“Às 10 horas, desço para a academia e faço esteira e musculação. Os fins de semana são de faxina doméstica: lavar, passar, trocar roupa de cama. E também dias do “kit beleza”: hidratação no cabelo e fazer as unhas” FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Mulher no leme
A rotina da única mulher a comandar um navio-tanque no Brasil
Hildelene Lobato Bahia | Edição 58, Julho 2011
A única mulher a comandar um navio-tanque no Brasil é formada em ciências contábeis pela Universidade Federal do Pará. Ninguém em sua família singrou mares e ela só se apresentou no concurso público para incentivar o irmão a entrar para a Marinha. Nascida em Belém e radicada no Rio, HILDELENE LOBATO BAHIA, de 37 anos, ingressou na Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante em 1997, formou-se em 2000, e se espanta com o número de mulheres que há a bordo do Carangola, o petroleiro sob seu comando há dois anos. Hildelene já o passou seis vezes pelo estreito de Magalhães e, agora mesmo, largou o cachorro e o papagaio em mãos da sogra para viajar.
SEGUNDA-FEIRA, 23 DE MAIO DE 2011_Véspera do embarque. Hora de colocar tudo em ordem e repassar para a minha sogra as datas dos vários pagamentos do mês, a orientação para a faxineira, a suspensão das aulas de academia, a verificação da alimentação do Zezinho (meu cachorro) e do Katireu (o papagaio). Meu marido, Paulo Roberto, também da Marinha Mercante, só retorna para casa daqui a dez dias, quando estarei a bordo. Minha previsão de retorno é para daqui a dois meses. Paulo Roberto completa 29 anos hoje; estamos casados há sete anos.
Justo quando ia mandar uma mensagem ao aniversariante, toca a campainha. É o carteiro com a confirmação, por telegrama, do meu embarque e do horário do voo para Manaus. O procedimento existe desde que entrei na Transpetro, há quase onze anos: a empresa ainda considera o telegrama a forma mais segura de nos enviar a confirmação de embarque.
É a hora do mais difícil: arrumar as malas. Começo sempre checando minha documentação, a Bíblia, que não pode faltar, e os kits básicos essenciais: maquiagem, manicure, diversos cremes (rosto, cabelo, corpo, mãos, pés), CDs, filmes, livros.
A documentação de embarque propriamente dita consiste na caderneta de marítimo, carteira de trabalho, passaporte, carteira de vacinação (febre amarela), atestado médico e certificados específicos para marítimos petroleiros (combate a incêndios, sobrevivência pessoal etc.).
Também preciso checar meus uniformes e o restante das roupas. A mala fica bastante pesada e ainda levo duas bolsas adicionais. Uma última arrumadinha na casa (tenho mania de limpeza) e um papo com o marido via internet antes de dormir.
TERÇA-FEIRA_Acordo às cinco da manhã. Tive uma noite terrível, com Insônia, frio na barriga e ansiedade com o embarque. Apesar de estar no batente há mais de uma década, vivo cada embarque como se fosse o primeiro. Nunca deixo de orar. Despeço-me do meu marido pela internet, dou um beijinho no papagaio, que não para de falar, e no meu cachorro, que vem com o galinho de plástico para brincar – parece que adivinham que estou partindo.
Entro no táxi e sigo para o aeroporto. Tenho pavor de voar. No meio do caminho, percebo que esqueci meu quepe da Marinha, o cinto branco e as platinas. Mas não tenho mais tempo para retornar e o trânsito está terrível. Meu marido, quando voltar, me enviará o que falta pelo correio.
Na chegada a Manaus, depois da escala em Brasília, sigo direto para bordo e sou recebida no portaló, a escada de acesso ao navio, pelo comandante Brabo, que irei render. Fazemos uma breve reunião, seguida de outra com dois auditores internos e dos primeiros contatos com os demais tripulantes. Às 18 horas assumo o comando do NT (Navio-Tanque) Carangola. Ele tem 22 anos de idade e foi construído em um estaleiro do Rio de Janeiro.
QUARTA-FEIRA_Acordo às 4h30. A primeira manobra está programada para as 6 horas. Tento organizar meus e-mails e as documentações antes do robusto café da manhã – mesa cheia de frutas, queijos, diversos tipos de pães.
Desatracamos sem incidentes da refinaria de Manaus e ficaremos fundeados (parados) dois dias até seguir viagem para a cidade de Coari, um dos municípios mais ricos do Amazonas. Ali fica o terminal que escoa a produção de petróleo de Urucu.
Substituímos seis correntes de 27,5 metros, as chamadas “quarteladas”, às seis da manhã, quando já fazia 40 graus à sombra. Em seguida, aguardei o classificador, o funcionário que fiscaliza e inspeciona o teste da âncora (chamamos a isso de “testar com ferro”). Passei o resto do dia em trabalhos administrativos e à noite tentei me manter acordada para assistir ao jogo do Vasco. Apesar de flamenguista, prometi a meu marido que torceria pelo Vasco como presente de aniversário, mas não consegui assistir até o final. Dormi com a televisão ligada.
QUINTA-FEIRA_Acordei às quatro da manhã, desesperada para saber o placar do jogo. Ufa, o Vasco ganhou! Troquei e-mails com Paulo Roberto e depois segui para o café. Às 7 horas, com o classificador a bordo, realizamos os testes com o ferro, que são obrigatórios. Tudo em ordem. Descemos para o meu escritório para finalizar a documentação. Essa cabine de 18 metros quadrados comporta uma mesa de reunião, seis cadeiras, frigobar, estante com uma televisão de tela plana de 20 polegadas e um aparelho de DVD. Além disso, tem uma mesa pequena para o computador,uma estante de livros e dois sofás.
Às 11 horas, depois do embarque dos dois práticos, levantamos âncora e seguimos rumo a Coari. A navegação é muito bonita, vemos o encontro das águas do Negro com o Solimões. Nunca deixa de ser impressionante, parece até montagem. O calor é intenso, a correnteza forte, as chuvas constantes e desfilam paisagens tipicamente amazônicas. Como o rio Solimões está cheio, a navegação prossegue dia e noite.
Durante o período de seca (julho a novembro), a navegação é mais difícil e o risco de encalhe aumenta. A profundidade mínima em que o Carangola pode navegar é de 10 metros. Qualquer erro no peso da carga transportada é arriscado. Como o rio, estreitado ou não, serve de estrada para os moradores da região, a travessia é cuidadosa.
À noite, fizemos a primeira reunião com a tripulação – cerca de trinta pessoas, entre oficiais, suboficiais e guarnição.
SEXTA-FEIRA_Rotina: acordar, ir direto ao passadiço verificar o desempenho do navio, ouvir a oficial de serviço, o prático e o timoneiro. E descer para o café da manhã. Tratei da rotina do pessoal do convés com o imediato.
Passei na enfermaria para tomar a vacina contra gripe e a H1N1, aplicada pela enfermeira. Aqui a bordo, estamos em campanha e cerca de 80% da tripulação já foi vacinada.
À tarde, o navio se aproximou do Terminal de Coari para a manobra de atracação. Concluída a atracação, permaneço no escritório do navio e acompanho a liberação da carga. Depois, iniciamos a operação de carregamento de 18 600 metros cúbicos de óleo cru de Urucu.
Antes do jantar, verifico meus e-mails e tento tomar coragem para o meu primeiro dia na academia (a Transpetro realiza campanhas de incentivo à prática de atividades físicas). Só então consigo arrumar minhas roupas e meu camarote. Ele tem 6 metros quadrados, cama, armário, box padrão e banheiro. O que tenho de mais pessoal na cabine é a Bíblia, meu kit manicure, dois vasos de flores e uma caixa de CDs e filmes. A bordo temos tevê por assinatura nos camarotes dos oficiais e nos salões de lazer da tripulação.
Às 22 horas, desço até o Centro de Operações de Carga para verificar o andamento de toda a operação. Depois, tomo banho, leio a Bíblia e vou dormir.
SÁBADO_Logo cedo estava concluída a operação de carga de Urucu. Durante os preparativos para a saída do Carangola, fico observando a mãe de um oficial de náutica, recém-promovido. Garoto novo, o Kafa, deve ter 21 anos, e assumindo tamanha responsabilidade numa embarcação “tão grande”, como ela mesma diz. O Carangola é considerado um navio de pequeno porte (1,60 metro de comprimento por 23,30 de altura). Com sua máquina fotográfica, a mãe registra todos os movimentos da primeira viagem do filho oficial em um navio-petroleiro.
Temos a tradição de comemorar os aniversariantes do mês e hoje é uma data especial. Minha oficial de náutica, Greyce, grande amiga, de quem sou madrinha de casamento, faz anos hoje. Tenho um carinho especial por ela, pois foi um dos primeiros nomes selecionados para integrar a tripulação da primeira comandante de um navio-tanque da Transpetro. Faço parte da primeira turma de mulheres da Marinha Mercante brasileira, na qual ingressei através de concurso público.
Apesar de já terem passado catorze anos, lembro bem daquele concurso no Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar, em Belém. Além de provas de matemática, física, inglês e português, havia uma etapa final que consistia em dois testes físicos: corrida e natação. Fiz a prova para incentivar meu irmão a entrar para a Marinha, só que ele foi eliminado na primeira etapa. Passei para a segunda etapa, e, quando chegou a terceira, o desafio me parecia intransponível: eu não sabia nadar e nunca tinha participado de nenhuma corrida. Foi no sufoco que aprendi a nadar em quinze dias e cheguei à frente na corrida. Como prêmio, passei a fazer parte da equipe de atletismo.
DOMINGO_Atracamos em Manaus às 3h30 e desci para descansar no camarote. Mais tarde, no escritório, recebo o agente portuário com os despachos da capitania, atravesso minha correspondência eletrônica e repasso com a enfermeira o cardápio semanal elaborado pelos cozinheiros. No momento, a enfermeira de bordo é quem assume a função de gestora, responsável por fiscalizar a validade dos alimentos, a qualidade dos hortifrútis, o acondicionamento dos mantimentos, a temperatura dos balcões térmicos. Ela faz um levantamento semelhante para o estoque de medicamentos.
Às 10 horas, desço para a academia e faço esteira e musculação. A bordo, os fins de semana são dias de faxina doméstica: lavar, passar, trocar roupa de cama etc., e também dias do “kit beleza”: hidratação no cabelo e fazer as unhas. Paralelamente, acompanho a operação de descarga do produto para o Terminal pelo rádio VHF. À tarde, faço o serviço administrativo e leio os e-mails.Tudo em ordem. Leio um livro, A Cabana, de William P. Young, e, à noite, assisto ao filme Comer, Rezar e Amar, com a Julia Roberts.
SEGUNDA-FEIRA_Manobramos para desatracar e fundear o navio às três da madrugada. Na quarta-feira, teremos inspeção do navio pela Capitania dos Portos. Após o almoço, conecto a internet e inicio uma breve conversa com o meu marido, que também está em alto-mar. Sempre quando dá, combinamos de estar on-line às 12h30 para matarmos as saudades.
TERÇA-FEIRA_Depois de uma semana embarcada, tomo coragem e vou aterra. Durante esses dois meses, a rotina muda pouco. Saímos de Manaus sempre às quintas, por volta das onze da manhã, chegamos a Coari na tarde seguinte, saímos de lá com o carregamento no sábado e voltamos para Manaus na madrugada de domingo, onde ficamos fundeados até quinta-feira. Em Coari, a tripulação prefere ficar a bordo, pois ali a estadia não dura mais que dezoito horas. Todos aproveitam para assistir novela ou futebol.
Em Manaus, costumo sair só uma vez por semana, para fazer compras –tanto particulares quanto para o navio. Saio com a enfermeira, que, como ela própria diz, é “minha escrava branca”. Levamos uma lista extensa.
QUARTA-FEIRA, 1º DE JUNHO_Recepcionamos o inspetor naval no portaló, juntamente com o chefe de máquinas e o imediato. Nenhuma pendência, conclui a inspeção. Ótimo. Retornamos a nossa rotina. À tarde faço uma visita na praça de máquinas e fico muito feliz com o resultado: todos usando EPI (equipamento de proteção individual) e o local de trabalho limpo. O ambiente no navio é agradável, muito família, bom para trabalhar.
Hoje, mais uma vez, é jogo do Vasco e tenho de torcer para o time do meu marido, mas já o avisei que após a Copa do Brasil acabou o acordo. Meu grande amor é o Mengão.
QUINTA-FEIRA_E lá vamos nós de novo para Coari. Na saída de Manaus embarcou uma mulher marinheira. Confesso que ainda não estou acostumada a trabalhar com essa quantidade de mulheres a bordo: uma comandante, uma oficial de náutica, uma enfermeira, uma marinheira, duas praticantes de máquinas, uma de náutica e, na chegada a Manaus, embarca mais uma praticante de náutica, totalizando oito mulheres. Lembro que quando entrei na escola éramos somente oito mulheres e, a bordo dos navios, quando havia, eram no máximo duas por embarcação. Nossa guarnição é composta por três marinheiros de convés, dois marinheiros de máquinas e cinco marinheiros auxiliares. E agora, pela primeira vez, temos uma mulher na guarnição.
SEXTA-FEIRA_Hoje meu marido desembarca e volta para nossa casa. Bate uma saudade. Tem quase um mês que não o vejo.
SÁBADO_Por volta das onze da manhã, ao concluirmos a manobra de desatracação de Coari, o calor era insuportável: 45 graus à sombra, com sensação térmica ainda pior. Meu chapéu e o protetor solar, além do rádio VHF, são companheiros inseparáveis durante qualquer manobra nesta região.
O calor me faz lembrar de uma docagem (manutenção do navio) no Bahrein. Quando cheguei ao estaleiro, sob um calor de 50 graus, coloquei meu macacão e fui para o convés verificar o andamento dos serviços. Vi aquela diversidade de indianos, nepaleses e árabes, e percebi que todos pararam para me observar, pois não era comum ver uma mulher como imediato em navios e, muito menos, dando ordens aos homens a bordo.
DOMINGO_Chegamos a Manaus por volta das quatro da madrugada, mas não atracaremos antes das 14 horas. O telefone toca e ouço a voz triste do meu marido contando que tinha sido assaltado. Horas depois, o telefone toca novamente. Era minha mãe avisando que vou ser titia. A esposa do meu irmão – o que foi responsável pela minha entrada para a Marinha Mercante – descobriu que está grávida.
SEGUNDA-FEIRA_A nossa querida praticante Dayse retornou a bordo. Agora são oito as mulheres embarcadas.
O navio permanece em operação de descarga. Dessa vez, mais lenta. O Terminal tem interrompido diversas vezes a operação, seja para troca de tanque, análise de produto ou outro motivo, atrasando nossa saída. Hoje tenho uma audiência no Procon de Manaus e não gostaria de perdê-la.
Dei sorte, a manobra ficou para mais tarde e não vou precisar ser representada pelo procurador. Tomara que dê tudo certo nessa audiência que se arrasta há meses. Eu tinha comprado um pacote para o Caribe em fevereiro deste ano, mas não pude viajar devido ao meu trabalho. Tentei mudar as datas com antecedência, por estar embarcada à época, mas segundo a empresa isso não seria possível. Eu também teria direito a apenas 20% de reembolso do valor pago.
A audiência estava marcada para as 12h30. Saí de bordo um pouco antes e corri para o salão para fazer as unhas e preparar o cabelo. Para minha frustração, o representante da empresa não compareceu e a audiência foi remarcada. Agora somente em outubro.
TERÇA-FEIRA_A bordo, temos o sono muito leve. Qualquer barulho diferente nos desperta. Se a máquina reduz de intensidade, ligamos de imediato para o oficial de serviço no passadiço ou para o Centro de Controle de Motores. Esta tarde tivemos o exercício simulado de combate a incêndios, seguido de abandono. São exercícios importantes para familiarizarmos a tripulação com os recursos de que dispomos, e quais procedimentos devem ser adotados para combater o fogo ou abandonar o navio. Os exercícios têm duração de duas horas e dez minutos.
À noite, faço verificação no passadiço e escrevo as ordens noturnas do comandante. Em seguida, faço minha atividade física. Retorno ao camarote. São 23 horas: hora de dormir.
QUARTA-FEIRA_Hoje de manhã fiz uma auditoria comportamental no convés e na praça de máquinas, junto com o imediato e o chefe de máquinas. Verificamos a utilização do EPI pela tripulação – se está completo e sendo usado de forma adequada, se a área de trabalho está livre de obstáculos. Também ficamos de olho na postura e ergonomia da tripulação.
À tarde me ausento de bordo para ir ao banco e ao shopping fazer minhas compras particulares: revistas, chocolate meio amargo (adoro), produtos de higiene… À noite recebo ligação do meu marido, que quase não consegue falar: “Vasco campeão!”
(*) No dia 1 de julho a comandante Hildelene foi escolhida para comandar o Rômulo Almeida, um dos novos navios que estão sendo construídos para a Transpetro. Ela terá como imediato – o segundo na hierarquia – Vanessa Cunha. Será a primeira vez o Brasil que os dois primeiros cargos serão ocupados por mulheres.
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