ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Gastronomia Fundamentalista
Bin Laden, Saddam e Al Qaeda dão lucro no interior de São Paulo
Bruno Moreschi | Edição 51, Dezembro 2010
William Karam, de 57 anos, é neto de libaneses e sempre quis ter um negócio para chamar de seu. Só não sabia qual. “Que sentido haverá em abrir um restaurante árabe igual a todos?”, interrogava-se, às vezes, em voz alta. Era uma questão. Depois de se debruçar sobre ela por quase uma década, as ideias vieram. “O segredo é liberá-las aos poucos”, externou de si para si, com seu vozeirão de trovão, “e não gastá-las de uma só vez.”
No início, a impressão era que ele sucumbira à mediania desde o berço. A sua Esquina da Esfiha, inaugurada em 1997 na rua Nove de Julho, no centro de Araraquara, encarnava a própria mesmice: esfiha, quibe frito, quibe cru, quibe assado, homus, kafta… Era de bocejar. Um ano se passou, e, quando ninguém esperava mais nada dele, Karam deu um susto no estômago da cidade, lançando esfihas bombásticas no próprio cardápio. As bombinhas, de carne ou queijo, continuaram a ser oferecidas, mas agora o araraquarense audaz podia arriscar a sorte com esfihas inauditas, nos atordoantes sabores de siri, atum e camarão.
Chacoalharam-se nos galhos os cedros-do-líbano de todo o mundo, mas eles não perdiam por esperar. “O árabe precisava parar com esse medo de mudança”, apregoa Karam. Ele parou e não se arrependeu. Imbuído do gostinho de chutar o pau da barraca, deu ao povo a oportunidade de cair de boca em opções ainda mais extraordinárias: esfihas de brigadeiro, romeu e julieta e leite condensado.
É um teórico, esse Karam: “Mesmo contrariando os italianos, os brasileiros inventaram a pizza doce. Por essa lógica, não seria pertinente termos esfihas que adotassem o mesmo princípio?” A diplomacia ainda não consegue explicar satisfatoriamente por que a Itália não rompeu relações com o Brasil depois do advento da pizza de banana com doce de leite. Assim sendo, sempre pela lógica, Karam não receou que seu raciocínio gastronomicamente temerário abalasse muito as relações do país com o mundo árabe.
Passado o primeiro choque, Karam, como um general em campanha, mobilizou então a sua segunda ideia, desencadeando o que chamou de “revolução estética”. Seu estabelecimento comercial, agora “temático”, ganhou ares de mesquita. As paredes externas foram pintadas de amarelo-ouro. Na placa instalada no alto da marquise, um árabe sorridente anuncia o nome do local entre minaretes.
Karam imaginou que tais inovações bastariam para fazê-lo decolar. Engano. O lucro não veio na medida do esperado. Novato no mundo dos negócios, voltou à lista original de ideias, mas todas lhe pareceram sensaboronas. O visionário que ele julgava existir dentro de si parecia ter esgotado o seu arsenal.
Em 2003, desanimado com o andar da caravana, Karam chamou um amigo para ajudá-lo. Um dia, enquanto ele juntava quibe cru, coalhada, hortelã e azeite num pão sírio, o amigo começou a comentar os primeiros movimentos da Guerra do Iraque. Quando Karam deu as costas um instante, o amigo, por pilhéria, deitou pimenta no arranjo. Faminto, Karam tomou um pedaço grande e enfiou na boca – e aí correram as lágrimas. Foi uma epifania, o momento que ergue impérios: “Eu associei aquele prato extremamente forte com a Guerra do Iraque. Chamá-lo de Saddam Hussein me pareceu uma ideia muito boa”, ele conta, ligeiramente emocionado. “O resto veio fácil. Eu precisava inventar pratos com nomes polêmicos.”
Aos artistas pouco se nega. Movido por idiossincrasias pelas quais não precisa se desculpar, Karam grafou o nome do finado ditador como Saadam Hussem. A quem pergunta, diz que é para facilitar a leitura; se insistem, lembra que o prato é seu e que, portanto, pode fazer dele o que bem entender. (Aos neófitos em pimenta, recomenda-se vivamente que a deglutição de um Saadam seja amenizada por Magia Tropical, nome pelo qual atende o suco de abacaxi, laranja e hortelã.)
Na bolsa de Karam, Saadam Hussem e Bin Laden têm a mesma cotação: 9,20 reais. Ambos levam pão sírio, e param por aí as afinidades. Bin Laden tem muito mais substância: leva quibe frito no azeite, queijo mussarela, alface e tomate. Nem de longe é tão apimentado quanto o último homem forte do Iraque, mas cai no estômago feito uma feijoada completa. “Fiz uma coisa calórica inspirado no fato do Bin Laden ser um foragido, alguém que precisa comer muito para aguentar as dificuldades de viver numa caverna”, revela Karam, com lógica.
Ele criou também o Hezbollah, a 11,90 reais: quibe cru, tabule, coalhada, homus e quatro pães sírios. Não é servido como prato feito, mas aos poucos, em porções: “Seria um pouco incoerente colocá-lo como um lanche unitário. Os pães passam a ideia de coletividade, que é o modo como essa milícia armada se organiza.”
A fama não tardou, e Karam finalmente experimentou o gostinho delicioso de ter a casa lotada e as contas em dia. As manifestações públicas, contudo, não foram todas positivas. O proprietário do bar do outro lado da esquina espalhou que Karam havia batizado os três pratos em homenagem aos terroristas do mundo. “Não se trata de fazer fofoca” – declarou o invejoso, que, temendo represálias, só aceitou falar se mantido no anonimato –, “mas vai me dizer que você não acha nem um pouco estranho?” Em pelo menos vinte ocasiões, clientes suspeitosos tomaram a mesma linha de argumentação para reclamar dos nomes.
Karam acha espantosa a falta de humor de certas pessoas: “Será que o mundo ficou tão chato? Meu negócio é vender esfiha e não destruir prédios. Se o Bin Laden aparecer aqui, eu sirvo esfiha pra ele. Se aparecer o Bush, eu sirvo também.”
Irritado com os amargos, reagiu criando uma sobremesa, o Al Qaeda Ice. “Quis fazer algo extremo como essa organização”, explica. Não se diga que falhou. Seu doce petardo se compõe de um pão de mel acompanhado de sorvete de creme com cobertura de chocolate e flocos de Ovomaltine, podendo o freguês escolher se quer pão de mel sabor trufado, beijinho, chocolate, brigadeiro ou maracujá. O Al Qaeda Ice custa 5 reais.
A Esquina da Esfiha planeja inaugurar em 2011 o seu sistema drive-thru. Para festejar o progresso, serão introduzidos novos pratos, sobre os quais o chef mantém sigilo. Karam adianta, entretanto, que as novidades não serão apenas do tipo comestível. Confirmar ele não confirma, mas é bem provável que, a exemplo do McDonald’s, seu antípoda ideológico, ele passe a oferecer brindes infantis. Que ninguém se aterrorize, então, se de repente, nos playgrounds da cidade, aparecerem criancinhas com uma inocente esfiha na boca e um Bin Ladenzinho de pelúcia na mão.