguinte argumento estético: “A qualidade era muito baixa. Tão baixa que chegava a ser interessante.”
Mas, se não foi Chávez, quem, então, cometeu La Luna de Yare?
O nome salta da língua de Erminy com a rapidez da certeza: Efraín “Chepín” Lopez, pintor militar de 72 anos especializado em cenas históricas. Segundo o crítico, quando Chávez foi eleito e mudou-se para o Palácio Miraflores, encontrou-o pintando telas oficiais num pequeno estúdio. Com o tempo, Chepín teria se tornado seu amigo e preceptor. “Ele se impacientava porque Chávez não seguia suas instruções, e acabava pedindo os quadros para terminá-los. Contente de ver suas obras aperfeiçoadas, Chávez contribuía com sua assinatura.” Erminy diz que o guerrilheiro que expôs no começo dos anos 90 seria incapaz de manejar luz e profundidade da maneira que se vê na tela.
Chepín tem uma versão diferente. “Conheci Chávez há 33 anos, na Escola de Infantaria e Blindados, onde nasceu nossa grande amizade. Às vezes, fazíamos juntos murais em quartéis e coisas assim. Nessa época ele estava iniciando sua formação histórica, filosófica, moral e espiritual. É um ser especial, um coração bondoso.” Sim, mas e o quadro? “Pois é, houve esse crítico que disse que La Luna de Yare seria minha. Não, nunca. Isso é sagrado. O que faço para o presidente é limpar seus pincéis, deixar tudo arrumado no estúdio e dar alguns conselhos.” Ele cita um exemplo: “Outro dia, Chávez me acordou no meio da noite para pedir ajuda com um retrato que está pintando de Fidel. Está tendo problemas com o nariz.” Chepín garante que, desde as primeiras aulas, o exguerrilheiro tem todas as ferramentas para fazer um quadro nos moldes de La Luna. “As linhas, os círculos, os triângulos, tudo, tudo, tudo.”
Influências e estilo do mandatário são outro tema controverso. “É um pintor quase autodidata, popular. Muito espontâneo. Lê muito, muitos livros de pintura, de arte, mas faz sua própria pintura, uma pintura cheia de poesia. Ele é um poeta ingênuo, de muita pureza”, afirma Chepín. O crítico de arte Erminy tem opinião mais cética: “Influências? Não sei se existe alguma”, contesta. “Não é como se ele quisesse fazer algo expressionista ou distorcido. Sai assim involuntariamente. A única coisa que consigo imaginar como influência de Chávez são uns calendários com fotos de chalezinhos suíços muito populares nos vilarejos do interior. Os oito ou nove óleos da mostra que organizei mostravam esse tipo de paisagem.”
Vitupérios ditos e desmentidos expostos, parecia que a polêmica seria tão renhida quanto curta. Foi quando se soube que o preço recorde sequer havia sido pago por um trabalho original: o que estava dentro da moldura vendida aos três empresários era uma cópia fotográfica. Segundo Erminy, “dessas feitas com máquina xérox colorida”. E sequer era a primeira cópia, dada há um ano para o líder cubano Fidel Castro (é razoável supor que ainda adorne seus aposentos em Havana).
A tela original, feita por quem quer que seja, fora vendida dez anos antes ao petro-empresário venezuelano Rafael Tudela, pelo equivalente a 2 mil reais, num leilão para financiar a campanha da primeira eleição de Chávez. A se tomar pelo valor atingido uma década depois, o quadro valorizou 240 vezes, ou 12 000%. Em tempos de nova instabilidade petrolífera, a Venezuela já tem sua salvação.