“Se eu soubesse que era tão bom ser ambulante, não teria investido 9 mil numa mercearia, e sim num trailer. Mas deu certo, sei vender” FOTO: ROGÉRIO REIS
Cliente folgado leva coco ruim
O ambulante carioca que, a bordo de uma kombi azul 78, sabe tudo sobre água doce e azeda
Emir Fayad | Edição 42, Março 2010
Sangue de comerciante ele tem. De descendência síria por parte de mãe e libanês por parte de pai, o carioca EMIR FAYAD tem a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar a seu serviço. Há quinze anos, numa Kombi, ele vende coco num dos pontos mais cenográficos do Rio de Janeiro: ao lado do Monumento Estácio de Sá, no parque do Flamengo. Emir e a esposa Maria das Dores já tiveram uma lanchonete de comida árabe em Copacabana. Com o cunhado, teve uma mercearia na Tijuca. E trabalhou na venda de gelo e carnes para um frigorífico de Bonsucesso. Agora, ao completar 50 anos de idade, não quer mais trocar de vida. Com uma filha de 22 anos que cursa administração de empresas, está feliz. “Ela é crânio”, diz, orgulhoso. “Mas não sabe cortar coco.”
QUARTA-FEIRA, 13 DE JANEIRO_Acordei superpreocupado. Estava um calor de rachar e quando isso acontece meu fornecedor fica totalmente atolado. Quer abraçar o mundo com as mãos. Cheguei com a Kombi no meu ponto do Aterro e ele só tinha feito a entrega do gelo. Para conseguir meu coco do dia precisei ligar correndo para outro fornecedor.
O carregamento vem de vários estados – Sergipe, Bahia, Paraíba, Espírito Santo – e quando chega aqui no Rio, o meu fornecedor, o Gama, repassa tudo para caminhões menores, que fazem a entrega nos pontos. Só na cidade, entregam 5 mil cocos por dia, sem contar as lanchonetes e outros estabelecimentos comerciais. Além de distribuidores, eles também são produtores, têm uma fazenda imensa no Rio Grande do Norte, de onde despacham um caminhão por semana. Cada coco me custa 1,50 real no verão (cai pra 1 no inverno) e vendo a 3 reais. Mas precisa descontar o gelo, o canudinho, o meu trabalho, a gasolina, os 130 reais do ajudante nos fins de semana e tudo o mais.
Um viajante argentino estacionou o trailer do lado da minha Kombi e queria saber detalhes do local, para descansar. Estava só de passagem. Em matéria de turista, o que mais aparece por aqui hoje em dia é chinês. Eles nem sabem direito o que esperar de um coco, mas ficam curiosos e provam quando o guia deles toma. O turista mais amarrado em coco é o alemão. O francês não é muito ligado, não.
Passar os dias aqui é gostoso, mas tudo tem um preço. Sempre me dizem: “Poxa, você trabalha nesse lugar lindo, à sombra de uma amendoeira e com o Pão de Açúcar na frente!” Eu respondo: “Trabalho de bermuda e vou para casa na hora que quero. Mas enquanto vocês têm finais de semana, férias, décimo terceiro e todas as garantias, eu já estou aqui há quinze anos e nunca tirei um fim de semana inteiro.”
A tarde estava gostosa, com o vento vindo do mar e os velejadores aproveitando para treinar. Vou embora mais cedo porque marquei um pôquer com os amigos.
QUINTA-FEIRA_O pôquer na casa do meu amigo Barreiro acabou antes da meia-noite. Logo cedo eu estava na Central do Brasil, comprando bebidas, quando o fornecedor de gelo telefonou para dizer que ia deixar os sacos encomendados embaixo da amendoeira. Com o calor que está, fiquei com medo de derreter tudo até eu chegar.
O dia foi corrido, até parecia sábado. Mal acabei de pôr os cocos na geladeira de isopor e chegou a primeira cliente. Expliquei que só estava fresquinho, mas bem doce, e ela não recusou. A segunda cliente pediu dois de uma vez, um para ela, outro para o cachorro – ela sabe que tenho uma vasilha para cães.
Quando o movimento começou a esquentar recebi um telefonema. Era o subcomandante do 19º Batalhão, um dos meus clientes que virou amigo, dizendo que seus filhos gêmeos acabavam de nascer. Fiquei bem contente por ter sido incluído na satisfação dele.
Ao meio-dia, o Ronaldo do caiaque passou pelo meu ponto. Toda vez que o pessoal do caiaque passa pedindo cerveja ou refrigerante, a gente arremessa. Por causa do gás, a lata afunda, mas logo sobe de volta. Pena que não dá para jogar coco.
Perdi o número de vezes em que vendi fiado. O cliente vai correr, esquece o dinheiro em casa, mas a sede bate igual. Mesmo quando não o conheço, vendo fiado e digo que um dia ele passa e me paga. Contabilizo como perda para não me aborrecer. Mas a maioria volta e paga, mesmo quando não vem correr. Tem alguns que até mandam o dinheiro pelo motorista. Já pensou, mandar motorista para pagar 3 reais?
Duas da tarde é o pior horário para mim. Bate um sono tão grande que não resisto e acabo cochilando numa cadeira. Não sou só eu. Vários carros estacionam do lado para tirar uma soneca.
O movimento voltou a ficar intenso às quatro e meia. Com o calor, todos queriam algo para se refrescar. Mas notei que o sudoeste estava forte. Vi que vinha chuva e comecei a arrumar minhas coisas. Não deu outra.
SEXTA-FEIRA_Acordei às três da madrugada ao som de trovoadas. Decidi que tiraria o dia de folga. Em quinze anos de ambulante, só falto mesmo em dias de muita chuva. Assim perco menos dinheiro. Mas não tenho do que me queixar. Lembro do dia em que, passando pelo Aterro, olhei para aquele lugarzinho lindo, ao lado do monumento. Era 27 de outubro de 1994. Eu estava fazendo entregas de gelo e carnes para o dono de um frigorífico com a mesma Kombi azul, ano 1978, que tenho até hoje, quando liguei para a minha mãe. “Seria maravilhoso poder trabalhar com coco naquele canto, mãe”, falei. Ela me deu a maior força. Eu tinha cursado direito até o 5º período na UERJ, mas desisti. O que sei fazer é vender. A partir daí, passei a trabalhar de segunda a sexta para o frigorífico, e no fim de semana finquei pé no estacionamento público, com vista para o Pão de Açúcar. No começo, foi difícil. Um senhor que já trabalhava ali fez de tudo para se livrar de mim. Ele trazia de casa salgados fritos e assados, e vendia bebidas. Eu fazia salgados fritos na hora e vendia coco. Acabamos dividindo o espaço e comecei a conquistar clientes. Na época, eu era um dos poucos vendedores de coco. E sempre tinha muito troco para não dispensar nenhuma venda.
Há dois anos, larguei o frigorífico e estou no meu ponto todos os dias. Já tive banquinhos apreendidos, mas nunca levaram mercadoria. Tenho licença da prefeitura, pago 140 reais por ano como “carro itinerante”. Vendo doces e salgadinhos árabes, que fazemos em família, e tenho autorização para vender cerveja. Mas 90% do meu negócio continua sendo o coco.
Cheguei até a colocar um som no radinho que trago de casa, mas o pessoal reclamou. “Emir, isso não combina”, falaram. “Esse lugar combina mais com o som da natureza. A gente quer ouvir se o vento está batendo, saber quando a amêndoa cai, canto de passarinho.”
SÁBADO_Apesar do sol, o movimento era só pinga-pinga. Às 10 horas apareceram uns policiais do Bope e beberam um coco comigo. Quando estão em treinamento e o calor está sufocante, eles param para se refrescar. É claro que tem os cascudos e tem os mais velhos, os que pedem arrego enquanto os novos aguentam o tranco. Cobro apenas a metade do preço. Faço questão da amizade porque a gente nunca sabe o dia de amanhã. Quando chega uma patrulha, faço a mesma coisa. Não estou aqui para dar dinheiro para a polícia, mas também não estou aqui pra ganhar da polícia. Não quero ganhar nem perder. Você me paga a metade e todo mundo fica sorrindo. Se der guarita para a polícia, eles acabam querendo moleza.
Ao meio-dia, apareceram três pescadores. Ali, a pesca de mergulho é boa entre julho, agosto e setembro, quando entram as correntes de fora e renovam a água da baía. Ela fica transparente, parece até Angra dos Reis. A gente vê o peixe de cima das pedras, mas é claro que também vê plástico, madeira e lixo nadando. É a época que entra polvo na baía e os mergulhadores matam garoupas de fieira. É quando também pescam badejo, mira, robalos, arraia e cação de orla.
Já no verão não é bom, a água é escura e só costuma dar peixe pequeno. Mas principiante tem sorte. Esses três apareceram equipados e um deles fisgou um tremendão! Pensamos até que era tartaruga, que o pessoal volta e meia fisga sem querer. A vara envergou toda, e ele foi brigando com o peixe até as pedras. Nisso, já tinha juntado uma multidão. Deu para ver que era um robalo grande. Todos gritavam: “Desce lá e pega o peixe.” Ele desceu, mas em vez de puxar o peixe para cima, o babaca levantou a linha com o peixe para tentar tirar o anzol. Só que o robalo tem várias serras afiadas nas guelras e se sacudiu todo. Cortou o dedo do novato e escapou.
Já ensinei um cidadão a tirar as vísceras de um baiacu-ará, que tem um veneno fortíssimo, mas cortando e limpando no lugar certo rende um filé maravilhoso. No dia seguinte, o bicho me trouxe um pedaço do filé, preparado pela esposa dele.
DOMINGO_Correu o boato de que haveria uma corrida no Aterro antes da Maratona de São Sebastião, no feriado do dia 20. Fui trabalhar bem cedo, para receber o gelo e o coco, e já tinham muitos carros no estacionamento, inclusive na minha vaga.
O movimento logo esquentou. Com o sol que anda fazendo, a gente derrete até parado na sombra. Todos os clientes parecem chegar ao mesmo tempo, provocando um tremendo nó. Eu e meu ajudante, o Salvador, fomos desenrolando com a ajuda da minha esposa, que sempre trabalha comigo nos fins de semana. Por volta das três da tarde o pessoal começou a ir embora porque os jogos da Taça Guanabara passam na tevê. Também fui para casa mais cedo.
SEGUNDA-FEIRA_Dificuldade para acordar, o corpo só queria cama. Comecei a pensar nas contas que vêm aí e logo tratei de levantar. Fiz as orações que sempre faço antes de começar o trabalho às 6h30 e aos poucos fui pegando o embalo.
Chegaram vários carros de turistas. Se você tratar bem o guia, está conquistando o turista. É ele quem vai trazer o cliente. Sempre tenho à mão um folheto falando dos benefícios da água do coco, que tem potássio, ferro, essas coisas. Acho que foi o Hortifruti que distribuiu o texto original em português, tempos atrás. Uma cliente, que faz tradução e legendas de filmes, fez uma versão em inglês para mim. Também tenho o texto em alemão, chinês e francês. A versão em japonês, mais demorada e difícil, foi presente de outro cliente, que trabalha no Consulado do Japão.
A maioria dos turistas pede coco docinho. Eu reconheço pelo som. Bato na casca e sei qual o tipo porque cada um emite um som: agudo é doce e abafado é verde. Os diabéticos preferem o coco verde. Os turistas ficam abismados quando você coloca o coco na mão e dá aquela cortada com o facão. Seria muito mais prático e fácil usar furadeira, mas a graça, para o turista, está no facão. No início, tive de tomar coragem porque a mão está embaixo, então dá medo. Você tem de afiar o facão toda hora senão ele prende na casca e vai demorar mais para cortar.
O pessoal também pede para eu cortar o coco depois de tomar a água, para comer a polpa. Em dois pedaços eu não corto. Se você cortar ao meio, o facão pode vazar e pegar a mão. Corto em três pedaços porque, mesmo se a casca for fina, o facão vai atingir o outro lado do coco, e não minha mão. Em seguida faço uma orelha, a casquinha para o pessoal raspar o coco, e o guia ensina ao turista o que fazer com aquilo.
TERÇA-FEIRA_Logo que comecei a atender, apareceu um mala querendo conversar. Contou que veio até o Rio para enterrar um irmão e que o voo dele de volta para o Nordeste só sairia às 19h30. Eu sempre fico com um pé atrás com as pessoas que falam demais. Ele acabou indo embora, um alívio!
Mais tarde, minha mulher telefonou para dizer que fez uma salada para mim. Em seguida, ligou de novo para pedir 100 reais para ajudar nas compras. Mulher é igual a mingau: primeiro dá uma colherada nas beiradas; se estiver frio, parte para dentro.
Fui embora às 19 horas, porque amanhã tem a corrida do feriadão logo cedo.
QUARTA-FEIRA, 20 DE JANEIRO, DIA DE SÃO SEBASTIÃO_A maratona estava concorrida, e o sol castigando. O movimento logo bombou, só que eu esperava mais gente.
Como meu pai morreu num dia 20 de janeiro, passei o dia concentrado na imagem dele. Recebi duas notícias tristes: a égua de um dos policiais que fazem a ronda pelo Aterro faleceu de pneumonia. Eu tinha o maior carinho por ela. Depois me contaram que o Aramis, o dogue alemão deles, também morreu. Quando o Aramis me via, fazia umas brincadeiras brutas e carinhosas ao mesmo tempo. Ele era grandalhão como eu. Os clientes curtem o carinho que eu tenho pelos cães.
Minha mulher veio me ajudar no final do dia e fomos embora juntos.
SEXTA-FEIRA_Aprendi que, para conquistar, você precisa sorrir e agradecer a presença dos clientes. Outra coisa importante é gravar o nome do freguês. Assim ele fica mais próximo e te dá preferência.
Já vi muita criança passar aqui na garupa das bicicletas, coisinhas bem pequenas, e acompanhar o crescimento delas. Elas me chamam de “Tio Barriga”. Também sei que não se deve misturar as coisas, pois cliente é cliente, sempre no respeito.
Meu recorde de venda aconteceu numa quinta feira, 27 de setembro de 1995, dia de Cosme e Damião. Lembro da data porque é a mesma do meu aniversário de casamento. Eu comprava o coco por 50 centavos e revendia por 1 real. O dólar custava quase 2 reais, mas os turistas pagavam em dólar. Minha esposa ficou só recebendo as notas de dólar, e eu cortando coco pra todo mundo. Eu era sozinho, ainda não tinha ajudante, em meio daquela montoeira. Todo mundo balançando nota de dólar e eu cortando feito um louco. Trabalhei, excepcionalmente, por nove horas seguidas. Vendi 930 cocos!
QUINTA-FEIRA, 11 DE FEVEREIRO_A entrega do coco me deixou na mão. O caminhão do Espírito Santo ainda estava a caminho, e o da Bahia quebrou na estrada. Por sorte, meu estoque de anteontem ainda aguentou ontem e hoje. É que as aulas recomeçaram, o movimento caiu bruscamente e muita gente só quer saber de se preparar para o Carnaval. Nas férias, vendo mais de 100 cocos por dia, e agora passei a vender a metade. Aproveitei para lavar os isopores com água sanitária e fazer faxina na Kombi. Não tem carro melhor do que Kombi: qualquer açougue vende peças de reposição.
SEXTA-FEIRA_Falei para um dos meus clientes idosos, o Adir: “Quando eu chegar na tua idade, quero ser como você.” O pessoal chama o seu Adir de Lobo do Mar. Pessoa respeitada. Está com 87 anos. Ele chega de bicicleta, atravessa o Aterro pela passagem subterrânea e pedala até o Clube Guanabara. Ali, pega o barco dele, rema até a cabeceira da pista do Santos Dumont e volta aquilo tudo. Todo mundo acena: “E aí, Adir!” Depois chega aqui de bicicleta, bebe água de coco e vai fazer a vida dele. É assim quatro vezes por semana.
Também tem o seu Amadeu, de 92 anos, que faz caminhada com a esposa, de 78. Não tenho visto o seu Amadeu, mas o português tem uma energia tremenda, não deve ter morrido, não, deve estar bem. A maioria dos meus clientes está na faixa dos 60 pra cima, tudo paizão.
SÁBADO DE CARNAVAL_Carnaval, para mim, atrapalha, porque meu forte é o cliente local, que já me conhece. O cliente de fora torce a cara para o meu isopor. Gosta mais de quem tem um trailerzinho. “Ah, ele é bonitinho, tem um trailerzinho.” Aí você se sente inferiorizado, mesmo sabendo que o seu trabalho é melhor que o do trailer. Se eu soubesse que era tão bom ser ambulante, não teria investido 9 mil numa mercearia com meu cunhado, e sim num trailer. A pessoa que vem de fora não te dá aquele valor por você trabalhar numa Kombi, com isopor do lado de fora. Se eu tivesse um trailer, todo mundo ia babar a meus pés. Mas como não tenho sócio nem nada, toco como posso.
Também tem a questão da roupa, que queimo toda hora. O coco é ácido, respinga, o potássio mancha a roupa, mancha o carro, mancha tudo. Não é que eu ande sujo, não. É tudo limpo, apenas manchado. Se vestir camisa nova, perco no mesmo dia.
Em compensação, nunca fui assaltado, graças a Deus. Só vejo mesmo é roubo de bicicleta. O pessoal chega e diz, “Poxa, seu Emir, os assaltantes estão bem lá na esquina. O senhor podia chamar a polícia.” Cansei de fazer isso. Tenho os telefones todos – da Guarda Municipal, dos bombeiros, dos policiais que atuam na área, com os números particulares deles.
Da última vez, uma senhora chegou afobada. Tinha acabado de ser assaltada e reclamava da falta de policiamento. Dois caras tinham pulado das pedras e, sem mostrar qualquer arma, mandaram que ela entregasse o que tinha. Chamei a Guarda Municipal, que demorou muito e a senhora disse que não ia aguardar. Fiquei chateado: “A senhora vai me deixar nessa situação? Eu vou dizer o quê para eles?” Ela foi embora e eles chegaram 40 minutos depois.
Não me meto mais nisso, pois acaba sobrando para mim. A senhora foi assaltada? Liga para o 190. Para outras coisas, procuro ajudar. Quando um motoqueiro saiu aqui do estacionamento pelo lado errado e um ônibus o pegou feio, acionei bombeiro, polícia, Guarda Municipal, todo mundo. O rapaz nasceu de novo, quebrou só o tornozelo em sete partes. No atropelamento de um gari, que foi jogado lá para o alto, acionei a fiscalização da Comlurb e deu certo. No fundo, por estar sempre aqui, acham que sou a pessoa que pode resolver os problemas. Foi assaltado? Vai lá no seu Emir. Tem um tarado exibicionista nas pedras? Chama o seu Emir.
SEXTA-FEIRA, 19 DE FEVEREIRO_Hoje me aborreci. Poxa, estou começando a atender uma pessoa quando chega um cara bufando, sedento, querendo ser atendido porque estava quente demais. Quer dizer que vou deixar de atender quem estava esperando para você passar na frente? Bicho, ou você espera ou, me desculpa, segue teu caminho porque não estou brincando com um facão na mão. Nem sempre o sujeito tem compreensão. Ele quer que as duas pessoas ali trabalhando (meu ajudante e eu) sejam duas máquinas para atender o desejo dele. Na verdade, tem cliente folgado pra caramba. Eles pegam uma cadeira do meu ponto e vão sentar no meio da passagem dos carros, dificultando o acesso ao estacionamento.
Em compensação, tem cliente que não esquenta. “Emir, atende ele, depois você me atende.” É o bem-amado. Nesses casos, tiro o pior coco para o afobado, haha. Até já ensinei para o meu ajudante qual coco dar para quem. O “cliente quatro estações” tem de ser muito bem atendido porque é ele que me sustenta o ano inteiro. Ou melhor, ela, porque a maior parte da freguesia é mulher. São elas que decidem onde e quando a família vai interromper a caminhada para descansar.
SÁBADO_Amanhã é domingo e a galera vai se reunir em torno da Kombi para colocar as fofocas em dia com a minha esposa. Política nem pensar, só sacanagem. E dá-lhe cerveja. Eu e minha mulher tivemos uma lanchonete árabe na rua Djalma Ulrich, em Copacabana, e no começo ela tinha vergonha que os amigos e antigos clientes a vissem como ambulante. Mas bastou ela experimentar, num fim de semana, que acabou gostando. Eu insisti muito para ela vir me ajudar porque era difícil conciliar o corte de coco com o preparo de salgados. Ela frita na hora, com muita higiene, e todo mundo gosta.
Quando a pessoa vem comprar comigo, procuro saber o que ela faz. Tem coordenador da fiscalização, tem vereador, tem muito empresário, um conhece alguém que conhece outro, vai dando um toquezinho. Tem um oftalmologista que fez um programa na Band, recentemente. Foi meu ajudante que me contou. Ele cuida de crianças com catarata congênita. Explicou que óculos de sol de ambulantes não servem para nada, não eliminam os raios ultravioleta. Preferível ficar sem. Não gosto de óculos escuros.
Adoro minha coleção de clientes caninos. De vez em quando sai uma pancadaria entre eles, macho com macho, macho com fêmea, mas logo volta tudo às boas. Tem a Marisha, uma golden – ela, sozinha, é quatro cocos por dia. Tem a Cheirosa, o Leo, que bebe coco todo dia (o cachorro, não o dono). Tem o Zé, o Zeca e o Bartolomeu. As pessoas têm botado muito nome próprio em cachorro. Meu cunhado Bartolomeu passou por aqui dia desses e conheceu o cachorro Bartolomeu. Foi superengraçado porque ele não aceitou a brincadeira muito bem, não.
DOMINGO_O jogo Botafogo x Vasco foi às cinco da tarde. Fechei tudo para assistir. Tenho que me dar um prazer, pensei comigo, porque era final de campeonato. Minha irmã ainda me chamou para assistir na casa dela. Mas não ia dar tempo de tomar banho, trocar de roupa e ir até lá. Também teria de deixar a Kombi na rua, e o porta-malas não está fechando. Achei melhor ver num restaurante perto de casa. O Vila Rica estava com televisão ligada e ar-condicionado a mil. Tomei cinco chopes, comi uma pizza de calabresa grande, soltei um palavrão no primeiro gol e me diverti.
SEGUNDA-FEIRA_Acordei cedo e saí com aquela motivação! Todo mundo brincando comigo: Botafogo campeão, parabéns! Coloquei um pôster de jornal com a foto do time na Kombi. Tem sempre uns flamenguistas que não perdoam.
Errei na quantidade de gelo. Achei que hoje o Brasil ia começar a trabalhar, pois o Carnaval tinha acabado, mas foi justamente o que não aconteceu – deve ter vagabundo demais no Rio de Janeiro. Minha programação era sair do ponto por volta da uma da tarde, por falta de gente. Acabei saindo por falta de gelo, sem condições de trabalhar.
Na Copa do Mundo, em junho, vou ter um prejuízo danado nos dias de jogo do Brasil. Quatro anos atrás, os jogos eram às onze da manhã, pela diferença de fuso horário com a Alemanha. O pessoal só caminhava até as 9, 10 horas no máximo.
O próximo dia 1º de março, aniversário da fundação do Rio, vai cair numa segunda-feira. Acho que não vou trabalhar. É véspera do dia em que completo 50 anos, e quero festejar com minha família na Fortaleza de São João, na Urca. Tenho uma carteira que me permite acesso, mas minha esposa e irmã não têm. Vou ver se consigo autorização para levar todo mundo. Tem um cantinho lá no meio das pedras que é uma maravilha, parece uma piscina natural. A praia é linda e isolada. Você leva uma cervejinha, senta na água, deixa ela bater no seu peito e fica lá só bebendo, conversando e pegando sol. Depois, uma churrascaria. Programa simples. Não tem melhor.
TERÇA-FEIRA, 23 DE FEVEREIRO_Dentro de dois meses começa a temporada de fotos de formandos, aqui neste cenário de cartão-postal. É bom, aumenta muito a venda. Todo mundo quer tirar foto de convite de formatura com o Pão de Açúcar ao fundo. A temporada começa em abril, os grupos vêm vestidos com aquelas roupas pretas compridas e ficam horas posando num calor danado. Os caras da empresa responsável pelos convites já me conhecem e sempre vêm beber alguma coisa e comer um salgadinho. Aí chega um formando, prova, gosta, chama outro, e pronto, o dia está ganho.
Tenho muito cuidado com o que vendo, não encomendo mais do que acho que vou vender. É que coco tem prazo de validade. Se ainda estiver no cacho, ele aguenta de doze dias a duas semanas. Se estiver solto, aguenta dez dias. Se for dentro d’água, aguenta só três dias, porque a casca do coco absorve qualquer água (gelada ou não) e dá gosto ruim rapidinho. Quando a casca fica encharcada, ela muda de cor, fica roxa por baixo, e não tem jeito, tem que jogar fora.
Mas não reclamo de nada – reclamar do quê, nessa paisagem? Licença para trabalhar num lugar como este costuma ser dada para pessoas com deficiência, idosos, pessoas assim. No começo, eu não podia vender cerveja, e então eu vendia por baixo do pano. Sem cerveja, nesse Rio, você perde muita venda. Há uns dez anos, apareceram uns fiscais querendo me dar prejuízo. Mas meus clientes cercaram a Kombi e impediram a apreensão da mercadoria. Logo consegui minha primeira licença. Nem acreditei. Meu coração bateu como se tivesse corrido uma maratona. Tomei um coco para me refrescar.
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