ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Questão de identidade
Só o amor salvará o último cine drive-in
Daniela Pinheiro | Edição 46, Julho 2010
Primeiro, compra-se a entrada: 14 reais por uma inteira e outros 7 para a acompanhante. Depois, ouvem-se as instruções da bilheteira: “Se quiser lanche, deixe o farolete ligado no baixo. Se estiver em perigo, ligue o pisca-pisca. Se for embora no meio, não acenda o farol.” Os espectadores assentem e recebem uma folha xerocada, na qual se apresenta, de um lado, o cardápio de bebidas (garrafa de vinho tinto, 18 reais), petiscos (hot dog completo, c/ milho, queijo e batata palha, 4 reais) e ofertas de ocasião (promoção pipoca: 1 lata de refrigerante + 1 pipoca, 5 reais). Virando o lado, a confirmação de que se está no lugar certo: “O maior cinema ao ar livre do país!”
Dali a cinco minutos, começaria mais uma sessão do drive-in de Brasília, último remanescente brasileiro de um modo de ir ao cinema que já fez a alegria de gerações – as de então e as que viriam a nascer, pois muita gente não existiria não fosse uma sessãozinha romântica no desconforto do banco de trás. Com capacidade para 500 carros e localizado dentro da área do autódromo, no coração da capital federal, o drive-in de Brasília resiste ao tempo (mau ou bom), às salas de shopping e às privações impostas pelo bom-tom politicamente correto.
O drive-in é o éden dos gordinhos, que podem se espalhar sem culpa pelas poltronas do carro. É a solução para fumantes, que simplesmente abrem as janelas para baforar ao relento. É o sossego das velhinhas, especialistas em comentar cada cena do filme oitavas acima do que convém nas salas tradicionais. É a redenção dos despojados, que podem aparecer de pantufas e pijamas. É a Arcádia dos modernos aflitinhos, que podem se pendurar à vontade nos seus inúmeros celulares. E é, sobretudo, o ninho das urgências de todos os apaixonados – oficiais ou não. (Ainda não inventaram nada mais propício a uma discreta pulada de cerca, nem a preços tão honestos.)
Numa quinta-feira de junho, assistia-se a Chico Xavier no telão de concreto de 312 metros quadrados. Imagem nos trinques, graças a um equipamento que não faria feio em nenhum lugar do mundo. Quanto ao som, o progresso decerto fez cair o queixo de quem esperava aqueles alto-falantes abafados que, no passado, eram presos ao vidro do automóvel. Nada disso, senhores, vejam só: o antigo sistema foi substituído pela sintonia fina. Os interessados no que Chico Xavier tinha a dizer sobre este e o outro mundo precisavam apenas ajustar o dial na frequência modulada 88,7.
A projeção começou exatamente às 20 horas, com uma plateia composta por quatro veículos estacionados no mínimo a 100 metros um do outro (não por determinação da bilheteira). Num carro vermelho, um casal mantinha as janelas abertas. Fumavam, ouviam música de discoteca em alto e bom som e aproveitavam para se conhecer melhor: “Mas você nunca foi para Pirenópolis? Não acredito!”, espantava-se, compreensivelmente, a mulher. Mais longe, via-se um táxi branco. Ao volante, um senhor na casa dos 60 anos; do lado, um rapaz na faixa dos 30.
Em outro canto, um utilitário prateado ligou o farolete. O casal cinquentão estava com fome. Passados uns minutos, surgiu no escuro a garçonete, que também acumula as funções de bilheteira, projecionista e cozinheira. O quarto carro estacionara tão no além, que dava vontade de apostar dez promoções de pipoca + refrigerante: seus ocupantes não estavam enxergando uma letra dos créditos de abertura. Tinham mais o que fazer.
Desde 1997, a piauiense Marisa Ferreira é a faz-tudo do cinema. Ela diz que adora: “É um trabalho muito bom. Estou sempre vendo os filmes da moda, não tem problema de segurança e os clientes me tratam muito bem.” Com os braços transbordando de latas de refrigerante, Marisa concordou que o movimento estava fraco. “Mas semana que vem, Dia dos Namorados, isso aqui lota!”
O primeiro cinema drive-in de que se tem notícia foi inaugurado em Nova Jersey, nos Estados Unidos, em 1933. Sete anos depois, havia 1 500 em todo país. No Brasil, na década de 70, a maioria das capitais tinha o seu. O de Brasília foi fundado em 1973. Um grupo de engenheiros cariocas obteve licença do governo do Distrito Federal para explorar a imensa área.
Foi quando o pai da atual proprietária, a nutricionista Marta Fagundes, de 50 anos, entrou no negócio: “Ele gerenciava tudo e eu o ajudava. Minha ligação com o drive-in começou aí.” Até o início dos anos 80, o empreendimento era um sucesso. Famílias se reuniam nos domingos à noite, com crianças enroladas no cobertor para assistir aos lançamentos infantis. Durante a semana, jovens casais trocavam carinhos à luz tremulante das fitas mais modernas da época.
“Naquele momento, havia doze salas de cinema em Brasília. Hoje são setenta. É difícil sobreviver”, diz Marta. Em 1988, os prejuízos haviam se acumulado tanto que foi preciso fechar as portas. No ano seguinte, Marta juntou suas economias e entrou numa licitação para assumir o negócio. Venceu.
Em 1995, o ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet arrendou o autódromo, em cujo terreno o drive-in está instalado, e Marta passou a se reportar a ele. A parceria durou dez anos, mas o descaso com o espaço de projeção era evidente. Piquet acabaria se afastando, e Marta ficou ainda mais desamparada. Hoje o drive-in se encontra numa zona pantanosa do código comercial. O governo do Distrito Federal não renovou o contrato dela, mas também não lançou outro edital.
“Essa política de Brasília está um caos”, lamenta Marta. “Esqueceram de mim. O cinema se paga, mas eu só sobrevivo porque tenho outra fonte de renda.” As sessões infantis, aos sábados e domingos, ainda estão cheias de crianças, mas durante a semana o movimento não passa de dez carros. “Há essa impressão errada de que aqui é um lugar ‘para namorar’. Ligam direto para perguntar se tem cama, se o filme que vai passar é picante… Não sei o que eles pensam…” Por amor ao ofício, talvez, Marta passa ao largo do fato sabido e consabido de que boa parte da humanidade não pensa necessariamente em cinema quando o assunto é drive-in.
Naquela quinta-feira, mais onze carros entraram durante o filme. Dois permaneceram menos de meia hora. Três estacionaram de costas para a tela. Marisa, a bilheteira-projecionista-cozinheira-e-garçonete, serviu batatas fritas, nuggets e Coca-Cola para o casal do carro prateado. Ninguém mais a chamou. Felizmente, confirmaram-se suas previsões para o 12 de junho. Com mais de 60 veículos pagantes, o Dia dos Namorados bateu o recorde de ocupação dos últimos meses. Foi uma sessão de gala, provando que o drive-in continua a honrar sua mais cara tradição.