Marco Aurélio Garcia garante que suporta bem as críticas: “Já que não podem atacar o Lula, que tem 80% de aprovação, atacam o Marquinho aqui. Sou gordo, sou um bom alvo” FOTO: ORLANDO BRITO
O formulador emotivo
Marco Aurélio Garcia se inflama ao atacar Israel, a Globo e os tucanos. E chora ao se lembrar de um bom jantar em Paris e da morte da mulher, ao falar de seu filho e de sua mãe, e ao defender a candidatura de Dilma Rousseff
Consuelo Dieguez | Edição 30, Março 2009
“Lula ama Hugo Chávez, Chávez é muito charmoso”, disse Marco Aurélio Garcia, assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Eram 9 horas de uma abafada manhã em Belém. Ele respondia, em francês, às perguntas de quatro deputados socialistas do Parlamento Europeu que tinham vindo participar do Fórum Social Mundial, o contraponto da esquerda ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.
“O senhor considera a Venezuela uma democracia?”, quis saber Henri Weber, do PS francês. “Claro que sim”, respondeu Marco Aurélio. “É uma democracia pluripartidária, com imprensa livre e oposição ativa.” Os deputados quiseram saber como estavam as relações do Brasil com Estados Unidos, Europa e Japão. “Nunca tivemos relações tão próximas com os Estados Unidos como no governo Lula”, respondeu. O Brasil, ressaltou, foi um mediador vital nas complicadas relações entre George W. Bush e Chávez. “Bush confiava muito em Lula”, disse.
Durante o Fórum, 8 mil pessoas lotaram o Centro de Convenções para saber o que os presidentes Lula, Chávez, Evo Morales, da Bolívia, o paraguaio Fernando Lugo e o equatoriano Rafael Correa pensavam da crise econômica. O brasileiro foi o último a falar. Apesar de ter um discurso escrito à mão, como de hábito Lula falou de improviso. Mas expôs as idéias que Marco Aurélio tinha posto no texto.
“Todos os companheiros temos divergências”, disse Lula. “Evo Morales, quando nacionalizou o gás, tinha gente, aqui no Brasil, que me acusava de frouxo. Eu jamais permitiria que um metalúrgico brasileiro fosse brigar com um índio boliviano. Tivemos divergências com Rafael Correa. Vamos resolvê-las, cada um respeitando a soberania do outro. Eu ando pelo mundo defendendo o Chávez, porque todo o mundo é contra Chávez. Tenho orgulho de ser o presidente da República que mantém, possivelmente, a melhor relação com a Venezuela que o Brasil já teve.”
Quando retornou ao hotel, Marco Aurélio sentou-se no restaurante, pediu uma cerveja e disse, satisfeito: “É impressionante a capacidade de memorização do presidente.” Perguntei para ele por que elogiara tanto o presidente da Venezuela. “Não advogo o estilo Chávez para o Brasil, mas ele tem grandes qualidades e, do ponto de vista pessoal, é uma personalidade encantadora”, comentou. “É um homem sincero, com um voluntarismo extraordinário, que captou os problemas da sociedade venezuelana. Um homem nunca existe fora de suas circunstâncias e Chávez é o resultado do processo político que o cercou.”
Para o assessor presidencial, Chávez marcará a história da Venezuela como Perón marcou a da Argentina. “Gostemos ou não deles, Chávez e Perón ganharam importância porque têm seguidores. Chávez é exuberante, pode ter uma visão da democracia diferente da minha, mas não passará para a história como um tirano. Porque os tiranos não passam para a história. Quem é partidário do Stroessner no Paraguai? Do Videla, na Argentina? Do Médici, aqui? Esses não deixaram nada, só más recordações.”
Rubens Barbosa, embaixador em Washington no governo de Fernando Henrique Cardoso, é um dos críticos do latino-americanismo defendido por Marco Aurélio Garcia. “Essa política é uma bomba de efeito retardado porque ela só funciona com o governo do PT”, disse-me ele. “Não é uma política de Estado e sim partidária, baseada em afinidades ideológicas. Como ficarão as relações do Brasil com esses países quando o PT não for mais governo?”
Diplomatas ligados ao PSDB culpam o assessor do presidente por dificuldades pelas quais o Brasil passou recentemente na América Latina. Seria o caso da invasão da refinaria da Petrobras, na Bolívia, da ameaça do Equador de não pagar sua dívida com o Brasil, e os atuais embates com Fernando Lugo, que quer rever o acordo de venda de energia do Paraguai para Itaipu.
Marco Aurélio tocou nesses assuntos durante um almoço, no Clube de Golfe, em Brasília. “O que nós perdemos na Bolívia?”, questionou. “Nada. Houve uma bravata do Evo? Houve. E só, porque eles nunca deixaram de cumprir o acordo de venda de gás para o Brasil. Um ex-presidente chegou a sugerir que deveríamos ter colocado tropas na fronteira com a Bolívia. Isso é uma estupidez.”
Ele está seguro de que o Brasil agiu de forma igualmente correta nos atritos com o Equador e o Paraguai. “Por que a arrogância desses embaixadores em relação aos nossos vizinhos? Lula dizia: ‘Nunca briguei com Bush e querem que eu brigue com o Evo?’ Nos criticam por causa da nossa relação com Chávez. Mas qual é o problema que tivemos com Chávez?”
Passou então para o ataque, mas sem se alterar: “Fizeram um carnaval com esses episódios. Mas o Celso Lafer, quando era chanceler do Fernando Henrique, foi lá nos Estados Unidos e tirou os sapatos ao passar por detectores de metal. Se esses embaixadores querem ter uma conduta estritamente diplomática, deveriam ter tido outro comportamento no caso do Bustani que foi imolado.” (O embaixador José Maurício Bustani foi forçado a deixar a Diretoria-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas, em 2002, por pressão da Casa Branca.)
Ele disse que a aproximação com os governos latino-americanos de esquerda é produto da necessidade, e não da ideologia: “É claro que agora existe uma solidariedade maior do Brasil com os vizinhos. Não queremos que o país seja uma ilha de prosperidade em meio a um bando de miseráveis. Temos que ajudá-los, sim. Essa é uma visão pragmática. Temos superávits comerciais com todos eles”, explicou.
Citou, novamente, a Venezuela: “Eles importavam até ovos do Brasil. Dissemos a Chávez que a economia venezuelana não podia depender só do petróleo. Que eles tinham que desenvolver sua agricultura até por uma questão de segurança alimentar. Agora estamos exportando granjas, frigoríficos e caminhões. Já os venezuelanos estão criando um agronegócio com a nossa ajuda.”
Dados do governo indicam que as exportações brasileiras para a Argentina, o segundo maior parceiro comercial individual do Brasil, cresceram 720% entre 2002 e 2008 e, para a Venezuela, 510%. Mas também houve um aumento generalizado das vendas para quase todos os países, independente do grau de relacionamento do Brasil com cada um deles. Nos últimos seis anos, as exportações saltaram de 50 bilhões para 197 bilhões de dólares, em 2008. “Esse aumento ocorreu porque o comércio mundial cresceu como um todo”, disse-me o economista Joseph Tutundjian. “A aproximação política não resulta, necessariamente, em aumento de negócios. Tanto que, com a retração mundial da economia, as exportações tendem a ser menores, inclusive para a Venezuela.”
O embaixador Rubens Barbosa vê maquiavelismo na política latino-americana de Marco Aurélio. “O que o governo fez foi se aproximar desses presidentes de esquerda para contrabalançar a política econômica neoliberal que estava praticando aqui”, disse. “A política externa foi a contrapartida para acalmar a ala mais radical do PT.”
Samuel Pinheiro Guimarães é o secretário-geral do Itamaraty. Junto com o chanceler Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia, ele forma o triunvirato que cuida da política externa. Amorim se encarrega das relações com todos os países que não os da América Latina. Foi ele o formulador da estratégia de obtenção de uma cadeira para o Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas, bem como do incentivo das negociações de um acordo no âmbito da Organização Mundial do Comércio. As duas iniciativas fracassaram. Pinheiro Guimarães, nacionalista da velha guarda, administra e supervisiona a formação do quadro de diplomatas. E Marco Aurélio se incumbe da América Latina.
Entre as áspides do Itamaraty, é persistente o rumor de que há uma tensão entre eles. Num café da manhã durante o Fórum em Belém, perguntei a Pinheiro Guimarães o que achava da atuação de Garcia. Após se servir de pães e ovos fritos, ele disse: “O Marco Aurélio não cria qualquer constrangimento para o Itamaraty por causa da sua proximidade com os presidentes sul-americanos. A relação de amizade dele com esses presidentes vem de longa data e só nos ajuda.” Sorrindo, acrescentou: “É natural que o presidente Lula ouça o Marco Aurélio. Eles se conhecem há mais de vinte anos. E ele está na sala ao lado do presidente.”
Perguntei, em seguida, se nos governos anteriores os presidentes tinham um assessor tão influente nas questões externas. Ele pensou e disse que o poeta Augusto Frederico Schmidt, na época de Juscelino Kubitschek, também desempenhara um papel importante na área externa. Algum outro? “Deixa eu pensar”, pediu. “No momento, não recordo de mais ninguém.”
Marco Aurélio foi um dos fundadores do PT e hoje, aos 67 anos, é seu vice-presidente. Quando era assessor internacional do Partido dos Trabalhadores (de 1990 e 2000), ajudou a organizar o Foro de São Paulo, uma reunião de dirigentes de organizações de esquerda da América Latina. Vem daí sua relação com muitos deles. Teve também contato com integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, a maior organização guerrilheira do continente, que se financia por meio do tráfico de drogas e foi responsável por centenas de sequestros. “Era uma época que todo mundo recebia as Farc, e eles participaram do Foro uma única vez”, disse. “Fui um dos que pressionaram para que saíssem. Acho as Farc um movimento completamente equivocado, que optou pelo sequestro e pela ligação com o narcotráfico.”
Ele se aproximou de Lula em 1989, quando o acompanhou na viagem internacional de divulgação da sua primeira candidatura à Presidência. A socialdemocracia alemã pagou quatro passagens na classe executiva, que o PT transformou em oito na econômica. “Eu disse ao Lula que ele tinha que se comportar como estadista”, contou Marco Aurélio. “Aí ele respondeu: ‘Mas estadista não viaja desse jeito.'”
Faziam parte da comitiva o senador Aloizio Mercadante, o cientista político Francisco Weffort, então no PT, Marisa, a mulher de Lula, um fotógrafo e um assessor. O partido tinha fixado o gasto diário em 10 dólares por cabeça. Em Estocolmo, o grupo passou o domingo passeando e acabou num restaurante modesto. “Fomos tomar uma cerveja e o Weffort disse que não podíamos porque ultrapassava a cota de 10 dólares”, relembrou. “Aí o Lula achou demais, ficou furioso. Botou a mão no bolso e disse: ‘Eu pago com o meu dinheiro.'”
Marco Aurélio nasceu em Porto Alegre, “no dia em que a Alemanha invadiu a União Soviética”, como gosta de ressaltar. Seu pai era advogado e alistou-se na Força Expedicionária Brasileira, mas não chegou a ir para a guerra. Sua mãe era funcionária pública. Repetindo o amigo Luis Fernando Verissimo, que conheceu na juventude, quando trabalharam juntos no jornal Zero Hora, ele diz que sua origem é tão classe média “que sua família tem 2,3 filhos”.
Estudou a vida inteira em escola pública, se interessou pela política já no curso secundário e, aos 17 anos, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Cursou filosofia e direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dois anos depois, já como estudante de filosofia e direito, foi eleito para a diretoria da União Nacional de Estudantes e, para desgosto do pai, mudou-se para o Rio. Aproximou-se do Centro Popular de Cultura, o CPC, e ficou amigo do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, com quem escreveu peças de teatro e roteiros de cinema.
Voltou para Porto Alegre em 1964, onde foi preso depois do golpe militar, acusado de ter posto uma bomba no laboratório da universidade. Foi solto pouco depois, quando o verdadeiro culpado apareceu. Em 1967 saiu do PCB por achar que o partido havia se composto com a ditadura. Caiu num limbo político. “Havia uma radicalização, uma grande tendência para a luta armada, para a qual eu era completamente inabilitado”, disse. Partiu, então, para uma pós-graduação na França com a mulher, Elisabeth. É severo consigo mesmo: “Politicamente, foi uma deserção do campo de batalha.”
Em Paris, enquanto estudava na Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais, conversava com militantes de grupos da esquerda latino-americanos. Indisciplinado, jamais terminou sua tese. O casal voltou para Porto Alegre e, no começo dos anos 70, com o aumento da repressão política, foi para o Uruguai. “Ficamos uns dias escondidos na fazenda de uns parentes da minha mulher, no interior do Rio Grande do Sul”, contou. “Um dia, o tio dela nos avisou que iríamos embora dali. Veio um aviãozinho nos buscar na fazenda. Quando descemos no Uruguai e agradecemos, o tio respondeu: ‘Tudo bem, mas lembrem de mim no dia da revolução.'”
Depois, o casal seguiu para o exílio no Chile, onde teve o único filho, Leon. Lá, Garcia dava aulas na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. “Assisti ao golpe da janela do nosso escritório. Os chilenos diziam que haveria resistência e que viria um governo mais à esquerda – quanta bobagem”, disse, sacudindo a cabeça. Com a derrubada do presidente Salvador Allende, foi detido por algumas horas. Exilou-se na embaixada do Panamá, com a mulher e o filho.
Paulo Renato Souza, ex-ministro da Educação de Fernando Henrique e hoje deputado tucano, também trabalhava em Santiago, na Organização Internacional do Trabalho. Foi ele quem ajudou a tirar o filho de Marco Aurélio de lá. “Ele me passou o menino pelas grades do portão da embaixada e eu o levei para a avó”, lembrou Paulo Renato. Garcia se exilou na França e voltou para o Brasil pouco antes da anistia.
Acompanhou as greves de metalúrgicos no ABC paulista, onde nasceu o PT. Em 1980, foi o relator da ata de fundação do partido. Estava em um período de grande entusiasmo quando, aos 38 anos, teve um enfarte. “Achei que era o fim da linha, que estava acabado”, disse. Mas foi convidado pela Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, para organizar acervos do movimento operário que haviam sido comprados na época. “Quando minha mulher entrou pela primeira vez na minha sala e me viu no meio daquela papelada, comentou: ‘Você finalmente descobriu o que queria da vida.'” Apesar de ser considerado um dos intelectuais do PT, ele jamais escreveu um livro sozinho.
Marco Aurélio é baixo, tem olhos claros, barba cortada rente e cabelos grisalhos. Reconhece que está bem acima do peso e que tem dificuldade para controlar o apetite. Ao visitá-lo em seu gabinete, no 3º andar do Palácio do Planalto, observei que ele ficava a apenas alguns metros da sala do presidente Lula. “Próximos, mas não nos vendo muito, como sugere Maquiavel”, ele brincou. Naquele dia, vestia um terno escuro, camisa azul-clara, gravata listrada e – sua marca registrada – suspensório.
A sala, envidraçada do chão ao teto, tem vista para a Esplanada dos Ministérios. É pequena, atravancada de livros, a maioria sobre a América do Sul. Sua mesa está coberta por pilhas de documentos e recortes de jornais. No descanso de tela do computador, fica a foto de seu neto, Benjamin, de 2 anos. Na estante, há duas fotografias expostas de forma bem visível. Uma é dele abraçado a Chávez e ao ex-presidente da Argentina, Néstor Kirchner. A outra é dele abraçado ao ministro Celso Amorim. “É a prova das excelentes relações que mantenho com ele”, explicou, sério.
Estava eufórico naquela manhã. Um artigo no jornal Valor Econômico elogiava sua atuação na política externa. A cada um que lhe telefonava, recomendava a leitura do artigo. Nos últimos dias, ele havia sido criticado por ter chamado a invasão israelense da Faixa de Gaza de “terrorismo de Estado”. Ele não voltou atrás no que afirmou, mas se explicou: “Se um cara entra aqui com um cinturão, detona uma bomba e mata dez pessoas, é chamado de terrorista. Mas e quando Israel bombardeia duas escolas da ONU e mata dezenas de crianças não é terrorista? Se não é terrorismo, então é crime de guerra. Temos que parar com essa diplomacia de punhos de renda. Os judeus têm que perder o hábito de achar que qualquer crítica é uma manifestação contra a existência de Israel.”
Embalado, continuou: “Se querem reconstituir a história, estou disposto a reconstituir. É a minha profissão. Israel apoiou durante todo o tempo o regime do apartheid na África do Sul. Apoiou todo o tempo a ditadura de Somoza, na Nicarágua, e a de Salazar, em Portugal. Não venham agora querer bancar os bacanas para o meu lado.”
Mais tarde, em um restaurante no centro de Brasília, o assessor presidencial deixou transparecer que talvez as críticas o tivessem abalado profundamente. Antes de pedir o cardápio, narrou uma visita de Luis Fernando Verissimo à sua casa, durante o exílio em Paris. O escritor comeu e bebeu tão bem que, ao tomar um táxi de volta ao hotel, deu boa-noite a um cachorro que estava no banco ao lado do motorista. Verissimo passou a usar o termo “de dar boa-noite a cachorro” para designar um excelente jantar.
Ao contar o caso, lágrimas lhe vieram ao rosto. A partir daí, chorou quase todo o almoço. Foi chorando que falou da morte da mulher, em 1991, em um acidente de carro, na Paraíba. “Foi um choque para mim, nós éramos muito ligados”, recordou. Não voltou a se casar. “Tive muitas mulheres interessantes, mas nenhuma me suportou”, disse, misturando riso e lágrimas.
Chorou também ao falar do filho, psiquiatra em São Paulo. Chorou ao falar da mãe, de 91 anos, que mora em Porto Alegre: “Ela me manda, por e-mail, todos os dias, as notícias que me interessam. Mas só as boas. Digo a ela para mandar as ruins também, mas ela não tem coragem.” Ainda que contasse histórias divertidas, chorou também ao falar de amigos do tempo do exílio. Perguntei a ele de onde vinha toda aquela emoção. “Acho que sou um sentimental”, respondeu. E garantiu suportar bem as críticas. “Já que não podem atacar o Lula, que tem 80% de aprovação, atacam o Marquinho aqui. Sou gordo, sou um bom alvo.”
Disse que só se abala de verdade quando os ataques dirigidos a ele atingem o governo. Foi o que ocorreu com um gesto seu, capturado por uma câmera da Rede Globo, dias depois da morte de 199 pessoas na queda de um avião da TAM, no aeroporto de Congonhas. Boa parte da imprensa culpava o governo pelo acidente, em função da balbúrdia provocada pela falta de controladores nos aeroportos, e também porque a Infraero teria liberado a pista com problemas sem inspecioná-la.
Três dias após o desastre, o Jornal Nacional colocou no ar, pela primeira vez, a versão de que a queda fora causada por um defeito no avião, agravado pela ação dos pilotos. Marco Aurélio assistia ao jornal na sua sala, no Palácio do Planalto, acompanhado do assessor Bruno Gaspar. Sua reação, ao constatar que o governo não fora o responsável, foi fazer o gesto com as mãos: top, top, top.
A Globo botou a imagem no ar. No dia seguinte, jornais a estamparam e ela circulou intensamente pela internet. Garcia foi acusado de ser insensível, de fazer troça dos mortos, de raciocinar exclusivamente em função dos interesses do governo.
Quando falamos do assunto, sua expressão endureceu. “Aquilo foi uma das coisas mais sórdidas que montaram contra mim”, falou. “Antes que houvesse qualquer evidência, começaram a culpar o governo. Ficamos numa tensão muito grande, pois o caso envolvia a morte de cerca de 200 pessoas. A Folha de S.Paulo chegou a publicar um artigo que acusava o presidente de assassino.”
Com a reviravolta nas investigações, prosseguiu, “a Globo não teve como esconder a notícia e acabei fazendo aquele gesto, mas lógico que não era uma comemoração, era um desabafo. Era como seu eu dissesse para a Globo: ‘Vão para a PQP, seus irresponsáveis.’ Eu estava sob enorme tensão, na minha sala, em privado, com meu assessor”.
Relatou, a seguir, que uma repórter da Globo ligou para ele pouco depois do gesto e travou-se o seguinte diálogo:
“E aí, vocês estavam vendo o Jornal Nacional? Também estão comemorando?”, ela perguntou.
“Como comemorando? Foi uma tragédia”, respondeu o assessor.
“Está todo mundo aqui embaixo, na sala de imprensa, comemorando a Globo ter quebrado a cara”, disse a repórter.
Em seguida, a jornalista teria avisado que a cena havia sido gravada e iria ao ar.
Marco Aurélio encerrou a sua lembrança do episódio comentando: “Eu poderia ter dito que não estava vendo o Jornal Nacional. A cena não autoriza dizer que fiz o gesto no momento da reportagem sobre o acidente. Eu podia ter dito que o gesto fora para dizer que a seleção brasileira de vôlei tinha sifu no jogo contra as cubanas. Mas, não: admiti que estava vendo o jornal naquele momento. E a Globo veiculou aquela coisa como se eu fosse uma pessoa absolutamente insensível.” Ele falava com rancor.
Na manhã seguinte, Garcia foi ao gabinete do presidente e pediu demissão. Lula não aceitou. “O que ele lhe disse?”, perguntei. “Não posso contar”, respondeu. “Mas, naquela noite, o presidente me chamou para jantar com ele no Alvorada.”
Ele mencionou ter sido muito hostilizado até por pessoas do PT. Porém, recorda que ficou impressionado com a solidariedade que recebeu de onde menos esperava, o Itamaraty: “Uns quinze embaixadores me ligaram para se solidarizar.” Até hoje, o gesto é imediatamente associado a ele.
Marcelo Cerqueira é um bem-humorado advogado carioca que foi exilado em Santiago do Chile, onde dividiu um apartamento com Marco Aurélio. Quando lhe telefonei, em fevereiro, para entrevistá-lo sobre o seu ex-companheiro, ele disse: “Tem anos que não falo com ele. Era uma pessoa muito gentil, muito agradável. Agora ficou com essa imagem de velho carrancudo por causa daquele episódio lamentável do acidente da TAM…”
Chico Alencar, deputado fluminense que saiu do PT para fundar o Psol, me disse que Garcia “é um dos melhores quadros do PT. Está sempre disposto a negociar, sempre disposto a ouvir. Nunca esteve envolvido com nenhum problema ético”. Em seguida, sem ser perguntado, lembrou o caso da TAM: “Aquilo surpreendeu. Não fazia parte do gestual dele. Nunca o vi dizer sequer um palavrão.”
Marco Aurélio foi coordenador da campanha de reeleição de Lula, em 2006. A primeira dificuldade que encontrou então, no terreno político, foi tratar do escândalo do mensalão, os milhões de reais pagos a parlamentares, muitos deles do PT, para votar a favor de propostas do governo. Ele diz que o mensalão, dessa forma, não existiu. Mas admite que o dinheiro existiu, era proveniente do caixa dois de campanhas, e nessa condição foi distribuído a parlamentares.
“Por que a oposição não transformou as denúncias num processo de caixa dois?”, ele se perguntou. E analisou: “Por uma razão muito simples: o caixa dois é um procedimento usual no sistema político brasileiro, praticado por todos os partidos.” Eu perguntei se ele considerava o caixa dois um mal menor. “Não, eu acho isso uma excrescência. Me bati, na direção do PT, para que apressássemos a reforma política. Sou a favor de financiamento de campanha, de lista partidária. Mas faço uma autocrítica: a reforma não passou, entre outras coisas, por resistência do PT.” A sua abordagem do mensalão foi a que prevaleceu na campanha da reeleição.
A segunda formulação importante de Marco Aurélio na campanha foi a do ataque às privatizações. “Me orgulho de ter deixado claro que o que estava em jogo eram duas propostas completamente diferentes de governo”, ele me esclareceu. “O PSDB tentava mostrar a imagem de que não havia diferença programática entre Lula e Geraldo Alckmin. Eu destapei isso.” A sua estratégia foi dizer que num governo do PSDB haveria privatizações, corte de gastos, baixo crescimento econômico e desemprego.
“Os tucanos disseram que foi terrorismo, marketing de guerrilha. A Veja chegou a me chamar de terrorista. Mas nós tínhamos uma série de evidências que mostravam que Alckmin não daria continuidade à política social de Lula”, disse. “Havia documentos circulando que mostravam concretamente que eles iam retomar o programa de privatizações. Havia também declarações de economistas ligados ao candidato contra o aumento do salário mínimo e chamando os programas do governo de assistencialistas.” E, prosseguiu, como se ainda estivesse em campanha: “Pelo amor de Deus, o Alckmin é um tremendo conservador, um cara ligado ao Opus Dei! A política dele era de corte de gastos, de juros altos. E queriam compará-lo ao Lula? Nossa estratégia foi acertada porque eles perderam, no segundo turno, 3 milhões de votos.”
Encontrei Eduardo Jorge Caldas, o vice-presidente executivo do PSDB, no saguão do aeroporto, em Brasília. Ele passara a manhã daquele dia discutindo com assessores como poderiam se proteger contra o “terrorismo na internet”, que ele garante ter havido na campanha de 2006. Enquanto aguardava a chamada de seu vôo, contou que houve uma ação orquestrada dos petistas contra Alckmin. “Eles entupiram os e-mails com mensagens mentirosas”, disse Eduardo Caldas, que era um dos coordenadores da campanha do candidato tucano. Eu perguntei se entre as propostas de Alckmin estariam a privatização da Petrobras e a do Banco do Brasil, como me afirmara o assessor presidencial. “Quero que ele me prove em que parte do programa de Alckmin isso estava escrito”, respondeu, irritado.
A verdade é que, durante todo o primeiro mandato de Lula, era difícil marcar as diferenças entre a sua política econômica e a do governo de Fernando Henrique. O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, seguiram o receituário ortodoxo: corte de gastos e juros altos. Na época, a posição de Marco Aurélio era ambígua: ele sustentava dentro do governo que era contra a política econômica, mas não a combatia em público.
“Talvez aquelas fossem as medidas que teriam que ser tomadas”, afirma ele hoje. “O erro do governo foi tentar transformar necessidade em virtude. É remédio amargo? Tem que tomar? Tudo bem, mas não precisa dizer que é puro malte. Tinha gente na equipe econômica que achava que o Brasil não podia crescer mais que 3%. Aí não dava para engolir.”
A mudança no discurso ocorreu no segundo turno da eleição. “Nós vínhamos apresentando como grande êxito do governo o controle da inflação e a melhora das contas públicas”, ele disse. “Não era. O grande êxito foi a melhora da situação social. Lula acentuou a tese do desenvolvimento. Falou que os programas sociais criaram um mercado consumidor para milhões de pessoas.” Segundo ele, o presidente chegara a pensar em desistir da candidatura. “A situação mudou quando ele percebeu que poderia fazer um governo diferente, que contemplasse o crescimento e a distribuição de renda”, observou.
Pelos argumentos do assessor, tem-se a impressão de que as políticas ortodoxas, como cortes de gastos, serão definitivamente abandonadas nesse fim de segundo mandato. “Quando Lula manda as pessoas consumirem para evitar a crise, ele está certo”, avaliou. “Lula, desde sempre e sem saber, é keynesiano. Ele sempre admirou o Henry Ford que queria que seus operários produzissem carros que pudessem comprar.”
Recentemente, ao fazer uma palestra na Unicamp, o assessor presidencial foi interpelado por um estudante, que lhe perguntou se não temia que o Brasil virasse uma socialdemocracia. Rindo, ele respondeu: “Meu filho, sou ateu, mas rezo diariamente para que isso aconteça.” E fez graça: “Meu Deus, vão dizer que o Marco Aurélio, um cara de esquerda, um socialista, chegou ao seu mais baixo ponto: virou um socialdemocrata.”
Marco Aurélio acha que, nas eleições de 2010, tendo como candidato o tucano José Serra, o discurso da oposição também será pelo desenvolvimento. “Isso não torna a disputa mais difícil?”, perguntei. “Não, porque agora temos um trunfo: o PAC”, explicou, falando sobre o Programa de Aceleração de Crescimento. “Em 2010, vamos ter uma obra concluída, um país prontinho, muito mais arrumado do que é hoje.”
Ainda assim, em sua opinião, a eleição “será um pepino para o partido” porque será a primeira sem Lula. Mas ele é um entusiasta da candidatura da ministra-chefe da Casa Civil. “Sou Dilma desde o começo, ela tem um sentimento de país”, disse e, emocionando-se novamente, secou as lágrimas com o guardanapo.
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