ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
O tio pelo sobrinho
Exército prendeu e torturou o homônimo
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 30, Março 2009
O mar avança sobre Conceição da Barra, no litoral do Espírito Santo. Pedras enormes amontoadas entre a praia e a orla tentam contê-lo. Perto dali, numa casa de esquina, um senhor de 84 anos que mostra sintomas de demência só pode se mover na cama com o auxílio de uma das filhas são cinco, além de dois homens. Yândara, que mora na casa, é quem toma conta dele no dia-a-dia. Iracema, sua irmã, sobe a voz para se comunicar com o pai: “O senhor se lembra da prisão? Lembra de como bateram no senhor?” João Calatrone responde com grande esforço: “Pará. Pará.” Yândara, Iracema e Penha Calatrone, reunidas na sala, usam a mesma frase para resumir a história: “Ele nunca mais foi o mesmo depois que voltou.”
Em 1974, no dia 7 de setembro, o comerciante João Calatrone foi levado por dois militares à paisana. Morava em Braço do Rio Preto, vilarejo de Conceição da Barra, e estava com 50 anos, 27 deles casado com Naumyr. Naquele Dia da Independência, tinha ido a um município vizinho para o aniversário de um parente. Foi quando chegaram os dois homens. Dona Naumyr explicou que o marido havia saído, mas, como insistissem em vê-lo, um vizinho os levou até ele.
João Calatrone foi preso como subversivo perigoso, membro do Partido Comunista do Brasil. “Não sou eu”, protestou para ouvidos moucos. Fizeram-lhe apenas uma concessão: deixaram que passasse em casa, em Braço do Rio Preto, para se despedir.
Calatrone tinha um sobrinho na guerrilha do Araguaia: João Gualberto, o Jonga. Ninguém dos Calatrone sabia dessas atividades nem mesmo a família direta, que sofria com o sumiço de seu único varão. Em dezembro de 71, Jonga enviara o primeiro e último sinal de vida. Numa carta escrita à mão, dizia que estava em São Paulo e que daria o ar da graça na primeira oportunidade.
Pouco antes de João Calatrone, o falso, ser levado embora, o Exército prendera um dirigente do PCdoB. O homem acabaria por revelar o nome de vários militantes que recrutara ou com os quais mantivera contato. Alguns se tornariam pessoas conhecidas, como os jornalistas Miriam Leitão (O Globo) e Marcelo Netto (assessor do ministro Antônio Palocci na época do “escândalo do caseiro”). O depoimento, guardado nos arquivos do Superior Tribunal Militar, deixa claro que no PCdoB o militante João Calatrone o verdadeiro, com o Gualberto omitido era tido em alta conta: “O depoente lembra ter indicado para o Comitê Central o elemento de nome João Calatrone, estudante de contabilidade de Nova Venécia.”
A polícia saiu atrás e pegou o primeiro Calatrone que encontrou: um comerciante semi-analfabeto de 50 anos, morador de um povoado a 100 quilômetros de Nova Venécia, onde nascera João Gualberto. Era também o único João Calatrone que sobrava: o homônimo havia sido assassinado por uma patrulha do Exército cerca de um ano antes, em 12 de outubro de 1973. Foi um dos guerrilheiros a sofrer degola e ter as mãos decepadas, segundo relatou no mês passado o tenente da reserva José Jiménez, em depoimento à Comissão de Anistia da Câmara.
Calatrone tio foi levado para o 38º Batalhão de Infantaria do Exército, ou Batalhão Tibúrcio, em Vila Velha, por onde passaram muitos presos políticos. “Foi o pior período da minha vida”, diz o médico e ex-governador do Espírito Santo Vitor Buaiz, que, detido por ser simpatizante do PCdoB, ficou preso 46 dias, sem sofrer tortura física. Já Miriam Leitão e Marcelo Netto, então casados, foram torturados duramente. No caso dela, como se tornaria público, com requintes de crueldade.
O primeiro da família a ver João Calatrone na prisão foi o filho Antônio de Pádua. “Ele tinha muita vergonha e muita tristeza por ter sido preso”, lembra. “Não falava muita coisa, não. Era uma revolta calada. Só dizia que tinham feito confusão com o nome dele e o do Jonga.” Tânia, a filha mais velha, também o visitou: “Era um homem arrasado”, disse. “A mudez e a tristeza foram a maneira que ele encontrou de protestar.”
Ao saber da prisão, a família de Jonga prontamente enviou uma fotografia do filho para desfazer o equívoco, mas essa prova não teve efeito imediato. O tio só seria liberado três meses depois, quando o Superior Tribunal Militar, por unanimidade, admitiria erro judiciário e determinaria sua soltura.
João Calatrone voltou outro para casa. Ensimesmou-se. Nunca mais assumiu a frente do seu pequeno comércio. Uma das filhas conta ter ouvido do pai o breve relato de um suplício: ele, nu, com uma gota d’água incessante lhe martelando a cabeça. Nos anos seguintes, o quadro de Calatrone foi se agravando: silêncio, longas crises depressivas, apagões mentais e fugas repetidas para a mata. De dez anos para cá, ele praticamente deixou de responder aos estímulos do mundo.
Dona Naumyr, que morreu há um ano, costumava insistir para que o marido entrasse com uma ação contra o Estado, mas Calatrone, enquanto foi capaz de responder, sempre disse não. Desobedecendo, dona Naumyr escreveu a alguns ministros da Justiça. Os filhos guardaram cópia de uma carta para Ibrahim Abi-Ackel, do governo João Figueiredo, e de uma para Nelson Jobim, do primeiro governo Fernando Henrique. Não deram em nada. Por medo, lerdeza e falta de informação, a família nunca pediu indenização, como permite a lei.
João Calatrone continua deitado, quase imóvel. Daqui a uma meia hora, a filha Yândara vai lhe dar banho e comida. “Foi isso que fizeram com meu pai”, diz. Iracema não soube explicar o que significava o “Pará” de sua resposta gutural.