ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Muito além do Saara
Finalmente uma esquina que usa a palavra “cáfila”
Cristina Tardáguila | Edição 45, Junho 2010
O céu já estava escuro sobre o mar de Genipabu, no Rio Grande do Norte, quando Philippe Landry enterrou na areia a metade fumegante de um cigarro. Sem pressa, deixou a mesa da varanda e foi destrancar o portão que separa sua casa da praia mais badalada da região. Do lado de lá, serenos e pacientes, alinhados em perfeita formação, nove dromedários esperavam autorização para cruzar o quintal e seguir até o galpão onde pernoitariam. “Podem trazer os bichins“, ordenou Landry com seu inverossímil sotaque franco-nordestino. Os funcionários começaram a tocar os bichos.
Desde 1998, Philippe Landry, um suíço de 53 anos, comanda a Dromedunas Turismo – “Nada contra o Saara, mas o nosso deserto é melhor” – e aluga camelos de uma só corcova a quem queira percorrer as dunas de Genipabu em passeios oníricos, telúricos, poéticos ou lúdicos – o aventureiro escolhe.
Landry lembra o ator Anthony Hopkins, em versão tropical, puxado para o magenta. Nascido numa vila gélida perto de Basileia, é medianamente grisalho, tem olhos azuis-claros e a pele ressecada de sol. Em 1991, ainda na Suíça, resolveu deixar de lado o trabalho de chef pâtissier – é especialista em pães, bolos e tortas – para dar uma volta ao mundo com a família. Quando aterrissou no Rio Grande do Norte, abortou o projeto, convencido de que o mundo podia se resumir a Genipabu.
Ali, na beira do mar, comprou uma casa de paredes azuis e se estabeleceu. Pouco depois, num dia de bebedeira, teve uma dessas ideias que só a expansão etílica é capaz de gestar: queria importar dromedários e oferecê-los para passeios turísticos ali mesmo, na frente de casa. Entre a ideia e a implantação da empresa, quase nada se passou.
“Esse é o Mário, meu bichin preferido”, diz o empreendedor das dunas, alisando o pescoço marcado a ferro de um dromedário baio de mais de 2 metros de altura e algo como meia tonelada. “Ele é muito bonzinho. Deve ter uns 50 anos e já carregou peso na África, na Espanha. Não dá trabalho. Se comportou direitinho na viagem para cá e até hoje obedece aos comandos de voz.”
Eles viajaram juntos há doze anos, quando Landry comprou seus seis primeiros dromedários. A bordo de um avião da Iberia, a comitiva saiu de Las Palmas, nas Ilhas Canárias – onde é corriqueiro o aluguel de camelídeos para passeios nas praias –, fez baldeação em Madri e desembarcou no Rio de Janeiro, onde Landry descobriu um caminhoneiro gaúcho suficientemente intrépido para conduzir seis gigantes ao longo de 2 625 quilômetros de estradas brasileiras. Nascidos para a vida rude, todos os dromedários chegaram bem.
No galpão onde eles passam a noite, Landry manda soltá-los. “Tóx!”, grita um funcionário. No mesmo instante, Mário, antes de todos, dobra as patas e se deita. Nem o patrão nem os empregados sabem ao certo de onde veio o comando ou como é escrito, mas o fato é que funciona. Do chão, o dromedário acompanha a conversa com ar meio ansioso. Quer se ver livre da sela de dois lugares que leva nas costas há quase doze horas. Para retirá-la é preciso mobilizar dois homens – são mais de 60 quilos.
O batente começa cedo e acaba tarde na Dromedunas. Landry acorda às cinco da manhã. Depois de se inteirar com o vigia sobre como transcorreu a noite, ele ajuda na selagem e na alimentação dos dromedários, que estarão no topo das dunas por volta das 7h30 e de lá não retornarão antes das 18h30. Todos os dias, com chuva ou com sol. “No começo, eu mesmo gerenciava tudo lá na duna, mas estou ficando velho e não é fácil trabalhar de sol a sol”, diz Landry.
“Além disso, cansa essa história de achar um jeito delicado de dizer à pessoa que ela é gorda demais para o dromedário.” Enquanto fala, ele vai enchendo de ração o cocho do órfão Raji, o caçula. “De uns tempos para cá”, continua, “estou poupando o Mário, que está velhinho. É maldade fazer ele carregar turistas que pesam mais de 100 quilos.” Segundo o site da Dromedunas, cada dromedário pode levar até 500 quilos. Dois adultos ou quatro crianças é o limite autorizado pela empresa.
Todo mês Landry compra uma tonelada e meia de feno e outro tanto de ração bovina. Em época de custos veterinários explosivos, ele é cauteloso e está em dia com o plano de saúde que fez para cada um dos seus ruminantes. Entre alimentação e saúde, a cáfila consome 5 mil reais por mês.
O faturamento diário médio da Dromedunas é de 1 500 reais, com picos em janeiro e julho. Cada dromedário faz de cinco a dez passeios por dia. São trajetos de 700 metros percorridos em não mais de vinte minutos, com direito a três paradas para fotos. O bicho não reclama de nada. O aluguel de um dromedário full, ou seja, com os dois assentos ocupados, sai por 60 reais. Aceitam-se cartões de crédito. Curiosamente, a burocracia enquadrou a empresa no sindicato de hotéis, bares e restaurantes. Do lado trabalhista, ainda não existe no país uma organização que defenda os interesses dos guias de dromedário.
Mário, finalmente sem a sela na corcova, recebe agora a sua cota de feno e ração, e depois de ganhar um último afago de Landry, ouve quando o dono se despede de todos – empregados e dromedários – desejando-lhes uma boa noite. Desde 2001, nasce quase um dromedário por ano no galpão. Já são nove os potiguares: Ali, Said, Aquim, José, Hani, Moisés, Jade, Sherazade e Raji. Candelária II está prenhe novamente.
De volta à sua varanda, Landry seca o suor da testa com a ponta da camisa e acende outro cigarro. Fica em silêncio até a segunda baforada. Aí, com os olhos fixos no mar, diz em voz muito baixa: “Isso daqui não parece, mas é uma grande empresa.”