ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Fé nas alturas
Santa Cruz bate o Rio e Nova York
Cristina Tardáguila | Edição 42, Março 2010
Em meados de 2007, uma pequena comitiva de Santa Cruz, município de 35 mil habitantes no agreste do Rio Grande do Norte, passou pela Cidade Maravilhosa e fez o que fazem pencas de comitivas municipais, representando cafundós de todo o planeta: foi visitar o Cristo Redentor. À sombra da estátua-símbolo do país, o então prefeito Luiz Antônio Lourenço de Farias se viu confrontado por um assessor: “Tomba, duvido que você faça em Santa Cruz uma estátua de Santa Rita maior do que essa.” Tomba inspirou todo o ar que pôde: “Pois eu faço!”
Duvidado, dito e feito, três anos depois a italiana Rita de Cássia – padroeira das causas perdidas, das coisas impossíveis e da pequena Santa Cruz – pode ser vista de longe, muito longe, pelos motoristas que trafegam na BR-226 em direção ao Tocantins. Postada no topo do monte Carmelo, única elevação das redondezas, ela destituiu do lugar o cruzeiro que deu nome à cidade e a Nossa Senhora do Carmo que batizou a colina. Tal qual membros decaídos do Politburo soviético, o Lenho e a Virgem desapareceram para maior glória de Rita.
Ninguém protestou, pois a fé na santa parece estar muito acima da fé em Cristo e em Nossa Senhora. Em meados de fevereiro, quem partisse do centro da cidade para o monte encontraria no caminho a Padaria Santa Rita, a Marcenaria Santa Rita, a Casa de Tecidos Santa Rita, a Farmácia Santa Rita e o Pet Shop Santa Rita. Em seguida, engatando a primeira, derrapando aqui e ali, venceria o quilômetro e meio de terra batida que desemboca na parte de trás do santuário e ali, enfim, se depararia com a estátua quase pronta.
Projetada para ter 56 metros de altura e surgir no horizonte do viajante muito antes de ele chegar a Santa Cruz, a imagem já está com os 6 metros da base e os 42 que vão do pé ao cocuruto. Aguarda apenas a instalação do resplendor que lhe coroará a cabeça e a porá 8 metros mais pertinho do céu. Em junho, portanto, quando for inaugurada, a Santa Rita de Santa Cruz ostentará dois respeitáveis títulos internacionais: será a maior estátua das Américas – vencendo a da Liberdade (com 46 metros) e o Cristo (com 30) – e a maior imagem católica da Terra.
A vida de Rita não foi feliz. Nascida em 1381 na pródiga Úmbria, onde também viram a luz são Francisco, são Bento e santa Clara, ela penou muitíssimo neste mundo. Tomava pancada do marido com notável frequência e, quando enviuvou, os filhos (gêmeos) encasquetaram com a ideia de vingar a morte do pai, que fora assassinado. Antes que danassem de vez suas almas, Rita preferiu pedir a Cristo que levasse os meninos. (Efetivamente, graças a Deus, morreram ambos pouco tempo depois, de doença grave.) Como se não bastasse tanto desgosto, ela passou boa parte da vida com uma chaga pútrida na testa, provocada por um espinho místico da cruz do Senhor, o que a infernizava com terríveis dores de cabeça.
A fieira de desgraças talvez ajude a explicar por que a Santa Rita santa-cruzense se mostra tão sombria. O colosso é feito de concreto cinza-escuro. Tão escuro que o admirador cá embaixo não distingue bem os traços de seu rosto. Custa a saber, por exemplo, se ela está olhando para a cidade ou para a rodovia, e se está ou não sorrindo (não deve estar, não).
O responsável pelo projeto é o arquiteto pernambucano Alexandre Azêdo, filho do escultor que criou o Padre Cícero de Juazeiro do Norte (27 metros). Santa Rita custou 5 milhões de reais aos cofres públicos, rachados entre governo federal (3,7 milhões), governo estadual (1 milhão) e prefeitura (300 mil). Nem todo mundo achou que esse dispêndio caía na rubrica “Prioritário”. Há sempre a turma do “com-isso-aí-dá-pra-fazer-x-escolas-ou-x-hospitais” – era o que se ouvia no Café do Galego, um bar de 2 metros quadrados onde se reúne praticamente toda a intelectualidade da cidade.
Uns passos adiante e o ponto de vista mudava. “Aquilo é um monstro”, “Não aguento mais olhar pela janela e dar de cara com aquele troço”, “Deus vai mandar uma chuva forte e arrastar a estátua morro abaixo” –, assim disseram alguns frequentadores dos mais de trinta templos evangélicos da cidade (os católicos têm apenas quatro igrejas à disposição). Esses também preferiram se manter no anonimato. Em cidade pequena, explicam, quem bate de frente com o prefeito pode esperar que vem retaliação, e quem enfrenta a igreja católica vira demônio. O jeito é engolir a Santa Rita (ou pelo menos virar a cara).
E podem falar à vontade, porque o ex-prefeito Tomba e seu sucessor, Péricles Farias, não estão nem aí e têm circulado pela cidade com sorrisos de orelha a orelha, confiantes em que o turismo catapultará Santa Cruz para um futuro resplandecente.
Os elementos mais empreendedores da cidade já começaram a se mexer. “Investi 80 mil reais para duplicar o número de leitos”, conta o ex-fuzileiro Reinaldo Ramos, varrendo o chão de sua pousada. “Em outubro vou ter vinte quartos.” Santa Cruz será a próxima Aparecida do Norte, acredita, e não se sabe se é com felicidade ou apreensão que ele antecipa o desastre em que, se Deus quiser, a cidade mergulhará: “O trânsito vai ficar caótico. O pessoal vai ter que estacionar o carro ou o ônibus em algum canto que ainda não foi criado. No monte, eles só vão encontrar uma lanchonete e um restaurante pequeno, e a cidade só tem nove pousadas, contando a minha.”
Os poderes constituídos não estão preocupados. Ao aprovar o projeto de construção do santuário, Tomba se eximiu de dar uma espiada em como cidades que vivem de devoção e fé, como Fátima, em Portugal, e Lourdes, na França, lidam com multidões. Péricles Farias também entregou a Deus. Não faz ideia de quantos fiéis esperar depois da inauguração, mas sabe o que responder a boa parte das perguntas que lhe fazem sobre o futuro: “A fé não tem tamanho.”
Isso não tem mesmo, mas agora é saber qual delas se alevanta mais alto. Se vier chuva forte, palmas para os evangélicos; se houver disputa por vaga em pousada, Tomba desfilará em carro de bombeiro. E se rigorosamente nada acontecer, de duas, uma: ou os infiéis do Café do Galego estarão certos, ou santa Rita de Cássia, modesta que era, terá preferido manter os olhos nas coisas do céu.