“A gente mesmo montou a mesa de instrumentos e foi tentando não bagunçá-la ao longo da cirurgia”, contou o neurocirurgião ao fazer a narrativa de sua primeira craniotomia descompressiva do ano no Miguel Couto FOTO: ROGÉRIO REIS_TYBA_2011
Com a mão na massa (cerebral)
Plantão no Miguel Couto e residência no Hospital do Andaraí são a rotina de vida ou morte do jovem neurocirurgião Thiago de Bellis
Dorrit Harazim | Edição 58, Julho 2011
Existe um quadro do holandês Hieronymus Bosch, no Museu do Prado, em Madri, chamado A Extração da Pedra da Loucura, que foi pintado no fim do século XV. Quatro personagens compõem a cena campestre. De pé, um cirurgião, retratado como charlatão, porta um funil invertido à guisa de chapéu. A seu lado, há um ajudante e uma anciã pensativa, com um livro na cabeça, talvez simbolizando a verdadeira ciência. Sentado, um doente incauto e assustado é submetido a uma trepanação, a perfuração do crânio por um trépano, instrumento cirúrgico com a função de uma furadeira.
Referências a esse procedimento, usado no tratamento de doenças mentais ou epilepsia, remontam à era neolítica, quando foi desenhado em pinturas rupestres. Na Idade Média, curandeiros garantiam ter extraído de dentro da cabeça do demente as pedras que estariam causando sua loucura. E se guardava o pedaço de crânio retirado, como amuleto contra o mau-olhado. Essa operação de emergência primitiva, talvez a mais antiga de que se tem registro forense, consta do Livro da Cirurgia de 1497, de Hieronymus Braunschweig.
Nas primeiras horas da madrugada de uma terça-feira de fevereiro, Thiago de Bellis optou por fazer algo parecido num paciente depositado na emergência do Hospital Municipal Miguel Couto, na Zona Sul do Rio. Foi uma decisão de alta proficiência, destreza e autoconfiança para um carioca de apenas 29 anos.
Entre os seus companheiros de geração, Thiago de Bellis é tido pelo chefe do Serviço de Neurocirurgia do Miguel Couto, o doutor Ruy Monteiro, como mais do que hábil na realização da craniotomia descompressiva – a retirada parcial do crânio de uma pessoa com trauma e lesão cerebral provocados por acidente.
Embora o procedimento esteja a cinco séculos de distância da trepanação retratada no quadro de Bosch, ele continua a ser feito com instrumentos iguais, estruturalmente, às ferramentas medievais: uma broca e uma serra, só que com materiais e tecnologia contemporâneos.
O osso do crânio é retirado para abrir espaço aos edemas cerebrais provocados pelo trauma, e para que se possa estancar eventuais hemorragias internas. O osso é guardado, não mais como amuleto contra o mau-olhado, mas, para um leigo, de maneira talvez mais surpreendente. A equipe composta naquela madrugada por Thiago de Bellis implantou o osso craniano de 13 centímetros de diâmetro no abdômen do próprio paciente.
Como são excelentes a vascularização e a taxa de gordura do abdômen, o pedaço de osso fica bem conservado ali, sem risco de se deteriorar, até vir a ser reimplantado na cabeça do operado, quando os efeitos do trauma tiverem diminuído e seu quadro geral tiver estabilizado.
O Miguel Couto faz cerca de 800 atendimentos de pronto-socorro por dia. Quem chega andando deve preencher uma ficha de atendimento e passar por uma sala de triagem, onde se decide o que fazer com ele. Se o risco for baixo, o paciente é atendido numa sala do térreo, medicado, observado ali mesmo e despachado. Em caso de risco médio, ele é encaminhado ao 2º andar, onde funciona a emergência clínica. Pessoas com crise hipertensiva, asma aguda ou cólica nefrítica devem seguir o traçado de uma linha amarela pintada no chão até chegar ao setor de emergências não cirúrgicas.
Para o paciente que chega de ambulância, quem carrega a sua maca deve seguir a linha vermelha. Ela o levará ao elevador, ao 2º piso e a um corredor que desemboca numa porta dupla. “Sala de Reanimação”, informa o adesivo afixado na madeira. “Sala de Ressuscitação”, diz um painel mais visível, afixado na parede do corredor. Atrás dela há uma sala com espaço para quatro macas.
O paciente que aporta ali pode estar todo sujo, sangrando, estropiado, com as roupas rasgadas, nu, mas antes de qualquer coisa é entubado, ventilado, oxigenado e monitorado até ser considerado estabilizado – tudo em menos de dez minutos. Feita a primeira avaliação por um cirurgião geral, ou por um residente, é chamada uma equipe (neuro, vascular, ortopedia, a que for mais adequada ao caso) e é aberto um prontuário médico.
Fernando Vasconcelos está no 3º ano de residência em neurocirurgia. Aquela era a sua primeira semana do plantão na equipe de Thiago de Bellis e Paulo Roberto Lobato, neurocirurgião veterano com trinta anos de emergência no Miguel Couto. Por mais que se aprume no jaleco de doutor, Vasconcelos parece um garoto imberbe: tem 25 anos.
“Quando entrei na sala de ressuscitação, vi na maca um senhor agitado, com lesão na face, que não mobilizava de um lado; pensei logo que fosse atropelamento”, contou o residente, tentando relembrar a primeira impressão que lhe causou um dos muitos pacientes anônimos que atendeu naquela semana.
O paciente agitado que foi submetido a uma craniotomia descompressiva por um neurocirurgião de 29 anos, um residente de 25 e um veterano que se aposenta no ano que vem era o jornalista Marcos Sá Correa, editor de piauí. O trio só soube a identidade do paciente quando ele já havia sido transferido para a Clínica São Vicente e entregue aos cuidados do neurocirurgião mais conceituado do Rio, Paulo Niemeyer Filho.
Hospitais públicos de emergência costumam funcionar bem em qualquer lugar do mundo quando conseguem ignorar ao máximo a notoriedade do paciente. Foi o que ocorreu na capital americana na tarde de 30 de março de 1981. Com apenas 69 dias desde a sua posse na Casa Branca, o presidente Ronald Reagan sofrera um atentado na saída do Hotel Hilton. Seis minutos depois, dava entrada na sala de emergência do Hospital Universitário George Washington com uma bala num dos pulmões, três intravenosas nos braços e a pressão em queda.
Ao ser chamado, o residente William O’Neill, de 30 anos, desceu correndo para a emergência, mas foi agarrado por dois agentes de segurança. “Quem é você?”, rosnaram. “Sou o dr. O’Neill, da equipe de trauma”, respondeu ele, e foi literalmente projetado para dentro da sala, onde deu de cara com um idoso com os lábios cobertos de sangue e a pele acinzentada.
Um segundo residente ainda jovem, que acompanhava uma emergência na baia ao lado, foi convocado. Ele pôs a máscara de oxigênio no rosto do novo paciente, que o olhou e indagou: “Estou morrendo?” Sem ter ideia de quem se tratava, respondeu que não. Por fim, o cirurgião-chefe do plantão, Wesley Price, também ele um residente, ouviu sirenes, algum tumulto e correu para o setor de emergência. Tinha passado a noite em claro.
“Quem é o paciente?”, perguntou.
“O presidente”, respondeu-lhe alguém.
Topou então com Ronald Reagan na baia 5, nu, com bolsas de fluidos por todos os lados e um urologista tentando inserir um cateter para a retirada de urina.
“Quem está no comando?”, perguntou Price à enfermeira-chefe.
A resposta veio cortante: “Você.”
Segundo o relato eletrizante de Del Quentin Wilber no livro Rawhide Down: The Near Assassination of Ronald Reagan, publicado há três meses nos Estados Unidos, o diretor-geral do Departamento de Cirurgia chegou sete minutos depois. Empunhou um bisturi número 10, no qual não tocava havia tempos, e assumiu a responsabilidade e o risco.
O plantão de Thiago de Bellis no Miguel Couto, às segundas e sextas-feiras, vai das oito horas da noite às oito da manhã. Ele acorda às 5h30, toma banho, faz a barba, toma café e vai no seu Ford Focus de Copacabana até o Hospital Municipal do Andaraí, na Zona Norte, onde faz o 4º ano de residência. Chega antes das sete da manhã e sai na hora que dá. “Pode ser às duas da tarde ou à meia-noite, você acostuma”, explicou.
Nas quartas-feiras, dá outro plantão de 24 horas, também em Andaraí. Aos sábados, ajuda colegas que operam no hospital público de Saracuruna, em Duque de Caxias. E como domingo é dia da namorada, anestesiologista, estar de plantão, ele estuda e prepara as cirurgias eletivas marcadas sempre para as segundas-feiras, no Andaraí.
É uma rotina extenuante, mas corriqueira para quem faz neurocirurgia, a única área da medicina que exige cinco anos de residência – as demais se liquidam em três anos.
Quando dá tempo de passar em casa, entre um plantão e outro, Thiago traça um bife à parmegiana com batata palha, esquentados no micro-ondas do apartamento de dois quartos onde mora com a mãe e o irmão. Quando não dá, funciona à base de copos de Nescau, pão careca com manteiga e queijo de minas.
De Bellis acredita ter batido algum recorde, numa sexta-feira recente, quando fez uma cirurgia das nove da manhã às cinco da tarde, outras duas no seu plantão noturno no Miguel Couto, e dali seguiu direto para Saracuruna, onde operou três pacientes na parte da tarde. “Aí mandei colocar air bags no meu carro, por precaução”, contou.
Também tem tomado mais cuidado consigo mesmo. “Até o ano passado eu ainda fazia wakeboard na Lagoa Rodrigo de Freitas com meu irmão”, admitiu, meio constrangido. (O wakeboard é uma espécie de jet ski, só que sobre uma prancha.) “Fui dar um salto, me arrebentei todo e percebi que não posso quebrar o braço, e muito menos a mão”, acrescentou. Como no ofício é indispensável trabalhar com as duas mãos, e ser quase ambidestro, ele faz exercícios diários com os dedos. Um pouco como o pianista que, para encarar algumas sonatas de Beethoven, precisa cruzar as mãos no teclado para não interromper a fluidez da melodia e do acompanhamento.
Thiago, aliás, na tradição da avó que fizera conservatório, tocou piano até o estágio em que se aprende a Marcha Turca, de Mozart. Aí abandonou o instrumento, assim como abandonou o sonho de ser piloto de avião.
Neto, filho e sobrinho de anestesiologistas (a mãe é advogada), não se lembra de quando nem como caiu na neurocirurgia. “Você já se apaixonou por alguém?”, perguntou, para explicar a opção. “Pois a sensação foi a mesma. Foi de um dia para o outro. É com ela que vou casar.”
Ruy Monteiro, que trabalhou quinze anos na emergência neurocirúrgica do Miguel Couto antes de assumir a chefia do departamento, teve olho clínico quando viu De Bellis pela primeira vez. Disse-lhe, de cara: “Quero alguém para ensinar e para me ajudar. Se for essa sua intenção, bem-vindo. Mas se você for um curioso, que quer passar no hospital de vez em quando para ver coisas interessantes, não me interessa. Se estudar, vai entrar na cirurgia comigo. Se não estudar, dançou.”
Isso foi dito em 28 de setembro de 2002, data que Thiago lembra mais rápido do que o próprio aniversário. É capaz de descrever sensorialmente a euforia de vestir o avental cirúrgico, aprender a escovar unha, mão e braço, e adentrar o centro onde Ruy Monteiro operou um hematoma cerebral e depois um baleado na cabeça.
Dali em diante, toda a sua vida acadêmica, à parte o curso regular de seis anos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi no Miguel Couto. Fez ali os seis meses obrigatórios de emergência e a prova do Centro de Terapia Intensiva, que à época não era obrigatória, mas quis fazer assim mesmo. “Não adianta nada fazer um trabalho brilhante na sala de cirurgia e mandar o paciente para um CTI ruim”, explicou. “Não há boa cirurgia sem um bom pós-operatório, e achei que devia conhecer melhor o outro lado.”
Oito anos depois, naquela madrugada de fevereiro passado, Thiago de Bellis estava diante do paciente trazido em estado torposo e coma superficial à Sala de Ressuscitação. No linguajar da tribo, um Glasgow 10, escala de trauma que vai de 3 (coma profundo) a 15 (superficial). A tomografia de crânio apontara para um hematoma subdural agudo no lado direito do cérebro, e algumas confusões também do outro lado.
“Pela tomografia, era uma situação-limite, mas sem indicação clara para se recorrer à craniotomia descompressiva, ou tentar um procedimento menos agressivo”, disse De Bellis. Como o quadro não era claro, ele sugeriu a Lobato e Vasconcelos a opção pela craniotomia. “Prefiro pecar pelo excesso”, explicou.
No ano passado, foram feitas 99 craniotomias de emergência no Miguel Couto (além de 44 eletivas), sendo 34 delas descompressivas, ou seja, com a retirada temporária de parte do crânio. De janeiro a junho deste ano, outras 46 operações emergenciais de crânio entraram nas estatísticas do hospital. A da madrugada de 8 de fevereiro foi a primeira descompressiva do ano. Outras nove foram feitas até o final de junho.
Além do trio de neurocirurgiões, havia na sala dois anestesiologistas (um residente e um do quadro da casa), dois enfermeiros e um circulante. Como não havia instrumentador, “a gente mesmo montou a mesa e tentou não bagunçá-la ao longo da cirurgia”, disse De Bellis.
Começaram a trabalhar. “Caramba, passaram cinco horas, será possível?”, pensou o residente Fernando Vasconcelos ao olhar para o relógio da sala. Ele marcava seis da manhã. “Uma calma indescritível se apossa dos médicos e enfermeiros”, disse Ruy Monteiro. “Tudo se destina a evitar que o paciente entre em estado de choque, a condição mais temida e letal. Você não sente o tempo.” Lobato, o veterano, resume assim a sensação: “É uma cachaça.”
A narrativa passo a passo do procedimento, na fala articulada de Thiago de Bellis, leva uma hora e dez minutos. Ela é ao mesmo tempo singela e complexa, medieval e futurista, literária e científica. Dá um uso inquietante a objetos do dia a dia. Alguns trechos picados e em pílulas:
Como trauma é sempre uma cirurgia contaminada, prefiro sempre raspar a cabeça toda do paciente. Pode haver outras lesões que não percebemos se não raspar. Peguei uma caneta de marcar o local da incisão na cabeça. Marcamos também o abdômen, onde se guarda o osso. Prendemos os campos cirúrgicos com pontos de fios de náilon na pele do paciente, para não correr o risco de eles escorregarem e caírem durante a cirurgia.
Com bisturi frio ou elétrico, faz-se a primeira incisão na pele. Entre o crânio e o osso existe um tecido chamado pericrânio. Vai abrindo, não é difícil de fazer. Rebate a pele e prende no campo. Uma vez que se chega ao crânio propriamente dito, é preciso marcar os orifícios. Tem uma broca especial que você coloca no crânio e vai apertando. Quando ela chega na dura-máter, para automaticamente. É feita para parar quando acaba a resistência. Antigamente, se usava furadeira manual.
Ao terminar de fazer os furos de 1 centímetro de diâmetro, se pega um dissector. Uma espátula é usada para descolar a dura-máter do osso. Então é colocada a fresa, acoplada a uma ponteira. Encaixa ela no osso e vai rodando, cortando. Exige jeito. Ela faz barulho de furadeira de parede. Nos Estados Unidos, é usada uma vez e jogada fora. Aqui, é usada enquanto aguentar.
Pega outro dissector e vai dissecando. Retira o osso, coloca-o numa cuba com soro. Só então vamos abrir a dura-máter com um bisturi bem delicado. Abriu o primeiro furinho, pego uma haste bem fininha para ir descolando, passando a lâmina, para não correr o risco de lesar o cérebro. Coisa de milímetros.
Na verdade, em casos de trauma, nem precisaria ter tanta delicadeza, porque ainda tem 1 centímetro de hematoma até chegar ao cérebro. Mas sempre ajo como se não tivesse, para treinar a mão, fazer sempre igual. Medicina é a arte da repetição.
Tem uma tesoura própria para cortar a dura-máter do tamanho que achar necessário. Melhor deixar uma margem de 1 centímetro para poder suturar depois. Abriu a dura-máter, aparece o hematoma lá embaixo. Você aspira, vai tirando, aspirando, coagulando. Dificilmente se vê o vaso que sangrou e motivou o hematoma todo. Podem ser vasos corticais que já foram comprimidos pelo sangue do hematoma.
Quando não houver mais nada sangrando, e o cérebro estiver pulsando normal, é hora de começar a fechar. Mas não adianta fechar a dura-máter, que não tem elasticidade alguma, deixando o cérebro comprimido. Enquanto Fernando e Lobato fecham a dura-máter, fui lá para baixo e abri o abdômen, para inserir o osso entre a gordura e a musculatura.
Volto para a cabeça e termino a fechadura. Lobato põe um dreno, rebate o músculo temporal que ficou dissecado e vai fechando camada por camada. O couro cabeludo volta para o seu lugar. Ele não tem tanta elasticidade, mas tem mais do que o osso.
Pronto, está feita a cirurgia. O cérebro agora vai ter espaço para se expandir, sem ficar comprimido. Quem prestar muita atenção vai ver o cérebro pulsando embaixo do couro cabeludo.
Quando o edema diminuir, na fase pós-cirúrgica, haverá a retirada do osso do abdômen para fazer a cranioplastia: rebate-se a pele, abre-se o músculo, pega-se o osso que já está modelado com placas e parafusinhos, e fazem-se pontos no crânio que vão ossificando com o tempo.
De Bellis contou que a primeira avaliação foi feita logo após a retirada dos campos cirúrgicos. Deu tudo certo. Em seguida, redigiu o relatório completo, narrou o quadro para o médico pessoal e a acompanhante do operado, e o viu sair de ambulância rumo à Clínica São Vicente. O seu plantão estava praticamente encerrado. Era hora de rumar para a residência no Hospital do Andaraí.
Quinta-feira, 21 de abril, feriado de Tiradentes, o sol distende o Rio. Na unidade de neurocirurgia do dr. Paulo Niemeyer, erguida em meio à mata verde que enquadra a Clínica São Vicente, as assistentes estavam de folga. Pela fachada de vidro não se via vivalma. Mas o titular estava lá, na sua sala de final de corredor. Ele é outro que, decididamente, casou com a neurocirurgia.
Niemeyer evita superlativos de qualquer natureza: cirurgias não são “dificílimas”; quando muito, “não são fáceis”. Sem perceber, usa a palavra doente com frequência maior do que paciente. “Talvez eu faça isso pela gravidade dos casos que me chegam, tantas vezes entre a vida e a morte”, explicou, surpreso com a observação.
Aos 59 anos, conseguiu chegar à condição de sumidade da medicina sem afetação nem soberba. É comedido no vestir, metódico no explicar e direto nas respostas a pacientes e familiares. Na sua sala convivem tranquilamente uma miniatura de barro do Chacrinha e a reprodução de uma gravura sombria de Giorgio de Chirico. Nem seu computador é de última geração.
“É preciso peito para indicar uma craniotomia descompressiva”, ele disse. “Mesmo quando você está embasado tecnicamente, é preciso coragem. E a coragem de fazer é fundamental, por ser um divisor de águas nestes casos mais graves.”
Niemeyer também acha que as craniotomias conservam algo de medieval. E acredita que, com o passar do tempo, deixarão de ser usadas nos casos de tumor cerebral e aneurisma, por serem uma violência, inclusive para o cirurgião. Em casos de trauma, porém, ainda são um salva-vidas. “Os hematomas subdurais, aqueles que se formam abaixo da meninge, quando agudos, têm uma mortalidade de 50% antes da introdução da craniotomia descompressiva”, esclareceu.
Paulo Niemeyer se define como um homem caseiro. Ele opera todos os dias, tem uma média de catorze consultas por dia, mora perto da clínica. Vai no máximo a dois congressos por ano, além de fazer incursões pontuais em eventos de seu interesse. “Sou médico de centro cirúrgico, não posso ficar viajando”, explicou.
Não tem casa na praia nem na serra, e só tira férias se arrastado pela mulher. Em março passado, para pasmo dos colegas e familiares, passou duas semanas na Índia – e adorou. “Mas o que eu gosto mesmo é de ir sempre para Nova York, comer no mesmo restaurante e repetir o mesmo programa em viagens de no máximo cinco dias.” Por via das dúvidas, e considerando-se sua clientela, guarda uma cópia bastante manuseada de um artigo do New England Journal of Medicine. São três páginas que datam de 1988, mas, como ele mesmo observa, “valem para hoje e amanhã”. Título: Notas sobre o atendimento emergencial de pacientes VIP.
Niemeyer pensa que são necessários cerca de vinte anos para se formar um verdadeiro neurocirurgião. Terminada a residência, na sua avaliação o profissional precisa continuar a estudar, reavaliar os procedimentos que fez até então, testar sua personalidade.
Personalidade, além de aptidão, a seu ver, é o requisito indispensável de um bom neurocirurgião. Por lidar com pós-graduandos, que ficam cinco anos sob suas asas, aprendeu a identificar os que poderão se destacar. “Nos seis primeiros meses você já sabe quem vai arribar: pela maneira de se posicionar, de enfrentar os exames, pela rapidez de decisão você percebe o perfil do cirurgião antes mesmo de ele começar a operar”, disse.
Há também o dado material, que influencia a carreira do neurocirurgião. Por ser uma especialidade que requer longos anos de estudo e de trabalho, a seleção acaba se fazendo também pela possibilidade de se prosseguir na formação. Os que têm necessidade mais premente de ganhar dinheiro saem mais cedo.
“Estamos vivendo uma fase distorcida devido aos seguros-saúde”, disse Niemeyer.Em seus tempos de recém-formado, não se ganhava dinheiro. Era necessário, antes, alcançar certo nível profissional. O aluno era estimulado a fazer mestrado, doutorado, a melhorar.
Hoje, os planos de saúde não qualificam seus credenciados: um recém-formado ganha exatamente a mesma coisa que outro com doutorado na Alemanha e trinta anos de profissão. “Isso desestimula”, assegura Niemeyer, “e seduz muitos a fazer logo meia dúzia de convênios para se garantir. A não ser que o sujeito tenha determinação.”
Determinação é o que não falta a muitos dos garotos plantonistas do Miguel Couto. “É entusiasmo, pode ter certeza, e eles devem ficar lá vários anos. Mas não demais para não virar frustração”, disse Niemeyer.
Aos 45 anos, o chefe da neurocirurgia do Miguel Couto, Ruy Monteiro, não se encaixa na geração dos garotos citados por Niemeyer. Mas o entusiasmo tem a mesma têmpera de quem se empolga com pequenas conquistas de um hospital público.
A sua equipe prefere usar a sala do chefe, em vez de usar a sala designada aos médicos de emergência. A mesa principal está entulhada de papéis e ninguém parece notar o barulho louco que faz o ar-condicionado. O gaveteiro é feito de uma imitação de mármore. Uma televisão de 32 polegadas está sempre desligada. No sofá vermelho de três lugares, que Monteiro mandou reformar antes de trazer de casa, dorme Fenando Vasconcelos, o residente. De Bellis, por dar plantão só duas vezes por semana, tem direito a um colchonete, que fica dobrado no topo de uma montanha de entulhos, numa saleta anexa.
“Quando comecei, a neurotraumatologia era considerada a escória da neurocirurgia”, rememorou Monteiro. “Mas hoje, com a evolução da medicina, já é possível monitorar até mesmo a bioquímica do tecido cerebral.”
Ruy Monteiro festejava, no mês passado, a compra, a preço subsidiado, de um cateter capaz de monitorar a oxigenação cerebral. Também conseguiu sensibilizar a Secretaria de Saúde para a aquisição de dois fixadores de cabeça – os suportes de metal que são atarraxados na cabeça do paciente, para mantê-la imóvel. Até então, prendia-se a cabeça do doente com esparadrapo. Trocou as antigas lâminas de bisturi por uma máquina elétrica de raspar cabelo. As serras de cortar ossos agora são elétricas. E o estoque de brocas e fresas foi modernizado.
A joia da coroa, contudo, permanece encaixotada há meses no andar térreo do hospital. Trata-se de um tomógrafo de dezesseis canais, que representará um salto de velocidade, acuidade e reconstrução das imagens tridimensionais em relação ao equipamento atual, que dispõe apenas de um mísero canal. Ocorre que o setor de engenharia da Secretaria concluiu que a laje do 2º andar do hospital não aguentaria o peso do novo equipamento. Assim sendo, ele deverá ser instalado, algum dia, longe de onde ele é mais necessário: ao lado da emergência cirúrgica.
Apesar do salário líquido de 3 mil reais, como chefe de departamento, Ruy Monteiro diz que não faria medicina privada se tivesse condições financeiras de trabalhar apenas na pública. “A satisfação, ali, é muito maior. Aqui eu tenho certeza de fazer diferença”, diz ele, que também opera no Barra d’Or e no Copa d’Or.
E quais são os planos de Thiago de Bellis? “Vou falar baixinho pra não dar azar”, ele disse. Está há dois anos sem tirar férias para, em setembro, poder fazer um estágio de um mês num hospital de Tübingen, na Alemanha. Pelo relato de colegas que já fizeram o mesmo curso, está com medo de não querer voltar nunca mais.
“Aqui você tem de ser residente, maqueiro, enfermeiro, tudo”, contou. “Às vezes, para uma cirurgia acontecer, eu mesmo tenho de colocar o paciente na maca de transporte, tenho de empurrá-la até a tomografia, colocá-lo no aparelho – já aconteceu até de eu ter de fazer o próprio exame, pela ausência do técnico. E ainda levo o doente até o centro cirúrgico.”
Em Tübingen, onde o hospital também é público, o médico chega às sete da manhã, e ao entrar no centro cirúrgico, às 7h15, o paciente já está anestesiado e escovado, a aparelhagem está toda pronta, e a equipe, a postos. Ele só precisa escovar as mãos, vestir o jaleco e começar.
O ideal, para Thiago de Bellis, seria “poder me dedicar a um só hospital no Brasil, fazer carreira dentro da instituição, poder acompanhar todos os pacientes que operei e ganhar um salário que fosse justo. E fazer pesquisa, desenvolvendo minha identidade profissional junto com a instituição”.
Thiago se declarou agnóstico, Fernando Vasconcelos se disse ateu. Paulo Niemeyer afirmou não ter fé. Mas o mais difícil na disciplina escolhida pelos três, segundo Niemeyer, é adquirir a humildade de saber parar no meio da cirurgia.
“É uma coisa danada você reconhecer que não é Deus, que você não deve retirar aquele pouquinho de tumor que falta para a cirurgia em si ser perfeita, porque, se o fizer, o doente corre o risco de ficar pior do que estava”, disse. “Você sempre acha que vai conseguir retirar aquele último pedaço. E por isso é difícil saber o momento de parar.”
Sua crítica mais aguda é dirigida a congressos em que só são apresentados casos de cirurgias invejáveis: “Tudo é show, os médicos nunca mostram os casos que não foram bem. Todo mundo mostra radiografias fenomenais – ‘Vejam, não sobrou nada, retirei tudo.’ Sempre que um aluno meu volta maravilhado com alguns casos, pergunto: ‘Vem cá, o médico também mostrou como ficaram os doentes?’”
Niemeyer acha que é isso que vai diferenciando os cirurgiões e formando a personalidade da cada um ao longo dos anos. “É difícil para um jovem que está se firmando ter esse limite, não precisar provar sucessos de congresso para poder ganhar espaço.” Thiago de Bellis emite preocupações semelhantes.
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