ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Dias de cão
A rotina dos socorristas do Samu
Vinicius Santos | Edição 31, Abril 2009
Num buraco de esgoto, entre urina e baratas, o bebê chora. Indefeso e com frio, faz a única coisa que pode. Seu pulmão mal aprendeu a respirar. Acima dele, sobre o piso, dois auxiliares de enfermagem o procuram.
Ana Paula Britto e Francisco Oliveira Silva, funcionários do Samu — Serviço de Atendimento Móvel de Urgência —, não chegaram ali em busca de um recém-nascido. Respondiam ao apelo de uma mulher que acabaram por encontrar numa rua sem saída, sentada na soleira de uma casa modesta, o colo da roupa manchado de sangue. Transtornada, dizia ter sofrido uma convulsão.
“E esse sangue todo?”, perguntou Chico. “Estou menstruada”, ela disse. “Minha senhora, se toda menstruação fosse assim, a senhora já teria morrido.” A mulher é levada para o interior da ambulância. Tem sua barriga apalpada, o que aumenta a suspeita de parto ou aborto.
— Onde está a criança? — perguntam-lhe.
— Não tem criança — ela responde.
Chico corre para vasculhar a casa. Com um pedaço de pau, mexe no vaso sanitário, mas só há sangue. Volta à ambulância e, constatando que a paciente está estável, chama Ana para ajudá-lo na busca. A mulher fica sob a guarda do motorista Marcelo Veronez. Na casa de dois pavimentos, nenhum cômodo passa em branco. Procuram em armários e cômodas, debaixo dos móveis e dentro do forno. Chico acredita distinguir o choro: “Um miado de longe, porque bebê quando nasce chora um miadinho.”
Vão aos vizinhos em busca de ajuda. Alguém aponta uma janela de onde vem o choro distante de um bebê. “Não é esse”, dizem os auxiliares de enfermagem. “Eu ouvia e os meus pêlos se arrepiavam”, lembra Chico, alisando o braço. Vão para cá e para lá com urgência cada vez maior, guiando-se pelo som ora mais longe, ora mais perto, mas o paradeiro da criança teima em não se revelar. “Foi aí que a Ana teve presença de espírito”, lembra Chico. Parada no meio da sala, ela perguntou a uma vizinha: “Aqui tem caixa de esgoto?”
Ana e Chico afastam o tapete e dão com uma pesada tampa de pedra. Debaixo dela, descobrem o bebê. Ele pesa cerca de 3 quilos e está enfiado numa sacola de supermercado que lhe chega até o pescoço. Os dois socorristas o livram da sacola e de um pano imundo que o envolve, limpam-no e cortam o cordão umbilical. Como sofre de hipotermia, é logo enrolado numa manta quente, asseada.
Levado ao Hospital de Vila Penteado, na zona norte de São Paulo, o menino conseguirá se recuperar. “Quando cheguei ao berçário, ele estava no colo de uma morenona bonita”, conta Chico, descrevendo curvas no ar.
Em São Paulo, 130 mil ligações são feitas mensalmente para o número gratuito 192. Excluindo-se trotes, enganos, pedidos de informação sobre serviços de utilidade pública e cancelamentos, sobram 24 mil deslocamentos de ambulâncias para emergências.
Chico, Ana e Marcelo trabalham na base do Samu do Pronto-Socorro 21 de Junho, no bairro da Freguesia do Ó, também na zona norte. A sala da equipe está instalada num anexo onde antes funcionava a lixeira hospitalar. Eles dividem o espaço com o necrotério e a sala de manutenção. Do lado de fora, o vira-lata Colete passa o dia deitado em cima de um papelão. Um pote de sorvete faz as vezes de tigela de água. Colete é alimentado com restos da refeição de enfermeiros, motoristas, auxiliares de enfermagem e funcionários de manutenção que buscam um banco de madeira próximo para um minuto de descanso, conversa ou cigarro.
No sistema nacional de saúde, o Samu é encarregado do atendimento pré-hospitalar (APH) de emergência. Divide a tarefa com o resgate do Corpo de Bombeiros, que se incumbe dos casos de trauma — vítimas de acidentes de carro ou de desabamentos, por exemplo. Ao Samu competem os atendimentos clínicos, como os casos de ataque cardíaco ou derrames. “O nosso trabalho é alcançar a vítima o mais rápido possível, estabilizar o quadro e então levá-la para o hospital”, diz Chico, resumindo o protocolo de atendimento.
Chega outro pedido de ajuda: uma senhora teria tido uma convulsão. Marcelo assume o volante da ambulância, limpa e bem cuidada, com logomarcas dos governos federal e municipal na lataria. O motorista escolhe um dos quatro tipos de sirene disponíveis. A ambulância sai uivando pelas ruas. Ultrapassa na contramão, avança sinais vermelhos e chega ao local.
Chico e Marcelo atravessam cômodos apertados até uma escada estreita que leva ao andar de cima. No vão embaixo dos degraus, um cachorro preso em seu cercado late para os estranhos. Entram no quarto e encontram Lourdes, a solicitante, uma mulher corpulenta que cuida de Isaltina, a enferma. “Ela não abre a boca desde hoje de manhã”, avisa Lourdes. “Tem uma baba grossa na boca que ela não consegue engolir.”
Isaltina, de 81 anos, está espalhada na cama. Foi encontrada ali pela manhã. Tem a pele muito escura, em contraste com os cabelos crespos muito brancos. Os olhos arregalados tentam compreender o que se passa. “A senhora consegue abrir a boca?”, pergunta Chico. Ela entreabre os lábios e o auxiliar de enfermagem usa um bolo de gaze para retirar um espesso líquido branco. Tudo indica uma convulsão, mas o diagnóstico só será dado no hospital. É preciso levar Isaltina para a ambulância.
Erguida da cama e posta numa cadeira, ela olha com curiosidade para Chico, que a amarra ao encosto com uma faixa de tecido grosso. Assim que a cadeira é erguida, Isaltina agita os braços, em busca de apoio. “Deixe as mãos junto do corpo. A senhora não vai cair”, assegura Chico. Ao passar pela porta, ela se agarra ao batente. “Assim não vai dar. Vamos ter que amarrar as mãos dela.” Isaltina não reage quando é amarrada com os braços em cruz contra o peito. Marcelo e Chico a levam embora, sem saber se esta será a última vez que Isaltina verá seu quarto.