O juiz sofre a angústia existencial de ser o único que pode responder pelas muitas decisões cruciais tomadas no decurso de um jogo FOTOMONTAGEM: GAMMA-KEYSTONE + PNC_GETTY IMAGES
A solidão do juiz
Ser-para-si sartriano, o árbitro precisa assumir o seu lugar no campo para ter uma vida autêntica.
Jonathan Crowe | Edição 50, Novembro 2010
Os juízes de futebol compõem um grupo variado, mas existem vários tipos familiares a torcedores e jogadores. Há o rigoroso, que sempre aplica a letra da lei. Há o vacilante, que foge das decisões difíceis, leva o apito à boca com frequência, mas raramente aponta uma falta. Existe o jogador frustrado, que se envolve mais do que deveria e aplaude a boa jogada como um torcedor. Há também o afetado, que parece atuar no papel de juiz: sua postura é um pouco aprumada demais, seus gestos, excessivamente ensaiados. Temos, por fim, o carteiro, que distribui cartões amarelos e vermelhos por qualquer coisa, e o durão, que desafia os jogadores e incita o enfrentamento.
As ideias necessárias para compreender esses diferentes estilos de arbitragem podem ser encontradas, felizmente, nos escritos do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre. Ele foi um estudioso fervoroso do futebol e dedicou um trecho longo e complexo da Crítica da Razão Dialética às interações entre jogadores. Como ele observa sabiamente: “Em um jogo de futebol, tudo é complicado pela presença do outro time.” No entanto, são nas obras anteriores de Sartre, O Ser e o Nada e O Existencialismo é um Humanismo, que encontramos sua teoria da arbitragem.
A primeira lição que podemos extrair dos escritos de Sartre diz respeito à natureza existencialmente desafiadora do juiz. Ele é constantemente chamado a fazer escolhas que podem alterar radicalmente o curso de uma partida. Times podem se tornar campeões ou serem rebaixados, craques podem ganhar a Chuteira de Ouro ou ser suspensos das finais por causa de um único cartão. O árbitro tem liberdade total para escolher o que fazer. Se a bola acerta o braço de um jogador dentro da grande área, o juiz é o único com o poder de levar o apito à boca e parar a partida. O bandeirinha pode sinalizar, os jogadores podem reclamar e a multidão pode rugir, mas em última análise tudo depende do juiz. Este é o momento da decisão, quando o destino do jogo pousa sobre os ombros do árbitro.
O resultado de todo um campeonato pode depender daquele momento. Nenhum torcedor australiano, por exemplo, esquecerá o episódio da Copa de 2006, quando, com o jogo empatado em 0 a 0 aos 47 minutos do segundo tempo, o lateral-esquerdo italiano Fabio Grosso caiu sobre as pernas estendidas do zagueiro da Austrália Lucas Neill. A decisão do juiz de marcar um pênalti para a Itália definiu o rumo do jogo: a Itália seguiu em frente e levantou a Taça do Mundo, enquanto a Austrália voltou para casa.
O momento da decisão desempenha um papel central na filosofia de Sartre. Ele o apresenta como o traço definidor da experiência humana. Em , Sartre estabelece uma distinção entre dois modos básicos de existência: o ser-em-sie o ser-para-si. O primeiro é um objeto não consciente, que pode ser definido em termos de uma essência ou função predeterminada. Objetos inanimados, tais como livros e bolas de futebol, estão nessa categoria. O ser-para-si, ao contrário, é um agente ou pessoa consciente capaz de perceber e refletir sobre o mundo ao seu redor. Sartre sugere que, longe de possuir uma essência predeterminada, ele é permanentemente assombrado pela possibilidade do “nada” ou da negação. Em outras palavras, o ser-para-si é forçado a enfrentar continuamente a possibilidade de que as coisas possam ser diferentes do que são.
Em 1928, quando fez o exame final na École Normale Supérieure, em Paris, Sartre resolveu escrever um trabalho sobre o tema da contingência. Foi um fracasso total e ele ficou em último lugar numa turma de cinquenta alunos (Sartre disse ter fracassado porque tentou ser muito original; outros sugeriram que foi porque ele passava mais tempo bebendo e andando atrás de mulheres do que estudando). Em 1929, fez o exame novamente e foi o primeiro da turma. A questão da contingência se tornaria fundamental em sua filosofia.
Em nossa vida cotidiana, sustenta o filósofo, nos envolvemos constantemente em indagações sobre o mundo que nos rodeia: perguntas sobre a existência de Deus ou sobre onde largamos as chaves do carro colocam certos aspectos de nossa existência em xeque. Uma vez que a resposta a essas questões seja negativa, parece-nos que nosso lugar no mundo não é necessário, mas contingencial.
Segundo Sartre, o sentimento de contingência permeia a experiência humana da escolha. Por mais certeza que tenhamos sobre uma determinada decisão, temos consciência, não obstante, de que outra alternativa seria possível. Uma vez que cada caminho está cheio de possibilidades, parece que não podemos deixar de aceitar a responsabilidade sobre nossas escolhas. Sartre argumenta que esse sentimento de responsabilidade inescapável tende a provocar angústia.
Imagine que está caminhando por uma trilha estreita na beira de uma montanha. Você está permanentemente consciente da importância de pisar com cuidado. Ao mesmo tempo, também está ciente de que, apesar do cuidado e da atenção, seria muito fácil se jogar no precipício. Sartre mostra que a existência humana está cheia desses momentos que podem potencialmente alterar a vida. No espaço de um instante, seria possível jogar seu carro na contramão ou fazer um comentário que afastaria para sempre uma pessoa querida.
Para Sartre, a vida humana envolve uma inevitável percepção dupla. Em primeiro lugar, as possibilidades de alternativas presentes na minha experiência de escolha me revelam que sou livre. Simultaneamente, também estou consciente de que sou responsável, uma vez que sou confrontado com a aparente ausência de restrições a exercícios potenciais, significativos da minha liberdade. Independente de eu caminhar calmamente ao longo da beirada ou de me jogar de cabeça no abismo, a decisão cabe somente a mim.
Voltemos ao momento da decisão. A bola atinge o braço de um jogador na grande área. O árbitro precisa decidir se deve apitar a falta. Nesse momento, ele é livre e responsável: como ninguém pode lhe dizer qual decisão tomar, a responsabilidade pelo resultado recai unicamente sobre seus ombros. Essa posição de poder provoca naturalmente angústia, no sentido sartriano do termo.
Muitos juízes não conse-guem dormir à noite, ruminando os detalhes do que aconteceu em campo e se perguntando se tomaram a decisão certa. Às vezes, a resposta será clara. Em outras, independente do esforço para se lembrar de detalhes da partida, não se saberá de maneira definitiva qual deveria ter sido a escolha correta. Esse tipo de situação sublinha a contingência do papel do juiz: muitas vezes, não há ponto de referência que possa revelar se uma determinada opção foi a certa ou a errada.
Até mesmo os melhores árbitros sentem que a pressão sobre eles é excessiva. É o caso do respeitado juiz sueco Anders Frisk, que aposentou o apito após receber ameaças de morte de torcedores do Chelsea por sua atuação num jogo, em 2005, contra o Barcelona. Ou do suíço Urs Meier, que passou a andar com seguranças para se proteger dos torcedores ingleses descontentes com sua decisão de anular um gol de Sol Campbell contra Portugal, na Eurocopa de 2004.
Isso para não mencionar o árbitro norueguês Henning Ovrebo, rotulado pelo atacante Didier Drogba, do Chelsea, como “desgraçado da porra”, por recusar uma série de pedidos de pênaltis na semifinal da Liga dos Campeões de 2009, mais uma vez contra o Barcelona. Trata-se de um juiz corajoso, capaz de enfrentar essas circunstâncias e admitir ser somente dele a responsabilidade última por suas decisões.
Em um nível mais prosaico, centenas de árbitros amadores desistem da função a cada temporada, em virtude das pressões sofridas durante campeonatos locais. Não é só o perigo de um torcedor descontente tentar esmurrá-lo no estacionamento depois do jogo. (Ou, efetivamente, jogar um pacote de chips em sua cara, como aconteceu comigo em uma ocasião. “Ei, juiz, você gostaria de umas fritas?”) Num nível mais profundo, é a angústia existencial de ser o único que pode responder pelas muitas decisões cruciais tomadas no decurso de um jogo. É solitário estar lá no meio do campo. Por mais conselhos que um juiz possa receber dos fiscais de linha, no momento da decisão ele está sozinho.
Sartre argumenta que, para viver uma existência autêntica, os seres humanos
devem abraçar o sentimento simultâneo de liberdade e responsabilidade que está no cerne de suas vidas. Eles devem reconhecer que o tipo de pessoa que vêm a ser, longe de ser ditado por forças externas, é resultado da vida que decidem levar. Para o ser-para-si, na famosa definição de Sartre em O Existencialismo é um Humanismo, “a existência precede a essência”. Nossas características pessoais não são necessárias ou fixas, mas fruto de nossas escolhas.
Uma pessoa, ao contrário de um objeto, como uma cadeira ou um copo de cerveja, não nasce com um conjunto predeterminado de características definidoras. Não nascemos honestos, covardes, fiéis, ou não confiáveis. Esses traços de caráter são, e só podem ser, uma função do modo como a pessoa escolhe viver. Uma vida autêntica envolve assumir responsabilidade por nosso caráter e reconhecer a capacidade de mudar aquele que viemos a ser. É somente quando morremos que esse projeto de autocriação acaba.
Viver uma vida autêntica é um desafio. É tentador esquivar-se da responsabilidade por nossas escolhas, atribuindo-a a aspectos inatos de nosso caráter ou a forças externas avassaladoras. Sartre descreve esse tipo de atitude como formas de má-fé. Qualquer tentativa de negar a nossa capacidade de moldar nossas vidas por meio de nossas escolhas é uma forma de autoengano, “uma mentira para si mesmo”.
As diferentes personae da arbitragem – o rigoroso, o vacilante, o jogador frustrado, o afetado, o carteiro e o durão – podem ser entendidas como tentativas de lidar com a pressão existencial do papel de juiz. Vimos que a responsabilidade por decidir soprar ou não o apito cabe somente a ele. Não é de se admirar que seja tentador aos juízes se esquivar de uma parcela da responsabilidade, quer adiando suas escolhas ou procurando uma autoridade externa para justificá-las.
O tipo rigoroso, por exemplo, procura amenizar a responsabilidade pessoal por suas decisões se apegando de maneira estrita às leis do jogo, independentemente do contexto. As camisetas devem estar por dentro dos calções e os meiões puxados para cima. Os laterais devem ser cobrados no ponto exato em que a bola saiu do campo. E infrações menores, como empurrões e puxadas de camisa sempre requerem uma falta, sem levar em conta o impacto sobre o fluxo do jogo.
Essa abordagem da arbitragem lembra as críticas de Sartre às concepções que identificam a ação virtuosa com a adesão a um código moral rígido. O problema com esse tipo de perspectiva moral é que estimula as pessoas a não assumirem a responsabilidade por suas ações. As pessoas confiam no código para dizer-lhes o que fazer, em vez de enfrentar cada situação e fazer suas próprias escolhas.
Em O Existencialismo é um Humanismo, Sartre ilustra esse problema com a história de um estudante que o procurou para pedir conselhos. Durante a ocupação alemã, o rapaz hesitava entre aderir às Forças Francesas Livres na Inglaterra ou ficar na França para cuidar da mãe idosa. Ele achava as duas opções moralmente atraentes, mas por razões distintas. Partir para a Inglaterra lhe permitiria defender seu país e seus ideais, mas cuidar da mãe lhe parecia importante em um nível mais pessoal.
Depois de analisar a situação do aluno, Sartre respondeu com o que deve ter parecido uma colocação inútil: “Você é livre, então escolha.” Seu argumento não era que nunca pode haver uma resposta certa para uma questão moral, mas que, nesse caso, o aluno não poderia resolver seu dilema referindo-se a uma fórmula abstrata. Em vez disso, tinha diante de si uma disputa entre dois ideais que lhe eram caros: a única maneira de enfrentar a situação era fazer uma escolha e aceitar a responsabilidade pelas consequências.
Sartre observa que, quando pedem conselhos sobre uma decisão moral difícil, as pessoas muitas vezes já decidiram o que fazer. Suspeita que o estudante já fizera sua opção, mas queria diminuir a culpa pessoal obtendo a aprovação do professor. Se o aluno quisesse ficar com a mãe, observa Sartre, ele teria procurado o conselho de alguém como um padre conservador.
Uma situação semelhante se aplica ao tipo rigoroso. O fato de ele se ater às regras do jogo não o exime de se posicionar. As regras são vagas: elas precisam de alguém que as interprete e aplique. De acordo com a regra doze, por exemplo, atos como empurrar devem ser penalizados se o árbitro considerar que foram cometidos de uma maneira “imprudente, temerária ou com uso de uma força excessiva”. Esse tipo de norma é inerentemente passível de interpretação. O rigoroso tem tanto arbítrio quanto qualquer outro juiz, mas tenta disfarçar isso citando permanentemente as regras.
Não são apenas os juízes que se escondem por trás das normas escritas quando tomam uma decisão difícil ou impopular. Patrões a burocratas, policiais e juízes, fazem-no com frequência. De acordo com Sartre, essa recusa em aceitar a responsabilidade por suas decisões é uma forma de má-fé. Regras e políticas podem estabelecer diretrizes para as nossas ações, mas elas não determinam e nem podem determinar nossas escolhas. Cabe somente a nós, como agentes livres e responsáveis, fazer isso.
Há um tipo de árbitro ainda mais insultado por torcedores e jogadores: o vacilante, que leva habitualmente o apito à boca, mas raras vezes o aciona. A resposta do vacilante à pressão é evitar apitar. Pensa que, se não apitar, talvez ninguém note a falta. Dessa forma, pode evitar as críticas por assumir uma posição.
A estratégia do vacilante é adiar o momento da decisão pelo maior tempo possível. Sartre discute um exemplo semelhante de má-fé em O Ser e o Nada. O caso diz respeito ao que se passa com uma mulher num primeiro encontro. O homem flerta com ela a noite inteira, fazendo comentários do tipo “Acho você tão atraente!”. Porém, a mulher opta por interpretá-los como elogios à sua personalidade, e não a seus atributos físicos.
Por fim, o homem pega na mão dela. Este é o momento da decisão, quando ela deve escolher se vai retribuir aos avanços ou não. A mulher, no entanto, não quer reagir, pois teria de ferir os sentimentos do candidato ou admitir a reciprocidade da atração. Ela então simplesmente deixa a mão lá – como uma “coisa”, nas palavras de Sartre – fingindo não perceber. Sua reação é ignorar a situação e esperar que ela acabe. De acordo com Sartre, ela age de má-fé, presa em uma mentira para si mesma.
O jogador frustrado procura escapar do peso de seus atos de maneira diferente, simulando a conduta de um torcedor ou jogador. Ele segue o jogo como um espectador, nunca perdendo a chance de aplaudir uma boa defesa ou felicitar um atacante por um belo gol. Esse tipo de árbitro quer ser um dos jogadores e tenta convencê-los de que está do lado deles. Os jogadores não querem um juiz amigo. Querem alguém que assuma a responsabilidade por seu papel no jogo.
Estratégia semelhante é usada pelo afetado, que parece empenhado demais em exibir um gestual extremamente correto. Até mesmo na infração mais insignificante, o afetado corre até o jogador envolvido, sopra seu apito de forma dramática e aponta violentamente para a direção da cobrança de falta. Ele ensaia seus sinais antes de cada jogo e gasta mais tempo na frente do espelho do que o Cristiano Ronaldo.
Em O Ser e o Nada, Sartre dá o exemplo famoso de um garçom num café que tenta assumir seu papel de uma maneira afetada. Como diz Sartre, “seu movimento é rápido e para a frente, um pouco preciso demais, um pouco rápido demais”. Ele aborda os clientes com uma eficiência exagerada, inclina-se com ansiedade excessiva e mostra demasiado interesse pelos pedidos.
No exemplo de Sartre, o garçom aspira exercer seu papel de uma maneira em que cada ato pareça necessário e inevitável. Ele deseja ser um garçom, da mesma forma como uma mesa é uma mesa ou um copo é um copo. Assim, o jogador frustrado e o afetado procuram aliviar o fardo de seu dever mediante a criação de papéis artificiais. O primeiro finge ser um jogador ou torcedor, a fim de adiar o momento em que deve enfrentar seu dever. O outro, ao contrário, finge ser um juiz. Ele procura evitar o confronto com a contingência de sua posição, reduzindo-a à interpretação de um papel. Todas as ações são executadas porque está atuando como um juiz, e não porque assumiu sua responsabilidade e decidiu qual a melhor reação no caso em pauta.
Por fim, temos o carteiro, que distribui cartões amarelos e vermelhos ao menor delito, e o durão, que encara os jogadores e provoca deliberadamente o confronto. Esses árbitros imaginam que são Clint Eastwood em Dirty Harry: “Você acha que tem sorte, seu vagabundo?” (Claro, um cartão amarelo não é tão impressionante quanto uma Magnum .44.)
O carteiro e o durão têm consciência da contingência de suas decisões. Eles compensam o fato realçando seu poder sobre os jogadores. Em vez de titubear, como o vacilante, ou ser pouco sincero, como o jogador frustrado ou o afetado, esses árbitros são beligerantes. Sua atitude diz: este é o meu jeito de apitar, e é melhor que você aprenda a gostar dele. Passam o jogo esperando por um pênalti ou uma grita geral, para que possam mostrar aos jogadores que não estão ali para brincadeira.
A hipocrisia subjacente a essa atitude é capturada em outro dos exemplos de Sartre de O Ser e o Nada. Suponha que uma pessoa que se comportou mal diga: “Me desculpe, eu sou apenas uma pessoa má.” Essa confissão é para ser aplaudida? Sartre não pensa assim. Esse pretenso “campeão da sinceridade” parece estar confessando seus defeitos, mas na verdade tenta evitar a responsabilidade por seu comportamento. Seu comentário de que é “uma pessoa má” trata seu caráter como imutável, como se tivesse nascido mau e não pudesse fazer nada a respeito. Ao mesmo tempo, ele tenta se valorizar diante dos outros sendo sincero sobre seus próprios defeitos. Procura transformar sua má conduta em um emblema de honra.
De forma parecida, o carteiro e o durão dizem aos jogadores: “Este é o tipo de juiz que sou, e é melhor lembrar-se disso antes de se meterem comigo.” Em vez de assumir a responsabilidade por suas decisões, eles se comportam como se suas reações fossem determinadas por seu caráter. Com a reputação de rigorosos reconhecida, ficam cada vez mais preocupados em estar à altura do papel. A fama funciona como desculpa para justificar decisões duras: os jogadores sabem que eles são assim e, portanto, é culpa deles se provocam uma reação.
Qual é, então, o estilo ideal de arbitragem, que evita as várias armadilhas existenciais que Sartre descreve? Repete-se que os melhores árbitros são aqueles que fazem seu trabalho sem interromper o fluxo natural do jogo. Isso sugere um ideal do árbitro autêntico, que aceita a responsabilidade por suas decisões, sem exagerar sua autoridade ou negar a natureza contingente de sua posição.
O juiz autêntico dá o melhor de si para apitar bem, mas não finge que a situação é definitiva a ponto de não haver interpelações. Ele é confiante o suficiente para admitir ser possível haver mais do que uma visão de um incidente, e que outros podem ter chegado a uma conclusão diferente. No final, porém, é responsabilidade sua controlar o jogo, e ele enfrenta a situação quando é necessário tomar uma decisão.
Um incidente que envolveu Pierluigi Collina, talvez o maior árbitro de todos os tempos, ilustra o que quero dizer. Em 1997, quando apitava um jogo da Série A entre a Internazionale de Milão e a Juventus, Collina validou um gol da Inter. Embora o artilheiro parecesse impedido, o bandeirinha não marcou a infração. Quando os jogadores da Juventus correram até o auxiliar para reclamar, ele explicou que, embora o atacante estivesse em posição de impedimento, a bola fora tocada para ele por um defensor.
Collina ouviu a explicação, mas achou que estava errada: de onde estava, parecia claro que o passe viera de outro atacante. Àquela altura, os jogadores da Inter já haviam comemorado o gol e estavam de volta ao seu campo à espera do reinício do jogo. Collina tinha diante de si uma escolha difícil: poderia prosseguir com a partida, embora achasse que a decisão estava errada, ou poderia voltar atrás e anular o gol, situação que faria o estádio vir abaixo.
Sabe-se o que alguns árbitros fariam. O vacilante tomaria o caminho da menor resistência, dando continuidade ao jogo e esperando que ninguém tivesse percebido. O rigoroso voltaria atrás e não toleraria discussão, citando a letra da lei. O durão adoraria o confronto, encararia os jogadores da Inter e os desafiaria a reagir. Tal como o rigoroso, o durão apresentaria sua decisão como se fosse a única solução possível, ignorando a ambiguidade da situação.
Collina sabia o que tinha visto. Ele também sabia que o bandeirinha tinha uma opinião diferente. Mas a responsabilidade de apitar era sua. Decidiu anular o gol, e o que fez em seguida mostra sua qualidade como árbitro. Ele chamou o capitão da Inter e explicou as razões de sua decisão. Depois, correu até o banco do time e explicou sua atitude mais uma vez. Não estava em busca de um confronto, queria que os jogadores e dirigentes entendessem por que ele voltara atrás. No final, Roy Hodgson, o técnico da Inter, apertou a mão de Collina e disse: “Tudo bem.” Percebeu que Collina dava o melhor de si numa situação difícil.
Em O Ser e o Nada, Sartre observa que os amantes retratam frequentemente seu amor como sendo necessário, em vez de contingente: falam sobre almas gêmeas, “feitos um para o outro”, “unidos pelo destino”, e assim por diante. A realidade, tal como Sartre a vê, é mais ambígua e, no fim das contas, bem mais romântica: cada um de nós tem muitos parceiros potenciais, e se acabamos ficando com uma pessoa, é porque nós a escolhemos em relação aos outros. Sartre descreve o amor que abraça sua natureza contingente, em vez de procurar superá-la, como “amor no mundo”. Para enfrentar a ideia de amor no mundo, é preciso que assumamos a responsabilidade por nossos relacionamentos, em vez de simplesmente apresentá-los como predeterminados ou predestinados.
Da mesma forma, o árbitro autêntico pratica a “arbitragem no mundo”, sem se esquivar da responsabilidade, nem fingir ser algo que não é. Ele decide, mas não é intransigente. Apita o que vê, o melhor que pode quando tem que decidir o que é correto. Se necessário, gasta tempo para explicar suas razões aos que foram afetados pela atitude. Sabe que nem sempre acertará, e outros terão invariavelmente uma visão diferente. Não obstante, assume a responsabilidade por suas decisões, dizendo: isto é o que eu escolhi.