ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O novo tom do Planalto
Em Brasília, escocês não é só o uísque
Clara Becker | Edição 53, Fevereiro 2011
Em julho de 2008, oito gaitas de foles Great Highland Bagpipes escocesas autênticas, embora produzidas no Canadá, sentaram praça na Banda de Música do Batalhão da Guarda Presidencial, em Brasília. À primeira vista, elas só conseguiram inspirar ao sargento Gileno uma pergunta: “O que eu vou fazer com isso?”
A resposta – assim como a ideia de importar os instrumentos, a 5 mil reais a peça – veio pronta de cima, vá lá se entender por quê, na forma habitual de ordem superior: a banda tinha três dias para estrear as gaitas na comemoração do 185º aniversário do Batalhão. Gileno e seus músicos são fiéis representantes de uma unidade histórica criada em 18 de janeiro de 1823 por d. Pedro I. Não podia tirar o corpo fora de uma tradição marcial que chegou de nau ao Novo Mundo.
“No Exército, ordens são cumpridas”, diz o sargento. A banda foi à luta, com desassombro e sem esmorecer diante dos obstáculos musicais nada desprezíveis: os quatro músicos sob o comando de Gileno só conheciam as gaitas de foles do filme Coração Valente*.
O primeiro desafio de Gileno foi encontrar em Brasília quem montasse as gaitas (sim, elas chegaram desmontadas). Restava o problema estratégico de aprender a empunhá-las. Qualquer erro, nesse ponto, impede que o músico comprima com o braço a bolsa de ar que enche com a boca, emitindo aquele som contínuo em que os acordes harmônicos se penduram como num varal.
Feito isso, bastava tocá-las. Na data marcada, a banda saudou seu aniversário, desfilando com o estandarte histórico do Batalhão Duque de Caxias ao som dos gemidos triunfais. “Militar”, segundo Gileno, “não desiste.” Ele é um goiano de tez morena, cabelo negro, cílios longos e voz mansa. Aos 41 anos de idade e 21 de tropa, tornou-se, em função de sua coragem, ousadia e falta de mão de obra mais qualificada, o gaiteiro-mor da Guarda.
Deu mais trabalho aprender como evitar que as notas saiam fora do tempo. Nisso, a gaita, com sua emissão contínua de som, pode ser traiçoeira. O remédio é recrutar o pessoal da percussão para marcar o tempo exato de encher as bolsas de ar e dedilhar as palhetas. Hoje, graças à perseverança de militares como Gileno, a Guarda Presidencial pode anunciar o “reconhecido Grupo de Gaitas de Foles e Tambores”, como consta, em letras maiúsculas, de sua página oficial na internet. Para os cínicos de plantão que costumam desmerecer a tese de que o Brasil é um cadinho de raças e costumes, proclame-se que a Guarda Presidencial é a última grande banda militar do país a ter as suas gaitas de foles. O Corpo de Fuzileiros Navais e a banda da Aeronáutica chegam a bocejar quando se fala dos instrumentos, com os quais convivem desde sempre.
Foi em pesquisas na rede, por sinal, que o sargento retraçou a origem da gaita de fole no Brasil até a frota de Pedro Álvares Cabral. Há menções inequívocas à sua presença no Descobrimento, como assinala Pero Vaz de Caminha em sua carta: “E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais constranger.”
A adoção da novidade pelos nativos foi instantânea, a ponto de os portugueses levarem “consigo um gaiteiro nosso com sua gaita”, que se meteu “a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita”. Passados cinco séculos, o repertório da gaita de fole aqui na terra continua internacional. Amazing Grace, o velho hino religioso inglês que os cantores negros transformaram em spiritual nos Estados Unidos, é a peça de resistência do naipe de gaiteiros. Mas Asa Branca, do nordestino Luiz Gonzaga, também integra o repertório. Assim como Can You Feel the Love Tonight?, de Elton John, que é tiro e queda para recrutar novos gaiteiros.
Atrair músicos para a banda é quase uma questão de segurança nacional, porque a Guarda Presidencial mal dá conta de seus compromissos oficiais, tocando às vezes em dois lugares ao mesmo tempo. Ultimamente, recepcionou os corpos dos militares mortos no terremoto do Haiti. Tocou no aniversário de Cuba. Embalou a tropa que a presidente Dilma Rousseff passou em revista na festa de posse. Miscigenou-se à percussão afro-brasileira do grupo Batalá quando a cantora Ana de Hollanda assumiu o Ministério da Cultura.
Isso sem contar as formaturas no Exército, que nessa época chegam a quatro por semana. E as noivas de militares. Se pudessem, elas teriam na cerimônia nupcial gaiteiros a caráter, vestindo kilts, os saiotes escoceses. Para isso, Gileno tem desculpa engatilhada: “Oito homens de saia na cerimônia ofuscariam a noiva.”
Com tamanha agenda, ainda cabe à banda ensaiar hinos exóticos como o da Finlândia, da Armênia, da Mauritânia, do Senegal, da Namíbia ou da Irlanda, cada vez que a Presidência da República recebe no Palácio do Planalto as credenciais de novos embaixadores. Nessas ocasiões, segundo Gileno, “errar uma nota pode causar um incidente diplomático, e o hino da Mauritânia é difícil”. Convém evitar as gaitas de foles.
*Correção em relação à edição impressa