A frase “O capitão é sempre o último a abandonar o barco” não se aplica a uma plataforma; são os rádio-operadores que saem por último FOTO: ACERVO PESSOAL
Vida dentro da casca de ovo
Guto Jimenez, de 47 anos, passa catorze dias do mês numa plataforma de petróleo entre o litoral fluminense e o capixaba
Guto Jimenez | Edição 40, Janeiro 2010
Formado em letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de inglês e português, além de jornalista, o carioca GUTO JIMENEZ, de 47 anos, passa catorze dias do mês numa plataforma de petróleo entre o litoral fluminense e o capixaba. As outras duas semanas ele fica em terra firme, dividindo o tempo entre a filha adolescente, a namorada, a mãe, a prática de skate e a conclusão do curso de técnico de segurança do trabalho.
Rádio-operador da empresa americana Pride International, cuja plataforma marítima Pride Brazil foi contratada pela Petrobras, Guto Jimenez desembarcou na profissão por engano. Tinha sido locutor e radialista, gostara do trabalho, e por isso se inscrevera num curso de rádio-operação – pensando que aprenderia operação de áudio. “Acabei fazendo o curso até o fim, passei na prova da Anatel e estou no ramo desde 2006”, explica ele. Seu salário oscila entre 3 e 4 mil reais
TERÇA-FEIRA, 6 DE OUTUBRO_Acordei às cinco da manhã para estar no Galeão a tempo de pegar o voo das 7h10, com destino a Vitória. Havia deixado a mochila pronta na véspera – duas mudas de roupa, cuecas, meias, notebook, nécessaire, caderno do curso e um livro (Mate-me Por Favor, primeira parte).
Chegando a Vitória, fui até o saguão exclusivo de embarques da indústria offshore. O movimento de helicópteros é bem mais tranquilo do que o do aeroporto de Macaé, onde estamos acostumados a embarcar. Os procedimentos são os de rotina: identificação, pesagem, revista e lacre dos celulares – os nossos telefones têm suas baterias retiradas e são lacrados numa embalagem plástica, que só pode ser aberta na volta, e mesmo assim à vista do segurança do aeroporto. Embora não haja sinal disponível na plataforma, a frequência das ondas eletromagnéticas poderia interferir com alguns equipamentos. Sem falar que praticamente todo celular hoje em dia vem com câmeras integradas, e fotos são proibidíssimas.
A revista a que somos submetidos é um pouco mais específica. Qualquer material eletrônico só pode ser embarcado com uma RT (Requisição de Transporte) autorizando o seu porte e transporte. Para embarcar com o meu notebook, por exemplo, preciso de uma. É proibido levar bebidas alcoólicas e remédios de receita controlada que exijam acompanhamento médico constante.
O tempo de voo do helicóptero até o campo de Golfinho (Latitude: 21º 10′ 26″ S; longitude: 039° 57′ 01″ W) não chega a trinta minutos. Nem cochilei de tão rápido que foi.
Ao chegar à plataforma, fui pegar algumas roupas velhas que já moram no meu armário do vestiário, e fiz meia hora de ergométrica para adequar o metabolismo ao ambiente com ar-refrigerado, o qual abomino e não uso em casa. No primeiro dia a bordo, sempre trabalho em meio turno (das 18 horas à meia-noite) e descanso outro tanto (da meia-noite às 6h). Me atualizo com as novidades abrindo a caixa do e-mail corporativo. Somos dois rádio-operadores de cada sexo, e minha back, ao me transmitir o posto, sempre conta as últimas novidades. Mulheres a bordo exercem os mais variados cargos: desde taifeiras (faxineiras e arrumadeiras) e comissárias (chefes da hotelaria) até engenheiras de máquinas e DPO (Operadora de Posicionamento Dinâmico, na sigla em inglês). Num ambiente onde há muitos estrangeiros, mulheres são vistas mais como força de trabalho do que seres do sexo feminino.
Sempre que posso, ouço um som baixinho no estilo música ambiente: sou um sujeito movido a música. Desta vez, trouxe várias faixas da banda Ira gravadas no pendrive.
7 DE OUTUBRO_A capacidade dessa plataforma SS-57 (o SS vem de “semissubmersível”) é de 130 tripulantes, mas normalmente somos entre 105 e 115 a bordo, divididos em quatro turmas. Os brasileiros trabalham em turnos de 14×14 dias, e os estrangeiros, de 28×28 dias. A empresa americana para a qual trabalho tem oito plataformas em operação no Brasil, num total de 1 500 funcionários, entre embarcados e os que trabalham na base. Quanto aos funcionários da Petrobras e terceirizados, o efetivo depende das operações que estejam sendo executadas a bordo, pois há técnicos específicos para cada fase da empreitada.
A palavra “rádio-operador” é um termo antigo. Somos o elo de comunicações entre a plataforma e outras embarcações, unidades offshore, e com o pessoal de terra. Devido ao alcance do sinal, os moduladores de rádio (VHFs marítimo e aeronáutico, e o SSB/MF-HF) são usados para a comunicação com os navios de produção, as embarcações de suprimentos e aeronaves. Também somos treinados para operar o sistema GMDSS (Global Maritime Distress Safety System, ou sistema de segurança marítimo global de emergências), que só é usado em caso de incidente grave a bordo.
Aquela história de que “o capitão é sempre o último a abandonar o barco” não se aplica a meu universo, pois são os rádio-operadores que saem por último de uma plataforma, por levarem consigo alguns sistemas de comunicação portáteis para acionamento das equipes de resgate.
Os meios de comunicação mais usados offshore são o telefone e a internet. Muitos procedimentos de serviço são combinados através de ligações com os vários setores de terra, mas temos o cuidado de registrar essas comunicações de trabalho também em e-mail – é bom se precaver do inevitável “Não foi bem isso que eu te passei via fone”.
O pessoal que largou ao meio-dia ouve no telejornal que a Receita Federal liberou mais um lote de restituições de imposto de renda, a despeito das notícias envolvendo uma suposta “pendura” que estaria sendo preparada pelo governo. Consultei um dos três computadores disponíveis para uso geral e recebi a boa-nova de que a minha restituição está agendada para o próximo dia 15. Vai dar um alívio no meu saldo bancário, que já está no roxo há alguns dias.
Depois do meu horário, resolvo não ir à academia, porque dormi pouco na noite anterior. Faço só uma sauna, para capotar quando deitar na cama. Antes, ainda subo um post sobre paper toys no meu blog e aproveito para namorar on-line antes de me deitar. Sou um dos poucos a bordo que não liga para televisão.
8 DE OUTUBRO_Hoje o meu pai faz 86 anos e ligo para ele na hora do almoço. Apesar de animado com a data, ele não estava satisfeito com o tempo em Araruama, onde mora com a sua segunda mulher. “Seu” Orlando é muito ativo e tem uma mini-horta no quintal de casa. Fui visitá-lo no final de semana anterior com minha filha Júlia e uma amiguinha dela. Fiquei feliz em vê-lo corado e cheio de disposição.
Esta manhã, foi preciso solicitar ao setor de logística da base a remoção do imediato da plataforma, um holandês, por conta de um mal-estar intestinal que o acometeu. Há um limite do que os profissionais de saúde conseguem fazer a bordo. Em casos extremos, a norma é transportar o doente para acompanhamento mais adequado em terra.
O percentual de incidentes médicos é quase desprezível, se considerarmos o risco das operações a bordo e as condições meteorológicas nem sempre favoráveis. Há dias em que uma estrutura como essa balança feio, apesar de pesar cerca de 110 mil toneladas. O pessoal das áreas mais sujeitas a riscos, como de operações, convés e manutenção, é treinado e está consciente dos perigos a bordo.
Pela legislação brasileira, é obrigatória a presença de um profissional de segurança para cada cinquenta trabalhadores offshore. A marcação feita sobre nós é constante. É claro que o bônus trimestral de segurança também conta – ele cai na nossa conta desde que não haja nenhum acidente de trabalho com afastamento de algum funcionário. Mas quem conhece o básico das operações de perfuração, movimentação de carga no convés, manutenção e manobras náuticas sabe a verdadeira façanha que é encerrar o dia sem nenhum acidente. A plataforma em que trabalho é considerada muito segura – recentemente completamos um ano e oito meses sem acidente. A Petrobras é uma cliente muito exigente nesse quesito. Aliás, os estrangeiros que trabalham no ramo sempre comentam que nossas leis trabalhista e ambiental estão entre as mais rigorosas do mundo – só falta mesmo serem seguidas…
O bônus-segurança representa 25% do nosso salário líquido, sem os acréscimos de embarcado. Explico: recebemos um fixo que é acrescido de 131% por conta de nosso regime de confinamento, periculosidade e insalubridade. Os salários numa plataforma variam de 2 mil (auxiliares de plataforma) a 20 mil reais (chefes seniores de departamento).
Sempre que passo pela ponte Rio-Niterói fico observando a imponência das estruturas de plataformas em reparo, nos estaleiros. Já aqui, na imensidão do mar, somos apenas um ponto perdido no meio do nada, o que nos ensina a ser humildes – quem manda é a natureza. Vemos pela tevê as tempestades que começam a assolar o Sul do país antes do esperado, mas não dá pra ficar pensando muito nisso por aqui. Como já se dizia, A man’s gotta do what a man’s gotta do, e é a vida que levamos no mar que nos permite bancar a vida que temos em terra. Os dilemas existenciais somem rapidinho quando se pensa nos compromissos e nas contas a pagar.
9 DE OUTUBRO_O tempo lá fora está horroroso, com chuva, nebulosidade e vento forte. Uma embarcação chegou durante a madrugada e não conseguiu realizar as operações que estavam previstas. A tripulação está em stand-by, a cerca de 2 milhas náuticas daqui. Os nossos trabalhos de convés também ficaram prejudicados porque o vento de 35 nós limita os trabalhos com guindaste.
Hoje é dia de treinamento simulado de emergência e abandono da plataforma, uma prática feita semanalmente por imposição contratual. Minha função é a de alertar as embarcações e unidades da área, monitorar as comunicações e preencher relatórios de ocorrência e acompanhamento do incidente simulado. Nesses simulados todos vestem os coletes salva-vidas, disponíveis nas cabines ou próximos às baleeiras de resgate, e se dirigem a pontos de encontro predefinidos. Após a contagem do pessoal, são passadas as instruções e procedimentos de emergência, enquanto a brigada de incêndio ataca o suposto incêndio. A simulação costuma durar pouco menos de meia hora, e depois tudo volta à rotina.
Percebo dois barcos pesqueiros atados às colunas da plataforma e assisto, aqui de cima, ao perrengue que os tripulantes estão passando. Num dos barcos os pescadores estão atados ao casario, recolhendo a rede do fundo do mar. Os caras parecem estar dentro de um imenso liquidificador oceânico. Muitos pescadores de mar aberto gostam de ficar próximos a plataformas, pois nelas se tritura toda a comida já pronta que não pode ser reaproveitada e faz-se a festa dos peixes – e dos barcos pesqueiros.
O cozinheiro “Jacaré” liga para dizer que fez um caldo verde especial. Adoro esse prato. Apesar de não comer carne vermelha, não resisto ao sabor mesmo sabendo que tem um pouco de paio picado lá dentro. Depois da refeição ainda estudo um pouco, pois estou finalizando o curso de técnico de segurança do trabalho e preciso me preparar para as provas que vou prestar quando desembarcar. Ainda dou uma última passada pela sala de computadores para ler os e-mails e dar uma namorada básica a distância.
10 DE OUTUBRO_O dia amanhece lindo. Essa é uma das imagens que gostaria de registrar, mas como não se pode embarcar com câmeras, então só me resta gravar a cena nas retinas e na memória. Hoje é dia de troca de equipes de convés e hotelaria, então cabe a mim compilar as condições meteorológicas na unidade e repassá-las à coordenação de voos de Vitória. É um procedimento a ser repetido uma hora antes de cada decolagem. Isso inclui a análise do vento, temperatura externa, ajuste de barímetro e dados náuticos como balanço, caturro e arfagem – ou pitch, roll e heave em inglês, termos que são mais usados tanto pelos navegantes quanto pelos aeronautas.
Há uma certa preocupação com o imediato despachado para tratamento médico em terra, já que ele só fala inglês e um pouco de “petrolês”. Mesmo tendo cursado uma faculdade de letras com especialização justamente em português-inglês, custei a associar alguns termos do nosso dialeto petrolês com o que eles realmente queriam dizer. Por exemplo, dog house não é uma casa de cachorro, e sim a cabine onde trabalha o sondador; monkey island não é uma ilha repleta de símios, mas o tijupar (telhado) da unidade; rabbit não é coelho, designa um localizador de sujeira em tubos…
Tem mais: “pescaria” significa resgatar algum equipamento que tenha caído dentro do poço; “arame” é um equipamento que direciona a perfuração embaixo do solo; “catarina”, um conjunto móvel de polias. E por aí vai.
Na hora da folga, dou uma malhada na academia e faço um post para um dos meus blogs (skateboardingmilitant.blogspot.com) sobre o recém-criado Skateboarding Hall of Fame, lá nos Estados Unidos. Como skatista há mais de trinta anos, é curioso ver a mutação do que era uma simples distração de adolescente. Hoje os profissionais mais famosos são celebridades, rodando o mundo em competições, repletos de patrocínio e transformados em personagens de games. Para mim, o skate será um eterno objeto de culto, mesmo depois que eu chegar na “idade do condor” – com dor no joelho, com dor no tornozelo, com dor no pulso.
DOMINGO, 11 DE OUTUBRO_A telefonia daqui é até boa, descontando o delay que há entre a emissão do que se fala de um lado e a recepção do outro lado. Já a internet… bem, basta dizer que o padrão daqui é “lentium com banda lerda”, lembrando por vezes os piores tempos de conexão discada. Mas ontem começou a instalação de um novo sistema de satélites de comunicação, que irá melhorar tanto a qualidade de transmissão por voz quanto a transmissão de dados digitais.
Torço muito para que melhore mesmo, até porque quero voltar a estudar francês no curso on-line que a empresa oferece aos funcionários. De uns tempos pra cá resolvi voltar a aprimorar as minhas habilidades linguísticas. Depois de aprender pelo menos a me defender no francês, vou ver se estudo alemão de uma vez por todas. Já morei com uma alemã, quando eu era punk, e fui à Alemanha quatro vezes, mas só sei o suficiente para não me perder ou não passar fome. Planejo aprender uma dessas línguas até os meus 50 anos (faltam três).
Recebo por e-mail o boletim com as notas da minha filha Júlia e fico preocupado: terá de fazer aulas de reforço de matemática e história com professores particulares, e outras de português comigo. Já vi que terei de comprar uma gramática atualizada quando desembarcar.
12 DE OUTUBRO_Enquanto o país inteiro aproveita o feriadão, a vida a bordo prossegue normalmente. Com uma diferença: recebemos o dia em dobro, como parte do acordo coletivo da categoria, e não pegamos engarrafamentos na volta para casa. Como não há expediente na base, só mesmo nos setores de logística e suporte técnico, as ligações e e-mails são em número mínimo. Aproveito para ouvir mais demoradamente a discografia do Editors.
À noite rola o churrasco semanal na área da baleeira de proa. É véspera do dia de troca de turmas e é a ocasião em que se fala das vidas em terra, embora tudo sempre acabe voltando para assuntos ligados às atividades de bordo. A turma se entope de carne enquanto eu como umas coxinhas e corações tomando refrigerante. É melhor do que beber a detestável cerveja sem álcool. Álcool é proibidíssimo – ele só se materializa na plataforma na ceia de Natal ou de Ano-Novo, quando o cozinheiro resolve fazer um molho madeira, com dosagem de vinho controlada. Eu nunca soube de ninguém que tivesse sido flagrado com álcool, até porque o risco é muito grande. Além da revista no aeroporto, podemos ser submetidos a exames antidoping e revistas em nossas cabines e bolsas a qualquer momento.
13 DE OUTUBRO_Dia de troca de equipes de operações e náutica em três voos entre as sete da manhã e uma da tarde. Esse é o dia no qual me sinto como um “homem-polvo”, munido de oito braços para atender a tantos pedidos de comunicações ao mesmo tempo.
Acho inviável aturar duas semanas diretas no turno diurno, pois a carga de tensão durante o dia é imensa na sala de comunicações. Muitas vezes saio “rouco de tanto escutar”, como naquele antigo poema cuja autoria eu esqueci agora. Relaxar depois do trabalho é essencial, seja na academia, na sauna, lendo alguma coisa ou ouvindo um som.
Minha mãe fez contato após mais de uma semana sem notícias. Ela tinha viajado com um grupo de amigas bandeirantes da mesma faixa etária, numa dessas excursões para “senhoras de idade”. Dona Yara tem um círculo de amigas que eu carinhosamente chamo de “chapas quentes da terceira idade”, pois estão sempre inventando viagens, congressos, reuniões, jantares e toda espécie de roteiros culturais que se possa imaginar.
14/15 DE OUTUBRO_Entre a meia-noite e as seis (meu novo turno) começo a cuidar da burocracia. No meu setor somos responsáveis pela papelada administrativa, como folhas de ponto, formulários de dias extras e folgas indenizadas, autorizações de horas extras e quaisquer documentos que tenham a ver com pagamentos adicionais.
Fico sabendo que os trabalhos de cimentação do poço finalmente estão se desenvolvendo conforme o esperado, e essa é a boa notícia do dia. A má é que o poço não é tão produtivo quanto a empresa pensava – é viável comercialmente, ma non troppo.
Essa história de cimentação submarina foi algo que me causou estranheza quando cheguei aqui. Como leigo no assunto, ficava pensando: “Como assim, cimento embaixo d’água?!” A sequência de operações se dá mais ou menos assim: primeiro, perfura-se com brocas “finas” (da grossura de um braço) até se chegar ao poço. Em seguida vem a fase de testes de pressão, quando gases são queimados sem prejuízo ao meio ambiente e têm que ficar ardendo na mesma intensidade por no mínimo 24 horas. A partir daí, a broca mais fina é retirada, alarga-se o duto e iniciam-se os primeiros trabalhos de cimentação das paredes do poço. A seguir instala-se o BOP ou blow out preventer, uma espécie de retentor de fluxo. A grossura das brocas aumenta na cabeça do poço, vai afinando até chegar ao óleo, quando então a largura do poço é equalizada. Por último começa a instalação da chamada “árvore de Natal”, uma espécie de plugue gigante semelhante ao adereço das festas natalinas, à qual os navios-tanque se conectam para dar início à extração do petróleo. Ao que se saiba, não existe nenhum Papai Noel descendente de Namor, o Príncipe Submarino…
15/16 DE OUTUBRO_Dei uma avançada no livro que trouxe e agora vou pegar um sol na “praia”, a área próxima à baleeira de proa, bem ao lado da churrasqueira e do fumódromo. Outros aproveitam a área do helideck para fazer caminhadas ao ar livre durante o dia. Como skatista, estou acostumado a me movimentar de maneira bem mais dinâmica do que simplesmente caminhar, então acho que é o tipo de coisa que pode até ser boa, mas para os outros. Inclua-me fora.
A madrugada trouxe uma notícia ruim: a esposa de um dos membros da equipe havia perdido o bebê que esperavam. Ele só se acalma quando fala ao telefone com a mulher, e observo como se esforça para passar um pouco de tranquilidade pelo telefone. Ele abre mão do direito de pedir para ser “desembarcado”, pois o casal concordou que não havia nada que ele pudesse fazer no momento. Eu e minha namorada passamos pelo mesmo trauma seis meses atrás – e em dobro, porque ela estava grávida de gêmeas.
16/17 DE OUTUBRO_Fico sabendo que a seleção sub-20 de Gana derrotou o Brasil na final da Copa do Mundo da categoria. Ligo para cumprimentar o ganês naturalizado brasileiro da nossa equipe. Além dele, há outros naturalizados que trabalham a bordo – um português, um venezuelano, um argentino e dois filipinos – apelidados de “comedores de cachorro”. A plataforma é uma torre de Babel. Tem americano, romeno, inglês, esloveno, sueco, sul-africano…
Como em todo ambiente quase que exclusivamente masculino, as brincadeiras são uma constante nos horários de refeição ou de folga. Apelidos são obrigatórios – um dos meus é Cérebro, por conta de minha testa avantajada. Quando alguém faz aniversário, o banho de farinha com ovos é uma tradição naval secular seguida à risca. Hoje, a vítima do dia é um almoxarife, que já foi rádio-operador.
DOMINGO, 18 DE OUTUBRO_Ouço a segunda palavra mais temida a bordo de uma plataforma: downtime, ou tempo no qual as operações são suspensas por falha de equipamento ou pela adoção de procedimentos errados. No caso, é uma pane elétrica numa espécie de guindaste de içamento de tubos e juntas de conexão. Começa uma negociação entre nosso capitão e o engenheiro fiscal da Petrobras, a maior autoridade em operações a bordo – é ele quem dita o que tem de ser feito, e monitora e avaliza os trabalhos de perfuração.
Explicando melhor: o aluguel de uma plataforma é contabilizado em diárias, desde que esteja em operação. Quando as atividades são interrompidas por motivos técnicos, pode-se dizer que “o relógio para” e o tempo de paralisação é computado para ser descontado do valor da diária. Como são dezenas de milhares de dólares por dia, a máxima de que “tempo é dinheiro” é lei magna por aqui. Uma plataforma de perfuração demora cerca de dois anos para ser construída, ao custo de 500 a 700 milhões de dólares. Fica bem mais em conta alugar uma pronta e com equipe integrada, como a nossa.
Outra coisa: a pior palavra que se pode ouvir a bordo é kick, que designa uma espécie de refluxo de gases ou óleo – ou de ambos – pela coluna de perfuração. Dizem os mais experientes que quando o BOP não consegue conter esse incidente, a plataforma treme como se fosse uma coqueteleira nas mãos de um barman, e o abandono da unidade é iminente e inevitável. Já li relatos de unidades que passaram por esse problema e tiveram suas torres de perfuração desmontadas, os equipamentos destruídos como se fossem de papel. Considerando-se que o BOP, sozinho, pesa entre 15 e 20 toneladas, nem imagino a potência de um kick capaz de “cuspir” essa estrutura para cima como se fosse uma rolha de garrafa de champanhe.
Recebi uma ótima notícia: minha namorada voltará de uma viagem de trabalho três dias antes do previsto. Isso significa que eu retorno para casa na próxima terça-feira, e ela também. Sei que não nos veremos nesse dia, pois ela deverá, primeiro, ficar junto das filhas – mas no dia seguinte, nem eu escapo dela e nem ela me escapa!
Não deve ser fácil para quem fica em terra manter um relacionamento sério com quem trabalha em plataformas. Dependendo da escala, é normal estar a bordo em datas como Natal, Ano-Novo e Carnaval. Eu mesmo não sei o que é passar um aniversário em terra desde que comecei no ramo, há três anos. Este ano passo o Natal em casa, mas no Ano-Novo estarei al mare.
19 DE OUTUBRO_Acordo quase na hora da largada do GP Brasil de Fórmula 1. Adoro carros, mas não me empolgo mais com automobilismo como ocorria quando eu era moleque, na época do Emerson Fittipaldi. Minhas recordações de Interlagos têm a ver com o skate: participei de dois dos três GPs Brasil de Slalom. Para quem não sabe, o slalom é a modalidade de skate de ladeira que ziguezagueia entre cones enquanto se “frita” o asfalto ladeira abaixo. Em 2007, fomos os primeiros esportistas a tocar no solo sagrado do automobilismo latino-americano com rodas que não eram de borracha, e posso dizer que jamais havia andado numa superfície tão diferente.
Assim que chego à ponte de comando, onde fica a minha sala, vejo colegas e o capitão, de binóculos, olhando para um esguicho d’água a uns 300 metros à nossa proa. Uma baleia tinha vindo nos visitar! Golfinhos são mais comuns de serem vistos, mas os maiores mamíferos do planeta são considerados visitantes oficiais.
Os trabalhos no poço foram encerrados, e as equipes de convés e perfuração se preparam para rumar para nova locação. Nossa plataforma tem propulsores que nos deslocam até onde devemos ir – no caso, ao campo de Cachalote. Os propulsores têm máquinas e hélices como qualquer embarcação a motor, só que bem maiores e mais potentes.
Iniciamos a navegação por volta de uma e meia da madrugada, e percorremos 70 milhas náuticas (quase 130 quilômetros) em cerca de 35 horas. A unidade está pesada devido aos equipamentos que lotam o convés.
20 DE OUTUBRO_Preciso finalizar a papelada que desembarcará comigo no malote a ser entregue na Base, com envelopes para diversos setores. Esta é a última etapa de meu turno e de meu período embarcado. Só falta a assinatura do capitão na papelada de liberação – ele é a maior autoridade a bordo, com poder de voz de prisão e tudo o mais.
Hoje é o dia no qual nada me aborrece, afinal voltarei para perto das minhas “três mulheres” (mãe, filha e namorada) e dormirei no meu bom & velho colchão ortopédico sem hora pra acordar amanhã.
RIO DE JANEIRO, 21 DE OUTUBRO_O primeiro ritual da volta é o faxinão. Depois chega o técnico da empresa de telefonia que eu tinha acionado para consertar minha linha de internet. Ele acabou indo embora quase na mesma hora em que a minha namorada chegava. Hora de retirar os relógios, desligar os celulares e esquecer um pouco que o mundo existe e que a hora passa. Depois ela voltou para a casa dela, e eu fui ao meu curso de técnico de segurança do trabalho, no bairro da Tijuca. Tive de fazer uma prova de psicologia que havia perdido por estar embarcado. Só consigo falar com minha filha à noite, e combinamos que eu a pegaria na natação no dia seguinte para tomarmos um sorvete.
22 DE OUTUBRO_Se o dia de hoje tivesse um tema musical, seria a música It’s fucking boring to death, do DeFalla. A chuva com cara de garoa paulistana dá toda a pinta que ficará rondando por alguns dias, e não há perspectiva pior para um skatista que está fissurado em descer umas ladeiras ou dar uns rolés numa pista qualquer. Depois de uma sessão de fisioterapia no tornozelo direito, vou para a casa de minha mãe ver como ela está e também ouvir as novidades da excursão que ela fez na semana anterior.
24/25 DE OUTUBRO_Passo na locadora com minha filha para pegar uns filmes.
26 DE OUTUBRO_Hoje o sol lá fora me autoriza a ter aquela típica “manhã de vagabundo”. Pedalo até a Praia Vermelha para dar um mergulho e tostar um pouco. Gosto daquela praia só para dar umas braçadas no mar e ficar como um lagarto ao sol tomando água de coco numa cadeira alugada. Problemas e preocupações retomam suas verdadeiras proporções. A apresentação do trabalho em grupo no meu curso foi um sucesso, com o professor elogiando a todos no geral e a mim no particular. Sou um dos mais velhos da turma, acho.
27 DE OUTUBRO_Cruzei a cidade para levar o meu carro a uma oficina em Paciência, por conta de um acidente bobo sofrido na véspera de meu embarque anterior. Só venho para esses lados da cidade quando vou andar de skate com amigos na histórica pista de Campo Grande, ou na mais nova de Itaguaí. Esse lado do Rio é quase rural mesmo, com muitas áreas ainda descampadas, o que me leva a pensar que muita gente ainda poderia morar em condições mais decentes do que em algumas comunidades carentes.
28 DE OUTUBRO_Uêba, finalmente vou andar de skate! Pego o meu long e vou até a pista do Aterro do Flamengo, que fica perto da minha casa. É melhor do que nada, apesar de não ser o meu pico favorito, sendo eu um skatista de ladeira. Lembro que o pessoal de meu bairro tinha como grande desafio a ladeira do Parque Guinle, perto do Largo do Machado. Eu me despencava lá do alto sem camisa, descalço e com meus chinelos Katina Surf nas mãos “para proteger”. Agora não me aventuro sem equipamentos.
29 DE OUTUBRO_Dia das minhas três mulheres. De manhã, reparos gerais e compras rápidas para minha mãe. Tarde dedicada à namorada. Minha filha me consultou à noite a respeito de uma viagem para a casa de uma amiguinha, na Região dos Lagos. Só liberei depois de combinar um esquema de estudos com a mãe da amiga.
30 DE OUTUBRO_Fui até Paciência para pegar o carro na oficina. Peguei o busão no Terminal Menezes Côrtes. O tempo da viagem foi o tempo quase exato que levei para ler dois jornais de capa a capa.
31 DE OUTUBRO_Sábado quente, nublado e com chuvas esparsas. Dia de botar leituras, filmes, e-mails, papos com amigos em dia, com direito a uma sessão de Bastardos Inglórios no cinema.
DOMINGO, 1 DE NOVEMBRO_Existe ideia de jerico maior do que ir a um supermercado num domingo de sol pela manhã? Só mesmo se for no Mundial da Lapa, onde minha mãe adora fazer compras. Depois de deixá-la em casa com suas compras do mês, dei uma subida nas Paineiras. Para dar umas descidas no gás – com direito à cachoeira depois, claro – o típico programa que só os longboarders cariocas têm o luxo de poder fazer.
2 DE NOVEMBRO_Mergulho no mar de Ipanema, deixo o carro na garagem do prédio da minha mãe e me despeço dela antes de voltar para casa e retomar os preparativos para a volta à plataforma. Como acordo de madrugada, não pude ver minha namorada, que teve de ficar com as filhas. Nos falamos à noite, já com saudades, e prometo voltar em “catorze minutos” em vez de catorze dias, uma brincadeira que fazemos para os dias passarem mais rápidos.
CAMPO DE CACHALOTE, BAÍA DO ESPÍRITO SANTO, 4 DE NOVEMBRO_Tudo de novo, e nada de novo. A vida de quem trabalha embarcado é curiosa. O meu período em terra é para realizar o máximo daquilo que planejo e idealizo lá no meio do mar. Já o tempo que passo offshore é também para realizar tudo aquilo para o qual fui treinado e sou pago. Na minha cabeça, não tem como as frequências se misturarem. A melhor imagem que pode definir o estilo de viver que o meu trabalho exige é a de um ovo: gema e clara se completam e se contrastam, e ambas cabem dentro da mesma casca, que é a minha vida. Sem falar que, dependendo da maneira que se mistura ou dos ingredientes que se adiciona, a vida pode variar – de um simples pão com ovo até uma deliciosa ambrosia!
Leia Mais