ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Escandinávia à beira da Guanabara
Marque uma visita quando roubarem o seu celular
Clara Becker | Edição 48, Setembro 2010
Eram 10 horas da manhã de um dia útil quando um Renault Sandero estacionou numa esquina da avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio. Um homem forte abriu a porta do motorista e saiu do carro com uma impressora embaixo do braço. Pelo lado do passageiro desceu uma moça alta, de pernas compridas e cabelos negros com cortezinho Chanel. Além da bolsa, ela carregava um notebook. O casal olhou para os lados, como para se certificar de que ninguém os seguia, atravessou a rua e desapareceu na escuridão de uma galeria. Poderiam ser o par romântico de um filme de ação.
De ação, até que eram. Sheila Rocha, de 25 anos, e Christian Salum, de 34, são inspetores de polícia. Naquele dia estavam à paisana, com viatura descaracterizada, e o motivo era a natureza da missão: fazer um boletim de ocorrência em domicílio. O serviço delivery é o mais novo mimo que as Dedics – Delegacias de Dedicação Integral ao Cidadão – prestam ao combalido habitante do Grande Rio. Por enquanto, apenas moradores de Copacabana, Leblon, Gávea, Barra, Tijuca, Campo Grande e Icaraí (em Niterói) podem usufruir desse conforto. O plano é que até 2014, ano da Copa – sempre ela –, toda a região metropolitana possa registrar uma queixa sem sair de casa.
Desde março, quando foi implantada a Dedic na 12ª DP de Copacabana, 150 pessoas se beneficiaram da comodidade de receber em casa ou no trabalho policiais que chegam com a traquitana necessária para registrar mais um episódio banal na vida de uma grande cidade brasileira. “As queixas mais frequentes são de furto e estelionato. Furto de celular é o número 1. As pessoas andam falando no aparelho e alguém passa por trás e leva”, conta Sheila, que integra o grupo de oito policiais selecionados pela 12ª DP para prestar o atendimento. Foram escolhidos por serem os mais comunicativos do contingente.
Sheila e Christian formam uma delegacia ambulante. A inspetora já fez registros em papelarias, restaurantes e bancas de jornal. Entrou em cerca de trinta residências de desconhecidos e saiu de cada uma delas com a certeza de que a polícia marcou uns pontinhos na árdua batalha para lustrar um pouco a própria imagem.
Os policiais tomam o cuidado de não irem uniformizados para evitar constrangimentos com a vizinhança. Sendo o Rio de Janeiro a cidade que é, o vizinho de porta poderá deduzir que mora ao lado de um célebre traficante internacional, agora finalmente exposto. (Conhecendo a fama da polícia, se tiver bom coração ele temerá pela sorte do condômino meliante.)
Por prudência, o pessoal da Dedic achou melhor disfarçar. Pensou-se em tudo. O procedimento determina que, dez minutos antes da visita, a vítima deve ser informada, por telefone, do nome dos policiais e da placa do carro em que eles estarão. Além de tranquilizar o cidadão mais desconfiado, a medida tem o benefício adicional de evitar que apareçam em hora imprópria. Sheila e Christian nunca foram recebidos por ninguém de pijama ou de toalha de banho, muito menos ouviram sussurros amorosos seguidos de uma porta de armário se fechando. Cachorros bravos sempre são presos de antemão.
Com exceção de homicídio e roubo de automóvel, qualquer incidente pode ser resolvido a distância das filas na delegacia. A única exigência é que a ocorrência e o registro dela estejam circunscritos ao mesmo bairro. Naquela manhã, um cidadão ocupadíssimo agendou por internet a visita dos policiais para o seu local de trabalho, uma loja de malas. A queixa era de furto. Imprevidente, deixara o celular em cima da mesa do bar para ir ao banheiro e, claro, zapt!
Em questão de minutos, os inspetores inseriram as informações no sistema e imprimiram a ocorrência. Bom demais para ser de graça, a vítima perguntou quanto devia aos policiais. Boquiaberto, ouviu a resposta, talvez imaginando que estava na Suécia. “Volta e meia acham que o serviço é pago, mas não é”, diz Christian.
Por trás do Dedic está o lutador de jiu-jitsu, surfista e atual chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro Allan Turnowski, 39 anos. Ao assumir o cargo, em abril de 2009, Turnowski decidiu que a corporação precisava de uma sacudida em regra. A primeira providência foi mudar o ancestral regime de 24/72, um plantão de 24 horas seguido de três dias de folga. “Por causa da folga, uma investigação que começava na segunda-feira só era retomada na quinta. Para piorar, a gente sabe que a folga não era usada para o merecido descanso, mas para bicos. Não funcionava.”
De tudo o que fez até agora – inclusive prender Ricardo Teixeira da Cruz, o Batman, miliciano suspeito de ter cometido dezenas de assassinatos –, é mesmo o Dedic que faz brilhar os olhos do chefe da Polícia Civil. “Esse projeto trará mudanças no modo como somos vistos. É a salvação da Polícia Civil. A cultura será outra”, profetizou. “Nenhuma outra delegacia brasileira faz atendimento em casa.” O governo de Minas quer reproduzir a ideia. O Banco Interamericano de Desenvolvimento, BID, pediu informações e estuda financiamentos.
Sentado atrás de uma enorme mesa de vidro, papéis espalhados para todo lado, dois celulares que não sabem o que é ficar mudo, Turnowski detalha a sua ideia revolucionária. O estereótipo do policial não será mais um meganha rascante, gordo, suado e de cordão de ouro no pescoço. Será um policial próximo, conhecido de todos no bairro. Em breve, quem vir na rua um policial distribuindo cartõezinhos não precisa apertar o passo e desviar. Não serão santinhos eleitorais, mas cartões de visita com nome, e-mail e telefone dos colegas de batalhão.
São as promessas de Turnowski, que as defende com o fervor de um Robespierre. Ainda não há como saber se ele trabalha com os pés no chão ou com a cabeça fora do lugar.