IMAGEM: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Os com-jaleco
Hippie colombiano anda alinhado
Douglas Duarte e Camila Moraes | Edição 35, Agosto 2009
Numa recente terça-feira nublada, Alejandro – um hippie colombiano que acha meio insólito “isso de dar o sobrenome” (e por isso não dá) – estava sentado na calçada diante da matéria-prima de seu labor: contas, miçangas, palhinhas. Foi quando apareceu um colega seu aflito, sacudindo um jornal (gratuito, como convém) no ar.
Uma das manchetes espalhou apreensão naquele canto de praça em que a década de 60 parecia imortal: “Hippies terão uniforme.” “O que essa mulher vai fazer a gente usar?”, pensou o colombiano do alto dos seus suspeitos, mas declarados, 42 anos de idade. (Suas rugas remetem mais à quadra dos 60, ainda que a disposição geral seja de uns trinta e poucos.)
A mulher é Blanca Inés Durán, engenheira concursada que desde o ano passado se tornou subprefeita de Chapinero, algo como a Rive Gauche ou o East Side de Bogotá: o bairro dos boêmios e artistas, talvez um dos quarteirões mais tolerantes de toda a Colômbia.
O espanto dos alternativos é que Blanca sempre foi considerada “um deles”. Não necessariamente “deles”, os hippies, mas “deles”, os diferentes. Ali estava, afinal, uma lésbica militante que só aceitara disputar o cargo ao saber que dois ou três candidatos conservadores queriam fechar os diversos bares gays da região. Os mesmos bares – ela própria conta – onde afogara as mágoas do fim de seu primeiro casamento com uma mulher.
A surpresa com o viés autoritário da medida não se restringiu à turma da miçanga. A imprensa colombiana fez troça da iniciativa, anunciando a distribuição de escovas e tubos de laquê num novo programa, “Hippie Limpo e Bem Penteado”.
Quando a poeira baixou, vieram à tona os principais pontos da medida. Se a palavra “uniforme” havia causado choques apopléticos nos cabeludos, foi quase fatal a notícia de que seriam obrigados a portar um “carnê”. Para domar a ansiedade, muito se fumou, e de tudo. Teriam eles de pagar mensalidade para trabalhar na rua? Não, o carnê se tornaria apenas uma espécie de carteira de identidade. Pela qual teriam de pagar? Também não.
Durou pouco o alívio. O pessoal logo se deu conta de que portar identificação equivaleria a uma sentença de morte para quem vive do comércio de badulaques e outras mercadorias nem sempre aprovadas pelo Ministério da Saúde.
Com o sociologuês tinindo, Blanca explica: “A idéia é que só os participantes dos nossos projetos de reinserção econômica recebam os carnês. O que queremos é justamente que as pessoas encontrem projetos produtivos e deixem sua situação de rua.”
Como a frase não parece significar nada, é o caso de perguntar coisas mais concretas. E a história dos uniformes? “Não se trata exatamente de uniformes, mas de jalecos. Precisamos identificar quem tem carnê e quem não tem, compreende?” Durante quanto tempo os sem-jaleco ainda poderão vender na rua? “Em pouco mais de um ano todos os ambulantes estarão uniformizados. Vamos fazer batidas frequentes para garantir que isso seja cumprido.” Ou seja: quem estiver na rua por falta de opção poderá contar com os programas do governo. Quem estiver por opção, que vá atrás de outras praças para exercer o desbunde.
Um projeto que mexe com a identidade dos hippies metendo-os em uniformes – vá lá, jalecos – não poderia ter chegado em momento mais crítico, justo quando eles próprios nutrem dúvidas sobre quem exatamente são.
“Não existe isso de ser hippie e ponto. Tem vários tipos: hippie ermitão, hippie andarilho, hippie caminhante…”, explica Alejandro. Qual seria a diferença entre esses dois últimos? “Bom, o andarilho passa a vida andando, mas não faz nada. Já o caminhante é artesão, se movimenta, vende suas coisas num lado e no outro. Eu já fui hippie andarilho. Hoje acho que sou caminhante, um artesão comum e nada mais.” Ele fala com os olhos meio perdidos na fumaça. Seu corpo traz tatuagens desbotadas e o cabelo está preso por uma faixa apache.
Ao lado de Alejo está Rodolfo, outro que também não declina o sobrenome. Como trabalha com figuras de arame, pode-se supor que seja hippie caminhante. Essa história de jaleco e carnê o deixou muito desgostoso. Está ponderando se não seria hora de correr mundo de novo, como fez outras vezes. Já viveu na Europa, de país em país, vendendo pulseirinha de palha por 8 euros. Voltou “bem de vida”, se deu até ao luxo de trazer para a Colômbia uma cadelinha cocker – “Lindinha”, ele diz.
Seu rumo agora deve ser outro: Venezuela. “Dizem que lá o Chávez apóia os vendedores de rua. Parece que dá até mesada”, comenta, torcendo com um alicate as pétalas de arame de uma flor. A revolução bolivariana está prestes a virar odara.
“Hippie tem que viver nas comunidades, senão, não é hippie. Sabe Woodstock? Pois é, ser hippie é aquilo”, Alejo sintetiza. “Ter liberdade, fazer amor sem preocupação, ficar pelado num rio…” Donde a consternação geral: ficar pelado em rio é muito difícil de jaleco. A subprefeita Blanca Inés Durán não está compreendendo esse lado.
Douglas Duarte é jornalista. Seu primeiro documentário é Personal Che, que foi exibido na Première Latina do Festival do Rio.