“Como essa cidade é louca! E como eu gosto daqui! Conheço-a como o quintal da minha casa. Tenho um apego afetivo à linha de ônibus 967A, que vai do meu bairro até Pinheiros. São tantas histórias, tantos amores platônicos...” FOTO: EGBERTO NOGUEIRA_IMAFOTOGALERIA
Ter 18 anos na cidade grande
A rotina de uma jovem paulistana que estuda em cursinho, trabalha em call center e não dispensa um só museu gratuito
Barbara Pina | Edição 32, Maio 2009
A jovem paulistana Barbara Pina ainda não se encontrou – nem na vida, nem na profissão. De estável, apenas a vida familiar. Moradora da periferia e se equilibrando entre um cursinho pré-vestibular e o primeiro emprego, Barbara está em trânsito. Ela trafega entre a adolescência que vai ficando para trás e o mundo adulto do seu futuro. Sempre em companhia do MP3, é claro. Nisso, ela retrata toda uma geração
SEGUNDA-FEIRA, 9 DE MARÇO_Quando não estou dormindo, nem comendo, nem tomando banho, trabalhando ou em sala de aula, estou ouvindo música. Ou pensando música. Por isso, ao escrever este diário, vou incluir algumas letras que me vierem à cabeça e que combinem com meu estado de espírito. Como esta do Rappa:
É… espaço é curto quase um curral
Na mochila amassada uma vidinha abafada
Meu troco é pouco, é quase nada
(O Rappa – Rodo cotidiano)
Levanto, pego minha mochila e cruzo o rio Tietê; metade do caminho ficou pra trás. Entrei mais cedo no trabalho, me pediram pra fazer hora extra e eu aceitei sem pensar. Só me dei conta hoje, ao acordar, da grande furada em que me meti…
Trabalho numa central de atendimento ao cliente de tevê por assinatura. Em vez das cinco horas e quarenta minutos diárias, hoje o expediente durou sete horas e quarenta minutos, e foi terrivelmente cansativo. Terminei o dia não suportando mais ouvir minha voz. Estou quase rouca. Não consigo mais cantar, logo eu que vivo cantarolando. Quanto eu ganho para estropiar desta forma minhas cordas vocais? Quinze reais: é isso que eu ganho por dia. Hoje ganhei 5 reais a mais pelas duas horas extras.
Moro no Imirim, um bairro da Zona Norte de São Paulo. Tem o Imirim “nobre” e o Imirim mais “periferia”; eu vivo na parte mais periferia. Moro com meus pais, sou filha única e tenho 18 anos. Nossa casa tem dois quartos, uma sala, cozinha, banheiro e área de serviço. No quintal tem outras quatro casas, todas ocupadas por parentes – tios ou primos.
Família é um treco complicado. Mesmo quando está tudo desmoronando ninguém tá vendo nada. E quando cai de vez é aquele choque causado pelo acúmulo de frustração, antes emparedada. Sei lá.
Na minha rua não tenho grandes amizades. Muitas meninas da minha geração já se casaram e têm filhos, outras não moram mais aqui. Meus avós paternos foram um dos primeiros moradores da região, e meu pai vive aqui desde criança. Minha mãe é baiana e veio pra cá com uns 20 anos. Morar aqui já foi pesado. Dois primos meus eram usuários de crack e viviam arrumando briga. Foram muitas as madrugadas em que a gente acordava ouvindo berros ou a sirene da PM em frente ao portão. Um dos primos está preso por roubo, outro se recuperou e não mora mais aqui; noites de bom sono são possíveis agora.
O mundo caquinho de vidro
Tá cego do olho
Tá surdo do ouvido
O mundo tá muito doente
O homem que mata
O homem que mente…
(Lenine – O mundo)
TERÇA-FEIRA, 10 DE MARÇO_Perdi a hora de ir para o cursinho, e acordei em outra dimensão. Faço pré-vestibular na Acepusp, uma associação de professores formados pela USP que se juntaram e montaram um cursinho com preço popular. Pago 135 reais por mês, mas ultimamente meu pai tem me ajudado, inteirando o valor, com 30 ou 50 reais.
Não aguentei ficar muito tempo dentro de casa depois de acordar e fui ver uma mostra de 1.000 filmes de 1 minuto no Masp. Gosto muito de audiovisual, adoro pegar uma câmera e sair por aí fazendo imagens sem nexo. Tenho uma câmera fotográfica digital simples, com capacidade para gravar quinze minutos de imagens em movimento. Foi meu pai quem comprou a câmera, em dez prestações.
Saí do museu por volta do meio-dia e fui direto pro serviço. Consegui mudar de horário no trabalho. Agora eu entro às 13 horas e saio às 19h20, chego em casa às nove, nove e meia da noite.
Peguei um ônibus dos meus tempos de colégio, o Imirim-Lapa 178A, e lembrei pelo caminho como era ruim ir à escola. Detesto sala de aula no esquema quatro paredes, uma lousa imensa, e você senta e copia. Fui uma criança dispersiva e sempre tive dificuldade com as matérias da área de exatas.
Eu queria ser o modelo a não ser seguido, mas que daria certo, e entre os 15 e 16 anos de idade cursei dois anos de magistério junto com o ensino médio. Vi professores completamente estressados, despreparados, com turmas lotadas de crianças hiperativas, disléxicas e de histórico familiar assustador. Eu desisti do magistério durante os estágios. Teve uma professora que colocou uma criança de cara para a lousa a tarde toda porque ela conversava demais e atrapalhava os outros. O menino estava com o uniforme todo sujo, a camiseta surrada, era albino, branquinho, e ficava lá de um lado para o outro esfregando as mãos na lousa enquanto as outras crianças faziam piadinhas dele.
Saí do magistério e fui estudar à noite, uma das piores escolhas que eu poderia ter feito. As pessoas daquele lugar se agrediam verbal e fisicamente quase que todo o tempo. Até hoje não sei como passei de ano, pois eu dormia, ouvia música ou lia a Folha de S. Paulo de domingo, em classe. A convivência era forçada, os professores esforçados, alguns dignos de dó, falando lá na frente para ninguém. Eu tinha uma colega da periferia nua e crua que adorava dar uma de bacana. Lembro que ela dizia ter um home theater na sala, e eu vivia perguntando se eu não podia ir lá para ver o “home teacher“; ela levou um tempão até perceber que eu estava de sacanagem. Minha mãe passou o ano inteiro falando: “Filha, vai passar logo, você vai ver… Aguenta mais um pouco.” E não é que passou rápido mesmo? Ainda bem que mãe sabe de tudo.
Fiz poucos amigos na escola. Sobrou a Mayara, que trabalha na mesma empresa que eu. A Mayara quer estudar moda e gosta do meu jeito de vestir, me chama de “estilosa”; eu sou uma largada, isso sim. Começamos a entregar currículos juntas, no centro de São Paulo, e ela foi a primeira a ser chamada pelo call center. Me animei e, no dia seguinte, estava lá na sala de entrevistas respondendo a questões banais de português, matemática e informática. Não se exige muito. Ensino médio completo, digitação e uma boa dicção, às vezes nem isso. Na minha carteira eu sou registrada como “Atendente I”. Todo mundo que passa pela empresa entra como atendente e depois vai subindo de cargo, vai para a internet, para o setor de cobrança, para o de cancelamento, que paga salários mais altos. Meu salário na carteira é de 468 reais. Com todos os descontos eu devo receber uns 300 e poucos reais. Estou nesse emprego há pouco mais de dois meses, ainda em período de experiência.
É engraçado o quanto a Mayara e eu nos damos bem. Somos totalmente opostas. A Mayara é toda vaidosa, se arruma, cuida do cabelo, tem o tênis da moda. Eu sou superlargadona, tem dias que mal arrumo o cabelo, saio de casa toda amassada, não combino a roupa.
O luar, estrela do mar
O sol e o dom, quiçá, um dia
a fúria desse front virá lapidar o sonho
até gerar o som como querer djavanear
O que há de bom
(Caetano Veloso – Sina)
Quero ser artista plástica. O call center é meu primeiro emprego com carteira assinada. Antes dele fiz estágios e bicos, nada que tenha durado mais do que dois meses. Percebo que em toda entrevista de trabalho , quando questionada sobre “planos futuros/interesses profissionais” , ao responder que quero ser artista plástica, é ali que eu perco a vaga. Não se dá oportunidade a quem não está interessado em seguir carreira na profissão X ou Y.
QUARTA-FEIRA, 11 DE MARÇO_A principal linha de ônibus do meu bairro é a que vai aqui do Imirim até Pinheiros, o 967A. Em horário de pico a viagem pode durar mais de duas horas. Sem trânsito é uma hora cravada. Pego esse ônibus todos os dias pela manhã para ir ao cursinho e à noite para voltar do trabalho. Conheço cada esquina de cor, e tenho um apego afetivo por essa linha. São tantas histórias, tantos amores platônicos, daria pra escrever um livro: Casos do 967A. Quando comecei a fazer treinamento no meu emprego atual, eu pegava o Pinheiros das cinco e meia da manhã. Num ponto da Casa Verde entrava um peão que também descia na Faria Lima, umas duas paradas antes da minha. Ele ficava cantando uma prima que trabalha comigo. Um dia deitou no banco e ficou estatelado como se estivesse tomando banho de sol na praia, sorrindo pra gente. Mandava beijo, piscava; a gente se divertia com tanta bizarrice àquelas horas da manhã.
Não somos o que queríamos ser
Somos um breve pulsar
Em um silêncio antigo
Com a idade do céu
(Zélia Duncan e Simone [Paulinho Moska?] – Idade do céu)
Hoje eu me lembrei de várias coisas que já não me pertencem mais. Será que é certo sentir tanta saudade assim? Tem dias que eu vivo para lembrar.
SEXTA-FEIRA,13 DE MARÇO_Eu sou baixa, gorda, negra (segundo o Censo eu sou parda), tenho cabelo crespo e nunca quis ser diferente. Quando eu resolvi assumir meus cabelos crespos foi um choque para todo mundo à minha volta. Foi um tal de gente querendo dar opinião!
No ano passado, quando eu saía do emprego muito tarde, não dava tempo de passar em casa antes de ir pra escola, então eu ia direto e chegava no horário de saída das crianças do período da tarde. Certa vez eu estava no banco comendo meu salgadinho de cebola, quando um grupinho de cinco meninas se aproximou e começou a conversar. Papo de menina é aquela coisa de caderno da Barbie, CD dos Rebeldes e afins. Não demorou para? elas começarem a comparar a altura uma das outras. A mais baixa, que foi logo detectada, ficou toda retraída num canto, só ouvindo comentários. Lembrei que comigo era assim também. Eu tenho 1,48m, sempre fui baixa, e meus pais têm 1,60m. Mas eu nunca deixei comentário algum me fazer sentir incapaz.
Dia desses, atendi um cliente que não saía de casa fazia um ano. Mora na rua dos Pinheiros, próximo ao largo do Batata. Ele contou ter decidido não mais sair de casa: assinou uma tevê a cabo, uma internet banda larga e passa agora 24 horas por dia entre quatro paredes. Me assegurou ser bem mais feliz assim. Pensei: “Nada mal…”
Hoje tive geografia no cursinho. É uma das aulas mais interessantes. O professor é um figura: articula, faz gestos exagerados e grita o tempo todo. A aula é tão agitada que eu não consigo dormir por mais sonolenta que esteja. Hoje ele falou dos Estados Unidos, da cultura do self-made man, do egocentrismo americano.
Amanhã é sábado, vou poder acordar mais tarde, ficar de pijama até umas 11 horas e depois do expediente no call center posso emendar num barzinho.
SEGUNDA-FEIRA, 23 DE MARÇO_Dia tranquilo no trabalho. O sistema caiu umas três vezes e ficou inoperante umas duas horas. Nestes casos, a gente só atende a ligação, informa que não vai poder fazer o atendimento e volta a assistir tevê, comer, conversar, ler. O sistema cai quase todos os dias, mas geralmente fica apenas segundos fora do ar. Atendo em média umas trinta ligações por dia. Quando chove, a média sobe para cinquenta a sessenta ligações. Aliás, quando chove em São Paulo é o caos. Muitos bairros ficam sem imagem e é aquela enxurrada de reclamações. A orientação que damos é quase sempre a mesma: aguardar.
Hoje atendi um senhor chamado Geraldo, simpaticíssimo; pessoas idosas costumam ser mais educadas e pacientes. Ele não conseguia ter acesso ao canal erótico que contratou. Fiz reset de sua senha, não adiantou e por isso o encaminhei ao pessoal da área técnica, que é quem pode solucionar esses casos. Gente idosa gosta de contar a vida. Fica triste quando a tevê pifa, mas acho que eles ligam mais para poder falar com alguém. Eu ouço até o fim, dou risada alto, não tô nem aí. Tem cliente que não dá vontade nem de desligar o telefone, tão bonita a voz e imensa a simpatia. Tem cliente que também canta as atendentes, mas geralmente é de uma maneira leve: elogia a voz, diz que nunca foi tão bem atendido antes, chama de amor, de querida.
Às vezes eu fico curiosa: como será essa pessoa do outro lado? Construo em pensamento um perfil físico, pessoal, baseado no tom de voz do cliente. Também olho no cadastro o nome, data de nascimento, onde mora… e essas informações vão se somando. Vai ver que algumas vezes consegui chegar perto do real. Tem atendimento que fica na nossa memória e a gente nunca mais esquece.
Quando o cliente liga pra contratar um canal erótico, ele evita ao máximo falar o nome do canal. Refere-se apenas ao número. “Aquele 193, quanto é que é?”, pergunta. Faço questão de responder citando o nome do canal por extenso, incluindo os destaques da programação. As perguntas mais frequentes são: “Tem senha? Na conta vem o nome do canal? Toda vez que eu for assistir vai pedir a senha?”
TERÇA-FEIRA, 24 DE MARÇO_Ando muito cansada no cursinho e com muito sono. Não consigo me concentrar direito. Cada dia está pior e já penso em fazer um curso técnico. Olheiras, bocejos e muita dispersão. Só que eu não posso parar a essa altura do campeonato, quero entrar em uma universidade pública, ou conseguir uma bolsa de estudos em uma boa faculdade. Mas sei que esse ano vai ser difícil de conseguir. Hoje, por exemplo, nem fui. Resolvi passar a manhã no Sesc Pompéia. Agora que eu fiz a carteirinha posso pegar livro emprestado, pagar mais barato por shows e peças de teatro e pelo almoço também. Sou fascinada por aquele prédio e pela ousadia criativa de Lina Bo Bardi.
Tenho pressa pra chegar, pressa de ir pra outro lugar
Em que possa me sentir, dentro de uma bolha que flutua por aí
Pare de me perguntar onde eu quero chegar
Sinto que só quero ir em cima de um tapete que flutua por aí
Isso é uma loucura
Isso é uma loucura
Isso é uma loucura
(Cachorro Grande – Que loucura!)
Almocei no bandejão, uma delícia, porque tinha esquecido minha marmita e sabia que ia ficar até as 20 horas sem comer nada.
Cheguei em casa às 21h40, e fui brincar com os meus cachorros antes de ir dormir. Tenho um poodle misturado com vira-lata, o Tob, e um golden retriever, o Max. O Tob já é velhinho, não tem muito pique; o Max é filhote, tem 3 meses, é imenso e inquieto.
… em ver que o vai-e-vem pode ser eterno
Pra ver quem manda
Acho que não vai dar tô cansado demais
Vou ver a vida a pé, ai, ai, ai, ai,
Acho normal tá no mundo feito faz o mar num grão de areia
(Marcelo Camelo – Mais tarde)
SÁBADO, 28 DE MARÇO_O show do Chico César foi incrível! Fui com meus pais e voltamos para casa cantarolando no caminho. Por sermos uma família pequenininha, costumamos sair junto e nos damos bem, vivemos numa boa. Eu nunca quis ter irmãos e por isso tive que aprender a me virar sozinha. Mas foi bom. Ou melhor, é bom. Meus pais têm espírito jovem, minha mãe mais do que meu pai. É uma amigona pra todas as horas, nos divertimos juntas, falamos besteira, damos risada, nos consolamos quando estamos tristes. Ela tem 41 anos e concluiu o ensino médio no ano passado, com diploma pelo Telecurso e a Fundação Bradesco. Hoje ela trabalha como empregada doméstica fixa, perto de casa, com carteira assinada e salário de 500 reais brutos. Bem menos cansativo do que seus anos de diarista nesta cidade grande. Meu pai está com 46, é metalúrgico, trabalha numa fábrica de peças para caminhão no bairro da Lapa e também tem ensino médio completo. Ele vive fazendo planos para trocar nosso Fiesta 96 vermelho, mas todo mês aparece um problema diferente e a grana nunca dá. Até duas semanas atrás, por causa da crise, a sua semana de trabalho estava reduzida a apenas quatro dias por semana.
Aproveitei minha folga pra limpar o quarto e jogar fora um monte de coisas que só ocupam espaço. Papéis, pastas, algumas cartas, foi tudo pro lixo. Não aguentava mais dormir literalmente sobre meu passado (ficava tudo embaixo da cama). Muita coisa inútil que não me remete mais a nada, e só serve pra acumular pó e me atacar a rinite.
À noite fui num sarau do Centro Cultural da Juventude, que é pertinho de casa. Houve época em que esse espaço foi praticamente minha segunda casa – eu fazia teatro, ia a shows, participava de bate-papos. Lá conheci pessoas essenciais, fiz amigos queridíssimos, me aproximei da arte, e passei a enxergar a arte como uma possibilidade real na minha vida.
Sarau pra mim é a expressão de arte mais democrática que existe. É pra todos e por todos. Antigamente a coisa era mais alternativa: gente que queria pôr a voz no mundo e dizer “eu existo” por meio da poesia, do rap, do grafite, talentos que surgiam da platéia. Hoje a coisa tá meio mudada. Tem gente dublando forró, bêbado fazendo performance, covers e mais covers exalando melancolia. Mas também tem um grupo que faz percussão com apetrechos domésticos, rola também um som instrumental surpreendente e uns caras mandam muito bem no sax e teclado. Nem tudo está perdido, ainda bem!
Recentemente o nome do local foi alterado – passou de Centro Cultural da Juventude para Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso. Nós frequentadores não fomos sequer consultados. A meu ver, o Centro Cultural pertence aos usuários.
Mas escute:
eu que vim do nada
não tenho um canto, nem correntes.
Só tenho um sonho que já é meu
e duas palavras pra lhe dizer nesse instante:
Me aguente
(Cidadão Instigado – Apenas um incômodo)
DOMINGO, 29 DE MARÇO_Entrei mais cedo no serviço para poder ir ao teatro com a Mayara. A empresa oferece ingressos para seus assinantes como forma de agradecimento pela fidelidade e sempre sobram alguns para os funcionários. Assim, quase todo fim de semana, eu vejo alguma coisa.
E diz aí, Tião!?
Tião! – Oi!?
Fosse? – Fui!?
Comprasse? – Comprei!?
Pagasse? – Paguei!?
Me diz quanto foi??
– Foi 500 reais?
Me diz quanto foi??
– Foi 500 reais
(Lenine – Jack Soul brasileiro)?
QUARTA-FEIRA, 1º DE ABRIL_Muito sono, indisposição no cursinho. Preciso priorizar algumas coisas, deixar de lado outras, resolver ainda outras. Quarta é o dia mais chato: física e literatura. Meu professor de física parece falar hebraico. Literatura é legal, mas física quebra o clima. Acho que eu preciso mesmo é de um reforço em ciências exatas.
Estou pensando seriamente em dar um tempo antes de encarar uma faculdade. Pensei em design de interiores como curso técnico, acho que tem bastante a ver comigo e me daria uma boa base, já que decoração e arte podem se completar. Se eu depois conseguir um emprego na área, ele seria certamente mais prazeroso do que o call center. Gosto de pesquisar sobre a arte, de fazer ligações entre o que já passou e o que está vindo, de escrever sobre ela, de criar, de pôr a mão na massa. Me vejo uma futura artista plástica voltada para o dia-a-dia. Gosto da arte de rua, vivo imaginando possibilidades de me inserir de uma forma diferente nela.
Tenho medo de que, por conta da correria do dia, eu vá abandonando esse sonho aos poucos. Se eu priorizar outras coisas por conta do momento e da situação, o sonho vai ficando pra quando der.
Pego o mesmo ônibus pra voltar pra casa todos os dias. No caminho eu durmo, acordo, leio, ouço música, faço lição, tiro fotos das paisagens e quando me dou conta já estou no Imirim. Quando estava no meu horário antigo, tinha um enfermeiro que entrava no ponto do supermercado Extra da Brigadeiro Luiz Antonio e descia um ponto depois do meu. Ele trabalhava um dia sim, um dia não, e vinha o caminho inteiro me olhando de canto. Às vezes eu retribuía porque é engraçado ver a cara que os homens fazem quando pensam que a gente tá dando mole.
Jujuba, bananada, pipoca,
Cocada, queijadinha, sorvete,
Chiclete, sundae de chocolate,
Uh!
(Marisa Monte – Não é proibido)?
SEXTA-FEIRA, 3 DE ABRIL_Só almoço fora do call center quando esqueço a marmita que preparo em casa com a janta do dia anterior. Hoje ultrapassei o meu horário de lanche, que é de vinte minutos. Tenho dois intervalos de dez minutos e um de vinte. Fui almoçar por volta das cinco da tarde, mas a cozinha estava cheia, não tinha onde sentar nem espaço livre para usar o microondas. Resolvi então subir para o andar de cima, onde também tem um refeitório. Com isso, eu perdi cinco minutos. Minha supervisora me chamou a atenção, na volta. Comer em vinte minutos pra mim é horrível, pois não sei comer depressa. Às vezes volto para a minha PA (Posição de Atendimento, ou para o meu escritório, que é como eu chamo a minha mesa de trabalho) ainda com comida na boca. Atendo a ligação e aperto a tecla mute até engolir e poder falar.
Desde a entrada em vigor das novas leis da Anatel, as pessoas ficaram mais exigentes com o atendimento. Estão no direito delas. O operador na maioria das vezes é que acaba em apuros. Como atender uma pessoa, verificar o cadastro, anotar a solicitação e fazer o procedimento sem deixar o cliente esperar menos de um minuto? Tem cliente que xinga, esperneia, mas não adianta, vai ter de aguardar igual a todo mundo. Eu mesma aprendi a ser paciente depois que comecei a trabalhar no atendimento. Sempre estive do lado de lá do balcão e quando você troca de lado a coisa muda. Você passa a entender que a demora não é proposital, que a pessoa trabalha ouvindo, falando e digitando ao mesmo tempo, num ambiente cercado de barulho e de gente falando, passando, gritando o tempo todo. Se cada cliente escandaloso passasse um dia do lado de cá, só um dia, repensaria seu modo de tratar o atendente.
SÁBADO, 4 DE ABRIL_
Decanta em cada canto
Um instante
De dentro do segundo
Seguinte
Que só por um momento
Será
Antes
(Adriana Calcanhoto – Para lá)
Hoje eu não queria ter vindo trabalhar. Está um calor imenso lá fora e eu aqui, atrás dessa PA atendendo pessoas sem televisão. Se eu estivesse em casa com um calorão desses, sairia pra tomar um açaí com alguns amigos. Faz tempo que eu não me encontro com eles, tá todo mundo na maior correria, trabalhando e estudando.
Eu não gosto de televisão, assisto a pouca coisa, até porque não tenho muito tempo. Gosto mesmo é de música. Posso viver sem tevê numa boa, mas não sou eu sem meu MP3. Não gosto de celular, que parece ter o poder de controlar o seu tempo e passos. Tenho um bem básico, todo ferrado, que me basta para o essencial.
Ao longo do dia meu humor foi melhorando; geralmente é assim. Acho que alguma coisa interior percebe que, se eu não atender as pessoas bem, o dia só vai piorar.
À noite fui a um show do Jair de Oliveira, com meus pais. Foi uma boa ducha na alma. A paixão por música corre na família e voltamos para casa cantando trechos do show. Paramos no caminho, compramos esfihas e o sábado terminou muito bem.
Tenho a madrugada como companheira
A saudade me dói, o meu peito me rói
Eu estou na cidade, eu estou na favela
Eu estou por aí…
(Fernanda Takai – Diz que fui por aí)
DOMINGO, 5 DE ABRIL_Entrei mais cedo no serviço, 10h20. Em um domingo tranquilo, ou seja, sem jogo de futebol nem chuva, atendo umas vinte, trinta ligações. No dia que o Faustão ficou mudo, anotei cada ligação recebida fazendo um pauzinho num pedaço de papel. No fim do dia tinha mais de sessenta pauzinhos. Quando o futebol sai do ar, então, reza. Ainda bem que não vou trabalhar no próximo domingo, dia de Corinthians x São Paulo. Eu tenho certa simpatia pelo São Paulo.
Se a mão livre do negro
Tocar na argila
O que é que vai nascer?
Vai nascer pote pra gente beber
Nasce panela pra gente comer
Nasce vasilha, nasce parede
Nasce estatuinha bonita de se ver
(Elis Regina – Estatuinha)
SEGUNDA-FEIRA, 6 DE ABRIL_Dia de biologia e história no cursinho. O professor de biologia é novo, recém-formado, se enrola um pouco nas explicações. É a aula que tem menos gente. O pessoal sai no meio da aula mesmo, não tá nem aí. Eu fico. Ele se esforça ao máximo, é perceptível. Ele fala, fala, aí se perde nas explicações e volta tudo de novo. Quando alguém o questiona sobre alguma coisa que não tem nada a ver com o que ele está falando, ele deixa o que estava falando pela metade e vai falar da outra coisa, e chega em outra e outra. No fim da aula ele lembra que o assunto principal daquela aula foi o que ele menos comentou. Estou aprendendo sobre as células, DNA, RNA, organelas e aquelas coisas todas. Já a outra aula do dia, que é história, foi o máximo. O professor, um negão desbocado, gente fina, faz piada o tempo todo, nos xinga, mas as aulas que são as duas primeiras da segundona são bem agitadas. Estamos estudando feudalismo, escravidão. É, a coisa já foi bem pior. E se eu tivesse nascido nessa época? Me juntaria a Zumbi ou seria morta comandando uma revolução.
Depois fui à Passagem Literária, na avenida Consolação com a Paulista, pra comprar um livro de física – não tenho nada em casa. Pechinchei um ótimo, volume único, todo conteúdo. Era 25 reais, mas eu chorei, chorei e resmunguei um pouco, e consegui levar por 15 reais.
Trabalhei das 13h20 às 19h40, meu novo horário. Depois fui pro Cursinho assistir a umas aulas que perdi, de biologia. Cheguei em casa quando já passava um pouco da meia-noite. A rua estava escura, vazia. Eu gosto tanto da noite! Adoro dormir altas horas e aproveitar a madrugada pra ler, escrever, arrumar meu quarto, ouvir música.
Tá cansada, senta
Se acredita, tenta
Se tá frio, esquenta
Se tá fora, entra
Se pediu, aguenta
Se pediu, aguenta
(Lenine – Do it)
TERÇA-FEIRA, 7 DE ABRIL_Hoje atendi um cliente que estava insatisfeito com o serviço de internet contratado. “A conexão vive fora do ar e infelizmente as coisas no Brasil não funcionam, né, filha”, disse. Não sei, tenho minhas desconfianças. Será que é só no Brasil? E onde será que elas funcionam, na África? A gente reclama, reclama, pensa que é o povo mais ferrado, mais coitado do planeta. Essas conclusões são tiradas a partir de coisas banais, como o caso desse senhor, que se sentia a pessoa mais prejudicada do mundo por não ter uma boa conexão de internet. E por ser brasileiro, talvez. Ora, problemas desse tipo devem acontecer em qualquer canto do planeta.
E a cidade se apresenta centro das ambições,
Para mendigos ou ricos, e outras armações.
Coletivos, automóveis, motos e metrôs,
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs
(Chico Science & Nação Zumbi – A cidade)
QUINTA-FEIRA, 9 DE ABRIL_Estou desanimada: hoje saiu a escala de folga no serviço e eu vou trabalhar em mais um feriado. Nas sextas, sábados, domingos e feriados a central funciona com 80% do efetivo. Nunca consegui folgar um feriado. Quem escolhe os sortudos são os supervisores. Para piorar as coisas, peguei uma gripe horrível e respirar esse ar-condicionado não ajuda. Trabalhei a tarde toda com o nariz escorrendo, rouca, com dor de cabeça e no corpo todo, com raiva de ter de trabalhar no feriado. No Carnaval foi a mesma coisa. Da próxima vez, ou eu folgo ou eu falto.
Na volta para casa, o 967A estava cheio, acho que é porque peguei mais cedo. Lá pelas tantas entrou um mendigo ouvindo um radinho de pilha e cantando. O cara estava alegre à beça, nem ligava para quem o olhava. Cantava todas as músicas com o rádio sintonizado na Gazeta FM. Cantava com verdade, com vontade. Como esta cidade é louca! E como eu gosto daqui. Eu ando sozinha pelas ruas de São Paulo desde os 12 anos, conheço esta cidade como o quintal de casa, e quanto mais eu a conheço, mais me espanto e mais a admiro.
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