A nova embaixada-bunker reflete uma tendência urbanística nascida nos Estados Unidos na metade do século XX: a que propõe o parque temático como modelo do mundo capitalista IMAGEM: FERNANDO SERAPIÃO
Bunker King
Às margens do rio Tigre, a mais cara embaixada já construída
Fernando Serapião | Edição 29, Fevereiro 2009
“Bom dia e bem-vindos à nova embaixada americana em Bagdá”, disse o embaixador Ryan Crocker em suas primeiras palavras, na manhã do dia 5 de janeiro passado. Com o sol a pino, a tez avermelhada do representante americano estava ainda mais acentuada. Trajando terno preto e gravata com as cores de seu país, Crocker falou para uma seleta platéia, composta em sua maioria por funcionários da embaixada, militares que a protegem e representantes do governo local.
A embaixada está localizada às margens do rio Tigre, dentro da Zona Verde, a mais segura da cidade. Ocupa uma área equivalente a um terço do Parque do Ibirapuera. Não é só um simples prédio, mas um complexo de quarenta edifícios que constituem o maior conjunto dedicado a representação diplomática já construído no mundo. É também o mais caro: custou 700 milhões de dólares. Lembra um campus universitário, com prédios baixos, conectados por áreas verdes com calçadões de pedestres e ruas para carros.
Arquitetonicamente, ela é insossa. Mesmo o prédio da embaixada – em cor ocre, estruturas metálicas e janelas protegidas por telas antiatentados – é sem graça. Contudo, há um protagonista: o espesso muro de concreto de 4,5 metros de altura que define o perímetro. Áreas fortificadas fazem parte da história da humanidade: os primeiros vestígios de aldeias cercadas por muros são do período Neolítico. Sem as barreiras que protegeram fisicamente cidades de invasões inimigas, as comunidades não teriam evoluído. Grosso modo, todas as civilizações se desenvolveram em ambientes fortificados. Foi só no período Barroco, com a consolidação dos Estados modernos, que as muralhas começaram a desaparecer. E quem deu o exemplo foi Paris, com seus espaços abertos.
Após as apresentações, o embaixador passou a palavra a John Negroponte. “Olhando para essa maravilhosa e magnífica embaixada, aguardo com grande confiança o futuro das relações Estados Unidos-Iraque”, disse Negroponte, que foi o primeiro embaixador do Iraque após a queda de Saddam Hussein. “É aqui que os homens e mulheres, civis e militares, irão ajudar a construir o novo Iraque. É da embaixada que vocês vêem que vamos continuar a tradição de amizade, cooperação e apoio iniciada muito antes da chegada dos dedicados americanos que trabalham no Iraque desde 2003”, afirmou.
Junto com a Guerra Fria, a arquitetura americana ganhou campo: foi o período de expansão de embaixadas ianques pelo globo. Os prédios serviam de peças de propaganda do modelo americano: abertos ao público, boa parte deles tinha estrutura de aço e vidro. Transpiravam liberdade. Foram convocados os melhores projetistas em atuação no país: Walter Gropius criou a de Atenas; Eero Saarinen, a de Londres.
Mas logo as frágeis construções mostraram-se ineficientes para abrigar a diplomacia da grande potência, com interesses em choque com boa parte do planeta. Se um ataque em solo americano sempre foi improvável, explodir carros-bombas diante de embaixadas tornou-se a ação preferencial de inimigos de todos os costados. A (por assim dizer) moda começou com o atentado à representação americana em Saigon, no Vietnã, em 1965.
Como reação, o Departamento de Estado encomendou um estudo sobre a arquitetura das instalações diplomáticas a Bobby Inman, um almirante reformado. O documento do almirante recomendou a fortificação radical de cerca de metade das pouco mais de 250 construções diplomáticas americanas. O relatório ainda concluía que as novas construções deveriam ser fortalezas, a serem edificadas em áreas distantes dos centros urbanos. Com os ataques da Al Qaeda à embaixada de Nairobi, em 1998, veio nova reação: o governo Clinton encomendou outro relatório, dessa vez assinado pelo almirante William Crowe. Em seu texto, ele defendeu que a segurança fosse colocada em primeiro plano, antes das preocupações arquitetônicas. Com o 11 de Setembro, chegou definitivamente a era da embaixada-bunker.
As novas embaixadas têm causado discussão. Para debater o assunto, em setembro passado houve um encontro de profissionais no novo edifício representativo dos Estados Unidos em Berlim. “A segurança é importante, mas como uma sociedade encontra o ponto de equilíbrio entre segurança e liberdade?”, indagou o arquiteto e crítico do Boston Globe Robert Campbell, que participou do simpósio. Uma das saídas que Campbell propõe são construções fortificadas longe dos centros urbanos, tal como indicava o relatório Crowe.
A embaixada de Bagdá recém-inaugurada seguiu em parte essa recomendação: ela é um bunker, mas está no centro da cidade. O site árabe AhlulBayt Islamic Mission vaticinou: “A embaixada dos Estados Unidos será habitada por criminosos cujas mãos estão manchadas com o sangue de milhares. Tal como o muro de Berlim, será derrubada e os pedaços vendidos como lembranças da maior vitória árabe e muçulmana.”
Projetada pelo escritório de Berger Devine Yaeger, de Kansas City, a nova embaixada é quase uma ilha auto-suficiente. O espaço conta com apartamentos para os mais de 1 200 funcionários, centro de compras, salão de beleza, cinema, casa noturna, ginásio esportivo, quadras de tênis e piscina. De certa forma, a construção também reflete a tendência urbanística nascida nos Estados Unidos na metade do século XX: a que propõe o parque temático como modelo do mundo capitalista. Um ambiente controlado e seguro onde tudo se volta para o consumo. Um espaço artificial em que a realidade perde importância, como nos shopping centers e nos condomínios fechados.
O Exército americano tem uma solução para evitar o confinamento: ao invés da embaixada se aclimatar à cidade, que se faça o contrário. Ou seja, transformar toda a Zona Verde em um oásis do consumo, com campos de golfe, lojas chiques, escritórios e hotéis de luxo. Tudo ao lado do prédio da embaixada. O custo seria de 5 bilhões de dólares, a ser financiado por um consórcio internacional. Do lado de fora da Zona Verde, Bagdá teria cara de Bagdá.
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