“Ela estava normal quando fui deitar. Como era cardíaca, eu sempre dava uma olhada. Só agora de manhã percebi que tinha se finado” ILUSTRAÇÃO: JO VARGAS
Migalhas de um casamento
Com 86 anos, a gente tem o direito de começar a viver. Tem noites assim. Noites em que um homem se levanta e age
Fred Vargas | Edição 55, Abril 2011
Pequenas migalhas de pão iam da cozinha ao quarto, e chegavam até os lençóis limpos em que repousava a velha, morta e de boca aberta. O delegado Adamsberg, indo e vindo a passos lentos ao longo das migalhas, as contemplava em silêncio, perguntando-se que Pequeno Polegar, ou, no caso, que Ogro, as perdera por ali. Era um pequeno e escuro apartamento térreo de três cômodos no 18º arrondissement de Paris.
No quarto, a velha deitada. Na sala de jantar, o marido. Este aguardava sem impaciência ou emoção, apenas olhando com certa avidez para o jornal, dobrado na página das palavras cruzadas que ele não se atrevia a prosseguir enquanto os tiras estivessem no local. Já tinha contado sua breve história: ele e a mulher tinham se conhecido numa empresa de seguros, ela secretária, ele contador, casaram-se alegremente sem saber que seria por 59 anos. E então a mulher morrera durante a noite. De parada cardíaca, explicara por telefone o delegado do 18º arrondissement. Acamado, ele ligara pedindo a Adamsberg que o substituísse. Faça-me esse favor, é só uma horinha, rotina matinal.
Adamsberg acompanhou uma vez mais a trilha de migalhas. O apartamento estava impecável, poltronas revestidas com encosto de cabeça, as superfícies plásticas polidas, os vidros sem manchas, a louça lavada. Remontou até a lata de pão, que continha meia baguete e, envolto num pano limpo, um naco grande de pão sem o miolo. Voltou para junto do marido, puxou uma cadeira para perto de sua poltrona.
– Nenhuma boa notícia hoje – disse o velho, tirando os olhos do jornal. – Também, esse calor põe os temperamentos em ebulição. Mas aqui no térreo, dá para manter um ar mais fresco. Por isso é que deixo as venezianas fechadas. E dizem que também é bom tomar muito líquido.
– O senhor não se deu conta de nada?
– Ela estava normal quando fui deitar. Como era cardíaca, eu sempre dava uma olhada. Só agora de manhã percebi que tinha se finado.
– Tem umas migalhas de pão na cama dela.
– Ela gostava. De dar uma beliscada. Um pedacinho de pão ou torrada na cama, antes de dormir.
– Imaginei que ela limpasse os farelos todos depois de comer.
– Quanto a isso, nenhuma dúvida. Ela limpava da manhã à noite como se essa fosse sua razão de viver. No começo, não era tanto. Mas, com o passar dos anos, virou uma obsessão. Ela seria capaz de sujar só para poder lavar. O senhor tinha que ver. Mas também, pobrezinha, assim se mantinha ocupada.
– Mas e o pão? Ontem à noite ela não limpou?
– É claro que não, porque fui eu que levei o pão para ela. Estava fraca demais para levantar. Ela até me mandou tirar os farelos, mas eu realmente não ligo para essas coisas. Ela teria limpado no dia seguinte. Ela virava o lençol todo dia. Para quê, ninguém sabe.
– Quer dizer que o senhor levou o pão para ela na cama, e depois guardou de volta na lata.
– Não, joguei no lixo. Estava muito duro, ela não conseguia comer. Levei uma torrada para ela.
– O pão não está no lixo, está na lata.
– Sim, eu sei.
– E está sem o miolo. Ela comeu o miolo?
– Não, delegado, caramba! Por que ela iria se empanturrar de miolo? Miolo de pão duro? O senhor é delegado, não é?
– Sou. Jean-Baptiste Adamsberg, Brigada Criminal.
– Por que não veio a polícia do bairro?
– O delegado está de cama com essa gripe de verão. E a equipe dele estava indisponível.
– Estão todos gripados?
– Não, houve uma briga na noite passada. Dois mortos e quatro feridos. Por causa de uma lambreta roubada.
– Que terrível. Também, com esse calor, os miolos ficam fervendo. Eu sou Julien Tuilot, contador aposentado da empresa ALLB.
– Sim, já anotei.
– Ela sempre me recriminou por me chamar Tuilot, dizia que Kosquer, o sobrenome dela de solteira, era muito mais bonito. Tinha certa razão, aliás. Achei que o senhor era mesmo delegado, pelo jeito como fica perguntando sobre migalhas de pão. O seu colega aqui do bairro não é assim.
– Acha que estou dando importância demais às migalhas?
– Ora, faça o que achar melhor. É para o relatório, alguma coisa o senhor tem que pôr no relatório. Sei bem como é, contas e relatórios foi só o que eu fiz a vida inteira na ALLB. Se pelo menos fossem relatórios honestos. Imagine. O patrão tinha o lema dele, repetia o tempo todo: a seguradora não tem que pagar, mesmo tendo que pagar. Cinquenta anos trapaceando desse jeito não podem fazer bem para a cachola. Eu dizia para a minha mulher: seria melhor que você pudesse lavar a minha cabeça em vez das cortinas.
Julien Tuilot deu uma risadinha, para pontuar sua tirada espirituosa.
– A verdade é que não estou entendendo essa história de pão.
– Tem que ser lógico para entender, delegado, lógico e esperto. Eu, Julien Tuilot, sou lógico e esperto, em 32 anos, ganhei dezesseis campeonatos de palavras cruzadas, dificuldade máxima. Um campeonato a cada dois anos, em média, usando só o cérebro. Lógico e esperto. E nesse nível, dá dinheiro também. Isso – disse ele apontando para o jornal – é brinquedo para a meninada da pré-escola. Só que tem que apontar os lápis com frequência, e isso cria aparas. O que ela me perturbou com essas aparas! Por que este pão o incomoda?
– Ele não está no lixo, não acho que esteja assim tão duro, não entendo por que está sem o miolo.
– Mistério doméstico – disse Tuilot, que parecia achar graça. – É que eu tenho aqui dois pequenos inquilinos, o Toni e a Marie, um casalzinho lindo, caloroso como quê, que se ama com um amor verdadeiro. Mas não são do gosto da minha mulher, acredite. Não se deve falar mal dos mortos, mas ela fez de um tudo para matar os dois. E eu, faz três anos que venho desarmando todas as jogadas dela! Lógico e esperto, esse é o segredo. Eu dizia para ela: minha pobre Lucette, você não vai derrotar um campeão de palavras cruzadas. Esses dois e eu formamos um trio, eles sabem que podem contar comigo, e eu com eles. É toda noite uma visitinha. Como eles são espertos, e muito delicados, nunca aparecem antes de Lucette estar deitada. Eles sabem que eu fico esperando, ora. É sempre o Toni que chega primeiro, ele é maior, mais forte.
– E foram eles que comeram o miolo? Sendo que o pão nem estava no lixo?
– Eles adoram.
Adamsberg deu uma olhada nas palavras cruzadas, que não lhe pareceram tão simples assim, e afastou o jornal.
– Eles quem, senhor Tuilot?
– Não gosto de dizer, as pessoas não aprovam. As pessoas são fechadas.
– São animais? Cachorros, gatos?
– Ratos. O Toni é mais escuro que a Marie. Eles se amam tanto que, muitas vezes, bem no meio do lanche, param de comer para esfregar a cabeça um do outro com as patas. Se as pessoas não fossem tão tapadas, veriam cenas como essa. A Marie é a mais alerta. Depois de comer, ela sobe no meu ombro, passa as unhas no meu cabelo. Me penteia, por assim dizer. É o jeito dela de agradecer. Ou de me amar? Vai saber! Ora, é tão bom! A gente se diz um monte de coisas bonitas e depois se despede, até a noite seguinte. Eles retornam ao porão por um buraco atrás da caixa de descarga. A Lucette, um dia, cimentou tudo. Pobre Lucette. Não sabe fazer cimento.
– Compreendo – disse Adamsberg.
O velho o fazia lembrar-se de Félix, que podava suas videiras a 880 quilômetros dali. Tinha domesticado uma cobra, com leite. Um dia, um sujeito matou a cobra. Félix então matou o sujeito. Adamsberg voltou para o quarto, onde o tenente Justin velava a morta enquanto aguardava o clínico geral.
– Dê uma olhada na boca – disse ele. – Veja se enxerga algum resíduo branco, como de farelo de pão.
– Não estou muito a fim de fazer isso.
– Faça assim mesmo. Acho que o velho a asfixiou, enchendo-a de miolo de pão. Depois tirou o miolo e jogou em algum lugar.
– O miolo daquele naco de pão?
– É.
Adamsberg abriu a janela e as venezianas do quarto. Examinou o pequeno pátio interno, coberto de penas de pássaros, quase transformado em canto de despejo. No centro, um ralo coberto por uma grade ainda molhada, sendo que não havia chovido.
– Erga aquela grade. Acho que ele jogou o miolo lá dentro e esvaziou um balde d’água em cima.
– Que besteira – resmungou Justin, enquanto apontava a lanterna para a boca da idosa. – Se ele fez isso, por que não jogou fora a casca? E não limpou os farelos?
– Para jogar fora a casca, ele teria que ir até a lixeira, ou seja, aparecer na calçada à noite. Tem um café com mesas na rua logo aqui do lado, sem dúvida com muita gente nessas noites quentes. Alguém teria visto. Ele bolou uma excelente explicação para o naco de pão e os farelos. Tão original que chega a ser verossímil. Ele é campeão de palavras cruzadas, tem um jeito próprio de articular as ideias.
Adamsberg, com um misto de tristeza e alguma admiração, voltou para junto de Tuilot.
– Quando a Marie e o Toni apareceram o senhor tirou o pão do lixo?
– Claro que não, eles sabem como funciona, eles gostam. O Toni senta no pedal da lixeira, a tampa se ergue, e a Marie tira lá de dentro o que interessa para eles. Sabidos, não é? Matreiros, não há como negar.
– Com que então a Marie pegou o pão. E os dois comeram o miolo? Amando um ao outro?
– Isso mesmo.
– O miolo inteiro?
– São ratos grandes, delegado, são vorazes.
– E os farelos? Por que não comeram os farelos?
– Delegado, estamos tratando da Lucette ou dos ratos?
– Não entendo por que o senhor guardou o pão enrolado no pano depois de ele ter sido escarafunchado pelos ratos. Sendo que antes o senhor tinha jogado esse pão no lixo.
O velho acrescentou umas poucas letras nas suas palavras cruzadas.
– O senhor não deve ser muito bom em palavras cruzadas, delegado. Se eu jogasse a casca do pão no lixo, é claro que a Lucette ia perceber que o Toni e a Marie tinham aparecido.
– Podia pôr na lixeira da rua.
– Aquela porta range feito porco degolado. O senhor não reparou?
– Reparei.
– De modo que eu simplesmente enrolei o pão no pano. Evitando assim uma cena pela manhã. Sim, porque todo santo dia é cena que não acaba mais. Lá se vão cinquenta anos, caramba, que ela reclama passando o pano por tudo, debaixo do meu copo, dos meus pés, da minha bunda. Até parece que não tenho mais o direito de caminhar ou me sentar. Se passasse por isso, o senhor também ia esconder a casca do pão.
– Ela não teria visto a casca dentro da lata?
– Claro que não. De manhã, ela come torrada com passas. Deve ser de propósito, porque as torradas espalham milhares de farelos. De modo que depois ela fica umas duas horas ocupada. Percebe a lógica?
Justin entrou na sala e fez um breve sinal afirmativo para Adamsberg.
– Mas ontem – disse Adamsberg, meio abatido – não foi assim. O senhor tirou o miolo, dois punhados grandes, compactos, e enfiou na boca da sua mulher. Quando ela parou de respirar, tirou esse miolo todo e jogou no ralo do pátio interno. Me surpreende esse jeito que o senhor escolheu para matá-la. Nunca tinha visto ninguém sufocar ninguém com miolo de pão.
– É criativo – confirmou Tuilot tranquilamente.
– Seu Tuilot, já sabe que vão encontrar saliva da sua mulher no miolo do pão. E, já que o senhor é lógico, esperto, também vão encontrar marcas dos dentes dos ratos na casca do pão. O senhor deixou que eles terminassem o miolo para dar veracidade à sua história.
– Eles adoram se enfiar num naco de pão, é bonito de ver. Ontem passamos uma noite muito agradável, mesmo. Até tomei duas taças, enquanto a Marie me arranhava a cabeça. Depois, lavei e guardei a taça, para não levar bronca. Sendo que ela já estava morta.
– Sendo que o senhor acabava de matá-la.
– É – disse o homem com um suspiro negligente, preenchendo umas casas das palavras cruzadas. – O médico tinha vindo no dia anterior e me garantiu que ela ainda aguentava vários meses. O que significava dezenas de terças-feiras jantando empadão folhado, centenas de recriminações, milhares de espanadinhas. Com 86 anos, a gente tem o direito de começar a viver. Tem noites assim. Noites em que um homem se levanta e age.
E Tuilot se levantou, abriu as venezianas da sala de jantar, deixando entrar o calor excessivo e insistente daquele início de agosto.
– Ela também não queria abrir as janelas. Mas, delegado, eu não vou dizer isso tudo. Vou dizer que a matei para poupar seu sofrimento. Com miolo de pão porque ela gostava, como um derradeiro agrado. Eu planejei tudo aqui dentro – disse, batendo na testa. – Não vai ter nada que prove que não fiz isso por caridade. Não é? Por caridade. Vou ser absolvido e, dois meses depois, voltar para cá, pôr meu copo direto na mesa, sem descanso de copo, e os três vamos ficar bem, o Toni, a Marie e eu.
– Acho que sim – disse Adamsberg, levantando-se devagar. – Porém, seu Tuilot, de repente o senhor não vai conseguir encostar o copo na mesa. Talvez pegue o descanso de copo. E limpe as migalhas depois.
– E por que eu faria isso?
Adamsberg deu de ombros.
– É o que eu tenho observado, só isso. Muitas vezes, é assim que acontece.
– Ora, não se preocupe comigo. Eu sou esperto.
– É mesmo, seu Tuilot.
Lá fora, o calor obrigava as pessoas a transitar pela sombra, rente aos prédios, de boca aberta. Adamsberg resolveu andar nas calçadas expostas ao sol, vazias, e deixar-se levar a pé rumo ao sul. Uma longa caminhada, para se livrar da fisionomia faceira – e esperta, de fato – do campeão de palavras cruzadas. O qual talvez comprasse, numa terça-feira próxima, um empadão folhado para o jantar.
Tradução de Dorothée de Bruchard
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