ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Masterclass bélico
Curitiba não é o Rio, mas um dia vai ser
Rafael Urban | Edição 38, Novembro 2009
No dia 17 de outubro, quando o helicóptero da PM foi abatido no Rio de Janeiro, o policial Carlos Melo, do Bope, recebeu um telefonema. Era o comandante do seu batalhão, informando-lhe o ocorrido, no Complexo da Maré. Melo lamentou não estar por perto, explicando que, no caso de uma ação em represália, não poderia participar. Desde o dia anterior, ele estava em Curitiba, ministrando o curso “Progressão em favelas”, para policiais aspirantes a Capitão Nascimento.
Aos 43 anos, Melo se orgulha de ter dedicado quinze deles ao Bope, no qual ocupa o posto de sargento. Na tropa de elite da polícia carioca, divide o tempo entre gerenciar uma equipe de resgate e comandar orações na sala de culto do quartel. Formado em teologia, Melo é pastor de uma unidade da Assembleia de Deus, em São Gonçalo. Diz que “o Bope é a polícia com maior percentual de evangélicos do Rio”.
Quando não está no batalhão ou no templo, Melo se encarrega do curso, organizado pelo Centro Avançado em Técnicas de Imobilização, uma empresa do Espírito Santo especializada em formação policial. Desde que começou, quatro anos atrás, diz ter formado turmas em sete estados no país — e uma em Lisboa, para o GOE, o Grupo de Operações Especiais de Portugal. Naquele fim de semana chuvoso, encarava, pela quarta vez, uma turma em Curitiba. Eram vinte homens e uma mulher, todos fardados, a maior parte integrante da Polícia Militar.
Um dos alunos, o guarda Carstens, de 26 anos, esperava adicionar o curso ao currículo, para, no futuro, ingressar em um grupo tático. “Resolvi fazer por causa dos caras do Bope. É bom se preparar para o pior, e lá no Rio é o pior”, explicou. Sua opinião era compartilhada pelo soldado Itamar, de 33 anos, que se orgulhava de ter feito 23 treinamentos, pagos com dinheiro do próprio bolso. Citou alguns: “Resgate de reféns”, “Táticas em duplas” e “Combate em ambiente fechado”. O tenente Lima, de 33 anos, que dizia já ter gasto 35 mil reais em cursos e equipamentos, resumiu: “O cara que gosta de futebol vai comprar chuteira, calção. A gente gasta nisso, para saber o que fazer em uma situação de alto risco.”
Cada participante teve que desembolsar 600 reais e assinar um termo de responsabilidade sobre “eventuais ocorrências físicas ou psicológicas” ocasionadas pelas 27 horas de treinamento, divididas em três dias. As aulas ocorreram de sexta a domingo, na boate Sistema x, a 9 quilômetros do centro de Curitiba. Em frente a uma plateia improvisada com cadeiras de plástico, Melo projetou, em um telão, a imagem que serve de fundo em seu notebook: policiais do Bope carregando corpos pela escadaria de uma favela, no Rio. Perguntou quantos já haviam estado na cidade. Três levantaram a mão. E quantos haviam disparado mais de 200 vezes no ano? Apenas dois. “No Bope damos 8 500 tiros por mês só no treinamento”, disse ao grupo, que o acompanhava em silêncio. “Para quando for fazer, fazer benfeito.”
Para explicar o que se deve entender por benfeito, mostrou o antiexemplo. “Isso aqui não tem condição”, disse, enquanto exibia para a turma cenas do vídeo Strike in Rio de Janeiro, disponível no YouTube, em que um grupo de policiais militares sobe o morro dos Macacos, disparando a torto e a direito. “Será que precisa de tanto tiro? Tem que esquecer essa coisa da empolgação”, explicou. Em seguida, projetou, contra a parede, um slide com dois princípios, que, a seu ver, caracterizam a filosofia do batalhão: controle emocional e agressividade controlada. “A gente não aceita aquele que não tem medo, que resolve tudo, que é estrela demais”, disse. Desde a fundação, há 31 anos, o Bope teve treze baixas.
Às duas da tarde, Melo deu início aos exercícios práticos, em um terreno nos fundos da boate. Espalhou cones pelo gramado, para fazer a vez de postes, muros e outros possíveis abrigos em uma situação de risco. Ordenou aos alunos que planejassem a investida, enquanto se posicionou ao longe, para acertá-los com uma arma de paintball. “Se errar a posição no abrigo, vai levar tiro”, alertou. O cabo Sady, de 41 anos, policial do 9o Batalhão de Paranaguá, saiu coberto de tinta verde. Foi alvejado no capacete, braço, perna e na barriga.
Às oito da noite, os alunos foram divididos em três grupos, Alpha, Bravo e Charlie, para o exercício final: a progressão na favela. Durante o dia, enquanto a turma assistia à aula teórica, uma equipe de apoio construíra uma favela cenográfica no gramado, com dezessete compensados colocados lado a lado ao longo de 51 metros. As paredes estavam pichadas com inscrições provocativas: “Bota a cara, mané” e “Bope vai morrer”. Em um beco, havia um pequeno cemitério, com cruzes e lápides alocadas sob os nomes de nove participantes, acompanhadas do texto “Aqui jaz verme”. Quatro ex-alunos, de turmas antigas, foram escalados para fazer o papel de bandidos. Melo e outro oficial do Bope, que o acompanhava, comandavam as equipes.
Com um cajado em mãos, o oficial chamou o primeiro time: “Equipe Alpha!” Reuniu o grupo ao seu redor, entregou as máscaras de proteção e anunciou o objetivo, enquanto riscava o chão com o cajado. “O Secretário de Segurança determinou que nós fôssemos checar uma denúncia de armas e drogas na favela do Rato Molhado”, disse, solene. Voltando a riscar o chão, desenhou um quadrado, apontando onde estava o objetivo final. “A bandidagem reforçou a segurança”, ressaltou.
“Atenção figurativo! Valendo, vai!”, gritou. Sob forte chuva, o grupo seguiu em linha na entrada, as sete armas de paintball carregadas com trinta tiros cada. Melo acompanhava ao longe, apontando um laser na direção dos alunos, para distraí-los. No escuro, só se enxergava o brilho das armas. “A gente tenta aproximar de uma realidade”, explicou. “A ideia é estressar o camarada para saber como ele vai reagir.”
Treze minutos mais tarde, o grupo alcança o alvo, localizado em uma casa atrás de uma árvore. O figurativo de bandidos se afasta; a equipe Alpha venceu. Única mulher do grupo, a soldado Chagas, de 25 anos, se diz contente com o resultado. “Minha mãe pergunta: ‘Precisa fazer flexão, ficar roxa, tomar chuva?’ Mas precisa. Faço isso porque gosto.” Integrante de grupo tático do 12o Batalhão da PM, ela já cumpriu três missões em favelas, sem nunca ter trocado um tiro. Agora, se diz mais preparada para uma situação de risco: “Curitiba não é o Rio, mas um dia vai ser.”