ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Aeromaníacos
Os macetes dos observadores de beira de pista
Bernardo Esteves | Edição 55, Abril 2011
A pequena Clara, de 3 anos, fitava o horizonte no colo do pai, o bancário Alexandre Polati de Carvalho. Os dois vestiam camisetas com estampa de avião – na dele, um DC-10 da United Airlines; na dela, um Concorde da British Airways. Num sábado de céu nublado, estavam na passarela que cruza a avenida Moreira Guimarães, perto da cabeceira da pista do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. O pai apontou um jato da TAM que se aproximava, prestes a pousar, e perguntou: “Clara, e aquele ali, é Boeing ou Airbus?” Sem hesitar, a menina respondeu: “Airbus!” O pai não disfarçou o orgulho por mais uma resposta certeira.
Polati é membro de uma tribo de fanáticos capazes de passar um fim de semana inteiro num fim de pista, observando pousos e decolagens. É gente que se diverte com barulho de turbinas e cheiro de querosene. Que não se incomoda de passar sede, fome e frio para assistir à aterrissagem de um modelo raro. São os adeptos da observação de aviões – ou plane spotting, nome em inglês de um hobby que não ganhou uma tradução que emplacasse.
Nos fins de semana, os observadores de avião se encontram nas imediações das pistas de pouso pelo país afora. São mais numerosos em São Paulo. Os dias de boa luz podem atrair algumas dezenas deles aos aeroportos de Guarulhos, Congonhas e Viracopos. Naquele sábado de março, o mau tempo não impediu que seis (sem contar Clara) se reunissem na passarela sobre a Moreira Magalhães para olhar o céu, alheios ao trânsito de quatro pistas em cada sentido da avenida.
Nesses encontros, eles fotografam os aviões que se aproximam e tomam nota da matrícula de cada modelo que pousa. Detalhe indiferente para a maioria dos frequentadores de aeroportos, a matrícula – o prefixo que identifica cada aeronave, pintado nas asas e na cauda – é uma obsessão para eles. E não basta fotografar um modelo de uma dada companhia – é preciso clicar cada aeronave da frota, como se estivessem preenchendo as lacunas em uma cartela de bingo. E quando a empresa recebe novos aviões, é hora de entrar em ação para atualizar o álbum de figurinhas.
Distinguir um Boeing de um Airbus pode ser um feito para Clara, mas é tarefa para iniciante. Um observador que se preza deve ser capaz de identificar o modelo de um avião no escuro apenas pelo padrão das luzes ou pelo barulho do motor. Os mais experimentados vão além: “Consigo discernir de ouvido se a turbina foi fabricada pela GE, pela Rolls-Royce ou pela Pratt & Whitney”, gaba-se o jornalista Rodrigo Cozzato.
Para se manter em dia, a tribo acompanha publicações especializadas e monitora por radares on-line o voo de aeronaves pelos céus brasileiros. Alguns têm receptores de rádio em que sintonizam a frequência de mensagens trocadas entre os aviões e a torre de comando. Sua bíblia é o JP Airline Fleets International, anuário que compila matrículas de aviões de todo o mundo. Conectados em blogs e listas de discussão, os aficionados trocam informações sobre novas aquisições das companhias, pinturas comemorativas e visitas de aviões que não costumam dar as caras em aeroportos nacionais – uma ocasião de gala para eles.
O maior e mais raro deles esteve no Brasil para um pouso histórico em fevereiro de 2010. O Antonov AN-225 é um gigante de seis turbinas e quase 90 metros de envergadura, usado para transportar ônibus espaciais, locomotivas e cargas pesadas em geral. Um único exemplar está em operação no mundo. Veio trazer equipamentos para uma refinaria da Petrobras. Aterrissou no domingo de Carnaval na pista 09R de Guarulhos. “O pouso aconteceu às 9h30, um horário fantástico”, lembrou-se o engenheiro civil Vitor Freesz, de 26 anos. “As vias de acesso a Guarulhos estavam todas congestionadas. Contei mais de sessenta pessoas na cabeceira da pista.”
Uma boa máquina fotográfica com lente teleobjetiva é o item indispensável na bagagem do observador, que também inclui baterias e cartões de memória de reposição. Os mais puristas – como Alexandre Polati de Carvalho – desdenham o formato digital e ainda registram seus cliques em rolos de slides, à moda antiga. Seu orçamento mensal dedicado ao hobby chega a 1 500 reais no inverno, a alta estação, quando as condições de luminosidade são melhores. O spotter tampouco pode prescindir de comida e bebida – uma sessão de observação de aviões pode durar doze horas, enquanto houver luz natural. No metiê vigora a filosofia dos jogadores de pôquer – ninguém sai. O abandono do posto de observação para um lanche rápido pode significar a perda do pouso mais aguardado do dia.
Os fanáticos por aviões precisam também de uma boa dose de condescendência dos próximos. Eles formam uma grei de incompreendidos, frequentemente alvo da pilhéria de amigos e familiares. Conciliar o hobby com o casamento, então, é um desafio. Polati dá a receita para o convívio harmonioso: “Se eu passo o sábado no aeroporto, o domingo é dela.”
Nas viagens para o exterior, organizar um roteiro que contemple os interesses do casal exige habilidade diplomática. Geralmente, o arranjo prevê para as mulheres um ou mais dias livres para compras, enquanto os maridos correm para o aeroporto para encontrar spotters estrangeiros e fotografar aviões de companhias que não pousam no Brasil. O piloto Renato Salzinger acaba de voltar de Buenos Aires. Não foi a Recoleta, Palermo ou Belgrano. “Em compensação, documentei a frota completa da Austral, da LAPA e das Aerolíneas Argentinas”, conta, satisfeitíssimo com o escambo.
As esposas aceitam e até estimulam o passatempo, mas nenhuma se converte. O plane spotting permanece uma atividade essencialmente masculina. Os maridos juram que, no exterior, é mais fácil encontrar adeptas. No Brasil, são raríssimas. Não há uma mulher sequer entre os 54 assinantes de uma lista de e-mails sobre o tema moderada por Alexandre Polati de Carvalho. A julgar pelo sorriso de sua filha Clara enquanto mais um Boeing 737-800 se aproxima, o desequilíbrio deve diminuir nos próximos anos.