Tunga criou, em 1985, a performance Xifópagas Capilares. O artista nega qualquer relação com As Gêmeas, de Guignard: “Dar essa informação às pessoas seria entregar o peixe fácil demais” FOTO: GILLES HUTCHINSON
Dentes Descabelados
Enigmas e entrechoques nas obras de Tunga
Bruno Moreschi | Edição 49, Outubro 2010
Na sua primeira exposição, em 1974, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Tunga exibiu aquarelas com pães velhos e pedaços de algodão. Dois anos depois, na galeria de Luisa Strina, em São Paulo, voltou ao algodão e aos pães, mas desta vez os transformou em objetos de cera. “Quem viu, não entendeu nada”, lembrou a galerista. “Não consegui vender nenhuma das peças.” Desde o início, a obra de Tunga não se ateve a um ou dois suportes. Ele fez fotografias, performances, instalações, desenhos e esculturas. Na década de 80, começou a fazer arte com moscas.
Penou para conseguir os insetos. Na primeira tentativa, contentou-se com fotos de moscas. Depois, conseguiu a ajuda de um entomologista. A parceria durou pouco porque o especialista não gostava de arte – ou, ao menos, daquela arte. Tunga botava as moscas em gaiolas com sinos repletos de gelatina. Atraídas pela glicose, elas ficavam presas na meleca.
Hoje, ele encomenda ovos do inseto pela internet. Como os distribuidores garantem a data certa do nascimento das moscas, a previsibilidade da eclosão dos ovos o empolgou. Em 2007, com data marcada para uma exposição no Museum of Fine Arts de Houston, Tunga encomendou ovos que abririam bem no dia da inauguração da mostra, 9 de março. Em poucas horas, o monte branco de ovos se transformou numa nuvem de moscas espessa e escura.
No momento em que as moscas nasciam, Tunga recebeu um telefonema. Seu pai tinha acabado de morrer. Aos 90 anos, internado há dois meses, o poeta e jornalista Gerardo Mello Mourão foi vítima de falência múltipla dos órgãos. “Foi uma sensação estranha, muito estranha”, Tunga limitou-se a falar.
Quem conseguiu deixar de lado uma possível ojeriza pelos insetos foi testemunha de uma cena impactante de nascimento e mutação. Ao lembrar as ovas virando moscas, Luiz Camillo Osório, curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, comentou como é difícil para os críticos analisar as obras de Tunga. “Todo mundo concorda que os trabalhos dele falam do inconsciente, do desejo e da transformação biológica das coisas, mas esses temas complexos problematizam ainda mais a sua produção”, disse. “Costumo brincar e dizer que, apesar de sempre ter tentado entender o Tunga, nunca consegui de fato. A graça dele está nesse enigma.”
Mesmo criando símbolos visuais poderosos e enigmáticos com materiais variados, Tunga nunca se afastou muito da escultura. É por isso que, pelo telefone, o crítico de arte australiano Robert Hughes, autor da biografia Goya, me disse: “Conheço pouco da arte brasileira, mas vi obras de Tunga. Que belo escultor vocês têm, não?”
Ele já fez esculturas sobre cabelos, ossos e dentes. Lançada em 2007, para comemorar uma década de existência da editora Cosac Naify, a caixa Tunga traz um texto do artista que justifica o seu fascínio por dentes. Ele escreveu: “Curiosamente, ao inverso dos processos escultóricos, na perda de dentes, preservamos e cuidamos das partes do processo (gengiva, maxilar, nós mesmos) desprezando a parte que gerou maior esforço de criação, a saber, os dentes, estes as verdadeiras obras. Não é portanto absurdo o resgate deste tema enquanto esculturas.”
Numa de suas primeiras exposições, Tunga colocou, num espaço de 6 metros quadrados, uma cobra e uma aranha caranguejeira vivas num chão repleto de pó de arroz. Uma barreira de vidro protegia os visitantes. A cada movimento dos bichos, um novo desenho era produzido no piso. A imagem da serpente também é recorrente. Em uma fotografia de 2007, um tubo que sugere as formas do animal tampa a cabeça de uma linda mulher nua.
O pintor Paulo Pasta ajudou Tunga a montar sua penúltima exposição em São Paulo. Pasta o admira, conforme afirmou, pela sua “capacidade de tratar o vazio”. O pintor diz que, assim como Tunga, ele também sempre se interessou pelo espaço entre as coisas. Uma das telas mais marcantes de Pasta representa dois peões. Quem vê a pintura só percebe que são peões por causa da área que os envolve, pintada com um azul um pouco mais forte do que as demais cores que compõem o trabalho.
Paulo Pasta vê a mesma intenção na escultura Eixo Exógeno, feita por Tunga em 1986. Num primeiro olhar, trata-se apenas de um cálice de aço inox sobre um tronco de madeira de formas arredondadas. Aos poucos, porém, é possível perceber que os contornos da obra formam as silhuetas de duas mulheres frente a frente. Mais ou menos como acontece naquelas figuras ópticas que mostram um vaso escuro num fundo branco. Para Tunga, uma escultura não é necessariamente um volume estático. Faz parte dela não só o contido, mas o entorno.
Pasta explicou assim Eixo Exógeno: “Tunga conseguiu nos mostrar como o vazio une as coisas. Manteve um olhar na construção da peça e o outro na desconstrução dela. Essa escultura é apenas um exemplo de como as obras de Tunga nascem de uma reflexão profunda das coisas, de diferentes olhares sobre a mesma questão. Fico espantado com a sua capacidade reflexiva.”
Em 1994, Tunga fez sete esculturas que mais uma vez brincavam com a percepção do público. A coloração e textura sugeriam que fossem peças leves, talvez cerâmicas. Eram, na verdade, obras de bronze, maquiadas com base, batom e pó de arroz. Com elas, mostrou que o peso aparente de uma peça é determinado pela ideia que temos de sua constituição, e não pelo material que de fato é feita.
Tunga é hoje um dos artistas brasileiros mais conhecidos no exterior, junto com o carioca Cildo Meireles e o paulistano Vik Muniz. Ele já fez exposições individuais no Museu de Arte Contemporânea de Nova York (duas vezes, em anos seguidos), na Documenta de Kassel, na Art Basel e, ao lado de Sérgio de Camargo, representou o Brasil numa Bienal de Veneza. Seu filme Quimera, feito com Eryk Rocha, participou do festival de Sundance e competiu em Cannes.
Em 1992, ele teve quatro exposições simultâneas: duas no Brasil, uma organizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York em Sevilha e outra no Jeu de Paume, em Paris. Nessa última, foram necessários quatro voos para levar seus trabalhos do Brasil para a França. Entre eles, um sino de 860 quilos.
“Tunga é um artista ambicioso que, definitivamente, pensa grande”, disse Ivo Mesquita, curador da Pinacoteca do Estado de São Paulo. “Ao contrário de muitos artistas brasileiros, não tem medo de fazer obras de dimensões grandiosas que tratam de questões complexas. Isso o faz o artista brasileiro mais potente de sua geração.”
Há 25 anos, Tunga tem a galeria Millan como a única representante de seus trabalhos no Brasil. Grandes amigos, André Millan e Tunga se falam por telefone pelo menos três vezes por dia. O marchand acompanha todas as suas montagens, aconteçam onde acontecer. Uma peça sua de um metro e meio de altura custa cerca de 120 mil reais. “O mercado de Tunga vai muito bem, obrigado”, disse André Millan.
O crítico Felipe Scovino foi certa vez à casa de Tunga, no Rio de Janeiro, para uma entrevista. Arriscou uma primeira pergunta longa e cheia de termos como “arte”, “vida” e “violência”. O artista respondeu: “Não vejo pergunta no seu enunciado, mas uma sucessão de acepções e apreciações que você faz tanto à vida quanto ao mundo cultural. Não saberia o que responder.”
Scovino quis saber se considerava a arte contemporânea “uma conjunção de experiências caóticas”. Tunga discordou: “O que você está chamando de arte contemporânea é um fenômeno que acontece dentro da sociedade ocidental, num circuito determinado de uma cultura, que envolve museus, colecionadores, críticos, imprensa. Isto é um grão perto daquilo que é o exercício da subjetividade da sociedade ocidental contemporânea. Falar do homem e da existência a partir desse pequeno grão me parece restrito.”
Nas outras 25 respostas, Tunga respondeu sempre de maneira agressiva e taxativa, com frases como “fico perplexo porque nunca vi essa história da arte que você está me relatando” e “você parte de pressupostos com os quais necessariamente não concordo”. Scovino conversou com Tunga para seu livro Arquivo Contemporâneo. Lançado no ano passado, ele reúne entrevistas de treze artistas brasileiros – todos bem mais cordiais do que Tunga.
Nove meses após o encontro, Scovino lembrou: “Tunga me colocou numa posição de pensar nos meus próprios critérios. Ele tem uma capacidade de não responder sua pergunta, mas, mesmo assim, falar coisas pertinentes.” Para ele, uma conversa com o artista é “uma alegoria de um jogo de xadrez. Você escolhe: entra no jogo e duela com ele, ou desiste e escuta o que Tunga tem para falar.”
O Banco do Brasil comprou, em 1923, um prédio de cinco andares no centro histórico de São Paulo. Como até então não tinha um prédio próprio na cidade, a ordem foi encher de pompa o edifício. Responsável pela reforma, o arquiteto Hippolyto Pujol, colocou vitral com detalhes em arabescos no teto. Lustres, o corrimão das escadas e partes do mezanino receberam generosas camadas de bronze.
Quase oito décadas depois, o banco reformou o prédio novamente. O objetivo era transformá-lo num centro cultural para abrigar exposições, cinema, teatro e auditório e, assim, contribuir para a revitalização do degradado centro da cidade. Tunga foi chamado para fazer uma performance na inauguração. Ficou ressabiado porque o convite partira não de um conselho curatorial, mas do departamento de marketing do Banco do Brasil. Logo no primeiro contato, disse que só aceitaria o convite se tivesse liberdade artística. Ela lhe foi concedida.
Em 21 de abril de 2001, 2 mil pessoas foram à inauguração. Era a fauna de sempre: socialites, potentados das finanças, da indústria e do comércio, artistas, candidatos a celebridades, colunistas. Para surpresa geral, não se podia ver nada das novas instalações. Tunga cobriu o ambiente com 4 toneladas de ferro esculpido, 100 quilos de batom, 8 mil lençóis, 2 mil pratos e muita sopa. Por todos os cantos havia panos trançados que faziam lembrar terezas, as cordas artesanais feitas por prisioneiros. Coincidência ou não, uma série de rebeliões acontecia naqueles meses nos presídios paulistas.
Tunga entrou no saguão com um terno bege de caimento impecável e gravata cor-de-rosa. Acompanhado de 130 atores e atrizes, deu início a uma performance que durou oito horas. Em determinado momento, dezenas de integrantes da trupe tiraram a roupa, tomaram sopa e se debateram no chão. Arnaldo Antunes, o criador da trilha sonora da performance, andava de um lado para o outro gritando num microfone. Três atrizes nuas cobriram o corpo de Tunga com argila. Houve quem saísse do prédio pouco depois de a coisa começar. Os que ficaram até o fim aplaudiram Tunga. “Foi uma catarse coletiva, as pessoas começaram a imaginar que estavam num ritual”, lembrou o curador Rodrigo Moura.
O crítico de arte Tiago Mesquita publicou dias depois um artigo na Folha de S.Paulo sugerindo as razões de Tunga para uma performance que, de um lado, ocultava o lugar de exposição artística e intelectual no interior do prédio, e, de outro, trazia para dentro dele elementos do centro de São Paulo, como mendigos, sopão, barulho, confusão. “O que parece se gestar no interior do prédio é a dimensão infernal da exclusão social”, escreveu Mesquita. “Essa interioridade perversa não pretende retirar a importância de instituições como o Centro Cultural Banco do Brasil, mas certamente joga um balde de água fria em algumas promessas que permeiam esses projetos, pedindo que deixemos as esperanças do lado de fora.”
Para encontrar a casa de Tunga só perguntando aos taxistas da pequena praça da Estrada do Sorimã, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Apesar de chamarem o artista de “Bunga”, eles orientam que é preciso subir uma rua próxima, protegida por portão e agente de segurança. Ele mora no terceiro terreno morro acima. Na área de quase mil metros quadrados há uma casa de dois andares, uma edícula, um jardim cheio de coqueiros e bananeiras, um jabuti e sete papagaios, além dos tucanos que vivem ali perto. A passarada grita tanto que, às vezes, é preciso levantar o tom de voz para ser escutado.
Sentado com as pernas cruzadas em um sofá branco no 2º andar da casa, Tunga vestia uma camisa de linho cru, calças claras e folgadas e sandálias franciscanas. Havia pilhas de livros no chão, a maioria em francês. Entre eles, poemas de Hölderlin, L’Atheisme, do filósofo Alexandre Kojève, La Critique de la Raison Pure, de Kant, e uma antologia poética do cubano José Lezama Lima.
Sorrindo, ele comentou o tempo nublado que fazia no Rio e falou amenidades. Ao ouvir um comentário sobre a sua fama de ríspido, riu e disse: “Se falam isso é um bom sinal. Essa fama de briguento colou em mim por uma razão simples. Diferentemente de muitos outros artistas, acredito que precisamos ter um mínimo de consciência política. Não se trata de assumir o voto na Dilma, no Serra ou na Marina. A questão é defender com o meu trabalho uma política no campo da arte.”
Ele lembrou a performance no Banco do Brasil. “Aquele prédio foi reformado por pura vaidade corporativa”, disse. “O espaço reservado para a exposição é ridículo de tão apertado. Por isso senti a necessidade de fazer algo ali que servisse de protesto público.” E voltou a criticar seus colegas: “A verdade é que hoje os artistas estão muito interessados em defender ONGs, crianças pobres, mas, dentro do mundo das artes, a consciência política deles é bastante duvidosa.”
Até há uns dez anos, declarações de Tunga apareciam com frequência em jornais e revistas. Às vezes, comentava alguma exposição em cartaz. Ou então reclamava. Foi o caso de suas declarações contrárias à censura de um trabalho de Nelson Leiner. Em 1997, o artista fez desenhos sobre fotos de crianças da neozelandesa Anne Geddes. O Juizado de Menores considerou os desenhos pornográficos e proibiu a exibição do conjunto de trabalhos. Tunga protestou.
Nos últimos anos, Tunga praticamente parou de falar à imprensa. Foi de caso pensado: concluiu que, falando pouco, sua obra fica mais enigmática. Numa das últimas vezes, um jornalista francês lhe pediu que explicasse a sua arte. Ele deu uma resposta que os críticos preguiçosos poderiam adotar com facilidade: “Investigo várias áreas do conhecimento. Física, química, biologia, medicina.” Tunga repetiu a frase em outras entrevistas e obteve o efeito desejado: em enciclopédias e ensaios de catálogos, costuma aparecer a tal “investigação de várias disciplinas”.
Para evitar abordagens biográficas de sua obra, evita falar da vida pessoal. Vagamente, comentou que se divorciara há meses e que sua ex-mulher se encontrava em Paris, no apartamento que era do casal. A uma pergunta sobre sua infância, respondeu: “Vamos falar de arte, pô!”
Ele explicou sua reticência biográfica por meio de comentários sobre outros artistas. Primeiro falou de Louise Bourgeois, a artista francesa que morreu em maio: “Gosto muito do trabalho dela. Mas repare na imensa quantidade de textos que relacionam suas obras com sua vida pessoal. Repare também no esforço dela em relatar os traumas que sofreu. Bourgeois criou uma hermenêutica que nos ajuda a conviver com suas obras, mas que dificulta um entendimento mais profundo do que produziu. Quero evitar esse vício de olharem para uma peça minha e concluírem que a fiz porque algo aconteceu comigo.”
Num vernissage em Paris, Tunga trombou com Andy Warhol. Não chegou a falar com ele, mas a imagem daquele homem interpretando com afinco sua persona pública lhe ficou na cabeça. “Essa coisa de história pessoal virou uma mania da arte contemporânea, e isso não é necessariamente uma crítica”, disse. “Mas é preciso ter a consciência de que, quando você inscreve a sua vida como uma poética, será obrigado a levar isso a sério.”
Para complementar suas ideias, falou de Sophie Calle. Recentemente, a artista francesa pediu que 106 mulheres e um papagaio respondessem a uma carta de rompimento recebida por ela de um namorado. As respostas foram expostas em museus do mundo inteiro. “Conheço a Sophie Calle há trinta anos e olha o que ela fez com ela mesma”, disse Tunga. “Ela deve sofrer muito para viver aquela personagem e evitar tropeções. Parece-me muito frustrante como projeto de sujeito viver numa teatralidade completa e consciente. Pobrezinha dessa moça!”
Antes mesmo da chegada dos portugueses, os índios da Serra da Ibiapaba, na divisa do Ceará com o Piauí, mantinham contato com os poucos franceses que se instalaram em São Luís do Maranhão. Em 1603, Portugal enviou a expedição de Pero Coelho de Souza para expulsar os franceses do estado e ocupar a região. Índios e franceses se uniram, resistiram e o domínio português na região só se completou meio século depois, com a chegada dos jesuítas.
Dentre as famílias portuguesas que apareceram para ocupar o lugar estavam os Mello e os Mourão, cujos membros se casaram e formaram um dos clãs mais poderosos da Serra da Ibiapaba. O nome de nascimento de Tunga é Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão. Quem inventou o apelido foi seu irmão mais velho, Gonçalo, então com 2 anos, que gostou do som da palavra.
Os primeiros contatos de Tunga com as artes plásticas se deram no Rio, na casa do avô, o deputado federal e depois senador Antonio de Barros Carvalho. O pintor Alberto da Veiga Guignard, amigo do parlamentar, também morou três anos na casa. O senador gostava muito de Guignard, mas o pintor praticamente lhe esvaziou a valiosa adega. O avô de Tunga queria se livrar do hóspede bom de copo. Mas de maneira polida.
Carvalho criou então um concurso dedicado exclusivamente à arte moderna e incentivou Guignard a concorrer. O pintor quis agradar o anfitrião e pintou as filhas gêmeas do senador, Maura e Léa. Feita em 1940, As Gêmeas é umas das telas mais conhecidas de Guignard. Numa casa projetada por Lucio Costa, sentadas num sofá vermelho, as irmãs aparecem com as mãos sobre o colo, tendo ao fundo o bairro carioca de Laranjeiras. Guignard ganhou o prêmio: uma viagem de um ano a Paris. Carvalho ficou com o que sobrou de sua adega. Léa, uma das gêmeas, é a mãe de Tunga.
Tunga criou, em 1985, a performance Xifópagas Capilares. Nela, duas meninas compartilhavam uma cabeleira imensa. Ele contou a um amigo, o cronista Wilson Bueno, a história das Gêmeas de Guignard. Bueno vibrou com o caso e disse que escreveria um texto relacionando a tela do pintor com a obra de Tunga, já que ambas tinham gêmeas como temática. Tunga interrompeu o amigo e negou qualquer relação entre os dois trabalhos. Desde então, evita contar a história. “Dar essa informação às pessoas seria entregar o peixe fácil demais”, disse, sorrindo.
Os que conviveram com o pai de Tunga são unânimes em dizer que o poeta e jornalista Gerardo Mello Mourão foi um dos homens mais inteligentes que conheceram. Na infância, estudou em um convento de Juiz de Fora e aprendeu grego, latim e holandês. Ao morrer, sabia nove idiomas. Na juventude, Mourão fez parte da Ação Integralista Brasileira, uma organização fascista. Foi preso dezoito vezes entre 1938 – quando foi uns dos camisas-verdes que tentaram derrubar Getúlio – e 1945, quando a ditadura varguista chegou ao fim.
Antes, em 1942, Mourão foi condenado a trinta anos de prisão por ter colaboração com a Alemanha nazista. Cumpriu seis anos da pena. Sempre se disse inocente. “A acusação de espião nazista e de haver colaborado para o afundamento de navios na costa brasileira partiu dos meus adversários na imprensa, especialmente de David Nasser, da revista O Cruzeiro. Não tenho erros políticos a corrigir,” disse ele num documentário do cineasta Wolney Oliveira. Para a revista E, publicada pelo Sesc de São Paulo, Mourão falou: “Nas duas ditaduras deste país, a do Estado Novo e a do regime militar de 1964, fui perseguido, preso, torturado. Em 1967, quase até a morte. Primeiro como fascista, depois como comunista. Estou vivo por milagre.”
Tunga fala pouco do pai. Mas reconhece que ter sido criado por um homem que gostava de arte o influenciou. Antes de cursar arquitetura, na universidade carioca Santa Úrsula, Tunga havia viajado com o pai por diversas partes do mundo. Conheceram praticamente toda a América, em especial o Chile, onde Mourão deu aula de história e cultura da América na universidade católica de Valparaíso.
Passando longas temporadas no apartamento da família em Paris, Tunga cresceu visitando exposições no Louvre e em outros museus europeus. “Com 20 anos, eu já compreendia a narrativa da história da arte ocidental”, disse. “Achava os museus tradicionais muito cansativos. Por isso, aos poucos fui me interessando por centros de etnologia e zoologia como o Museu de História da Ciência de Oxford. Tudo ali vem de um ponto de vista diferente. Quem estuda arte, não costuma ter essa visão. Para mim, os materiais expostos ali estão na mesma ordem de descoberta de uma tela importante do Louvre.”
No início da década de 80, durante dois anos, Mourão foi correspondente do jornal Folha de S.Paulo em Pequim – o primeiro jornalista sul-americano fixo na China. Tunga foi junto. Ao se deparar com uma China fechada e completamente diferente dos países que visitara na América e na Europa, deu-se conta de que o mundo era muito maior do que o Ocidente. Hoje, com 58 anos, Tunga lembrou o impacto do choque cultural: “Coloquei em xeque a tese imposta pela cultura ocidental de que seus símbolos são universais.”
Numa festa, em Paris, Henri Loyrette, o presidente vitalício do Louvre aproximou-se de Tunga, puxou conversa e falou que adorava o seu trabalho. Meses depois, veio o convite: expor no museu. O curador sugeriu que a obra ficasse na mesma sala de uma exposição de Frans Post, o pintor holandês que pintou paisagens brasileiras no século XVII. Tunga achou a relação óbvia demais. “Queria construir uma peça que fosse muito maior do que apenas uma relação com o Brasil”, explicou. “Não poderia ignorar que estava num local de cruzamento de várias culturas.”
Tunga escolheu a pirâmide como cenário. Encomendada pelo presidente François Mitterrand ao arquiteto americano I. M. Pei, a estrutura de 20 metros de altura com cerca de 600 losangos e triângulos de vidro provocou protestos fervorosos: o adjetivo “faraônico” se lhe caía à perfeição. No projeto original, Pei colocou um pássaro esculpido por Brancusi no topo da coluna que fica no centro da pirâmide. Mas isso nunca foi feito. Tunga decidiu que a instalação seria justamente nessa coluna. “Levei cinquenta anos e quatro minutos para fazer essa obra”, disse. “Cinquenta anos pensando e aguardando o convite. Quatro minutos para escrever o projeto.”
A instalação À Luz de Dois Mundos seguiu a lógica inversa de colocar algo valioso em cima da coluna – como desejava Pei. Tudo ali pendia para baixo. Em três pedaços de ferro, no formato de longas bengalas, Tunga equilibrou uma trança de bronze negra com crânios e uma rede de descanso. Nela, estava deitado um esqueleto sem cabeça. No chão, réplicas de cabeças tiradas de estátuas clássicas. “A ideia surgiu do significado do museu”, explicou. “Um museu é uma pilhagem de materiais que reafirmam o domínio de um povo. A história da arte é uma luta entre dominados e dominadores. Com os crânios e esqueletos, quis mostrar o lado dos derrotados.”
Exposta em 2005, a instalação costumava atrair grupos de jovens góticos, que tiravam fotos ao lados das caveiras. O Le Monde classificou Tunga como “um artista de poder dramático único no mundo. Uma dramaticidade que perpassa nacionalidades e transmite uma singular sensação de universalidade.” (Pela primeira vez no Brasil, a instalação À Luz de Dois Mundos pode ser vista no Palacete das Artes Rodin, em Salvador, onde ficará até 31 de outubro.)
O crítico de arte Paulo Sergio Duarte percorria a exposição de jovens artistas no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, da qual foi curador. Com raras exceções, os trabalhos expostos comprovavam o que ele falara pouco antes: muito por causa da idade, e apesar das qualidades, a arte dos jovens carecia de bagagem teórica e intelectual. “Isso você não via na arte de Tunga quando ele estava começando”, ressaltou Paulo Sergio Duarte.
Em 1975, quando estava exilado em Paris, Duarte recebeu a ligação de um jovem de 23 anos que gostaria de mostrar o que fazia. “Só depois de conversarmos descobri que ele era filho de quem era”, contou o crítico. Tunga mostrou-lhe uma série de desenhos de corpos. Duarte percebeu o potencial do jovem. “Na época, muitos artistas adoravam falar e falar, mas a maioria das obras eram visualmente muito fracas”, disse. “Como Waltercio Caldas e José Resende, Tunga possui uma capacidade incrível de representar visualmente o falatório da arte conceitual.”
Duarte também se impressiona com o “pensamento sinfônico” que rege o trabalho do artista: “Ele gosta de ficar relendo sua própria gramática. Um sino que aparece numa obra da década de 90 pode aparecer agora numa outra roupagem. E isso é feito de uma maneira tão sofisticada que é quase impossível dividir a arte de Tunga em fases.”
Até novembro na galeria Milan, sua mais recente exposição traz potes de vidros com simulacros de urina ao lado de cristais de rochas. Tudo suspenso por fios ou preso a imãs. A exposição é uma das mais visitadas de São Paulo – e isso não é pouco para um período de Bienal em que mostras paralelas pipocam na cidade.
Em novembro do ano passado, na sua penúltima exposição na mesma galeria, Tunga novamente surpreendeu. Dessa vez, não por causa de moscas, cobras, dentes ou gente nua. Mas pela delicadeza das obras: trinta aquarelas pintadas de maneira tão suave que pareciam invisíveis.
José Resende acredita que a exposição com as aquarelas foi a prova mais inteligente de que Tunga adora “reler sua própria gramática”, como disse Duarte. “Não há como destacar um trabalho específico de Tunga, pois isso seria não reconhecer que é no conjunto de suas obras que cada trabalho seu ganha significados mais densos e múltiplos”, disse Resende. “A última exposição mostrou que as características de seus trabalhos podem aparecer tanto em obras monumentais como em tênues aquarelas”, diz Resende. As aquarelas, de fato, mostram temas que ele já tratou: cenas da natureza, mulheres nuas e seres em mutação, dessa vez humanos se transformando em coqueiros.
Inhotim é um museu a 50 quilômetros de Belo Horizonte com 97 hectares de mata nativa e 500 obras de arte feitas de 1960 até hoje. Matthew Barney, Olafur Eliasson, Paul McCarthy e Iran do Espírito Santo são alguns dos artistas que possuem obras especialmente criadas para o espaço. O fato de Tunga ter sete obras expostas ali sugere uma homenagem.
Bernardo Paz, o criador do museu e dono da mineradora Itaminas, tinha uma grande coleção de arte moderna brasileira. Quando conheceu o trabalho de Tunga, começou a comprar suas peças e se aproximou dele. De tanto falar da necessidade de um espaço propício para a arte contemporânea no Brasil, Tunga foi um dos que conseguiu convencer Paz a vender sua coleção e a investir em peças mais recentes. E a criar Inhotim.
No catálogo do museu, Bernardo Paz escreveu: “A partir de uma conversa com um artista brasileiro, Tunga, percebi que a arte tem de ser política, instrutiva e interativa. E para isso precisava de espaços grandes. Não é possível construir obras enormes e interativas em museus dentro de cidades.”
Dentre as obras de Tunga que estão ali, True Rouge é a que mais chama atenção. Com o mesmo movimento de pender para baixo da peça do Louvre, ela reúne bolas de cristal, feltro e vasos de vidro com tinta vermelha, e dispõe tudo em esponjas do mar presas ao teto. Mais impressionante do que o equilíbrio instável da obra é a fascinação que ela desperta nos visitantes. Eles se agacham, aproximam o rosto, querem descobrir como aquele trabalho de 13 metros de comprimento se sustenta sem cair.
As melhores obras de Tunga mexem com os espectadores. Certa vez, ele expôs, na universidade carioca Candido Mendes, um filme chamado ÃO. Ele mostrava, em movimento, o interior de um túnel do Rio. Como as cenas foram montadas em looping, era impossível saber onde era o início e o fim do túnel. Um rapaz apareceu e não conseguiu tirar os olhos do trabalho. “Sem brincadeira, o cara ficou umas duas horas assistindo aquilo” lembrou Tunga. Após o transe, o homem pediu para conhecer o autor. Tunga se apresentou e ele explicou o motivo do fascínio: “A imagem me lembrou de uma vez que fiquei em coma. Era algo muito parecido.” Tunga disse que esse foi o melhor elogio que já recebeu.