ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
A verdade não colou
Os agentes da imigração americana não acreditam em coisa dada
Clara Becker | Edição 60, Setembro 2011
Foi com choro e champanhe que a fotógrafa mineira Elisa Mendes, 27 anos, se despediu da família no dia 29 de dezembro do ano passado. Morando há seis meses em Nova York, a jovem viera para uma breve temporada no Brasil – o suficiente para passar o Natal em família e renovar o visto. Se sua mãe soubesse que ela estaria de volta para o Réveillon, talvez tivesse economizado as lágrimas.
Elisa ganhara uma bolsa para o International Center of Photography, um dos grandes institutos de fotografia do mundo, onde havia estudado naquele semestre. Seu trabalho de fim de curso, New York Lovers, chamou a atenção dos professores. O projeto retratava casais multiculturais, desses que fazem ferver o sangue de supremacistas brancos e simpatizantes da neodireita europeia: tinha chinesa com jamaicano, punk com rastafári, egípcia com judeu. Era uma ode à diversidade e à tolerância, corolário da cidade cosmopolita que os adotara.
No aeroporto de Confins, Elisa despachou apenas uma malinha – a maioria de seus pertences já estava no quarto e sala que alugava no East Village, em Manhattan. Nas mãos, carregava uma pasta de plástico com uma carta de aceitação da escola, outra do professor de quem seria assistente e o protocolo de solicitação para o visto de estudante. Entraria como turista. Estava dentro da lei: o curso que fizera no semestre anterior era de pouca carga horária, e não comportava a alteração de visto.
Na imigração do aeroporto de Newark, o agente perguntou se ela morava em Nova York. Elisa demorou a responder – “morar” parecia um verbo definitivo demais. “Não. Estudo aqui”, respondeu. “Você estuda, mas não mora?”, devolveu a autoridade. “Vim estudar e passar frio”, brincou a fotógrafa mineira. A piada não colou. “Vamos ver se você passa frio mesmo.” Elisa gelou.
Num piscar de olhos, Elisa se viu cerrando fileiras com chineses, indianos e damas de fino trato do Leste Europeu, numa sala de cadeiras dispostas diante de três cabines individuais. “Só ali compreendi que minha imagem de uma cidade aberta e sem preconceitos não passava de ilusão infantil”, lembrou-se Elisa, dando uma tragada funda no cigarro. “E pior, eu tinha reforçado o estereótipo”, completou.
Nas paredes, monitores exibiam a imagem muda do rosto dos que estavam sendo interrogados. Elisa não anteviu que o seu interrogatório duraria seis horas e que sua expressão angustiada ocuparia por mais tempo as telas, como um campeão interminável de audiência.
O agente da imigração, um baixinho parrudo de olhos azuis, não conseguia entender como Elisa se mantinha nos Estados Unidos sem conta bancária ou cartão de crédito. “Eles não acreditaram quando disse que meu pai depositava dinheiro na conta da minha colocatária”, explicou, considerando o expediente perfeitamente normal. “Acharam absurdo que eu confiasse numa pessoa que conhecia há pouco tempo. Mas ela é portuguesa e a família da minha mãe também, e ficamos muito amigas”, explicou Elisa.
Na tentativa de melhorar as coisas, Elisa disse que não precisava de muito para viver. Teria sido melhor ficar calada. “Queremos gente que consuma”, informou o agente. “E depois, como alguém que não precisa de dinheiro aluga um apartamento no East Village?” Nessa hora, ela achou por bem encolher o valor do aluguel. Afirmou pagar 600 dólares, em vez dos 930 que o apartamento de fato lhe custava. “Meu queixo caiu, minha boca começou a tremer e minha pupila cresceu”, lembrou-se Elisa, de olhos marejados. “Depois dessa mentira fiquei toda errada.”
Àquela altura o funcionário da imigração passara a duvidar de que Elisa fosse fotógrafa. Pediu para ver seu equipamento. A parafernália tirada da mala parecia verossímil: um tripé, duas lentes, o corpo da câmera e rolos de filme. O agente quis ver também as fotos tiradas por ela. Novo imbróglio. Elisa não tinha, à mão, a senha para entrar no computador. O seu havia sido roubado em Belo Horizonte e ela herdara o laptop de uma amiga que acabara de comprar um novo. Ganhara a máquina, simples assim.
“Vem cá que isso aqui está ficando muito bom”, animou-se o agente, esticando o pescoço na direção de um colega. De fato, aquele se afigurava como um bom dia na repartição. Laptop dado? Por que diabos?, perguntavam-se os americanos, se o eBay estava aí mesmo para servir a todo ser humano no seu impulso racional de trocar velhas bugigangas por moeda sonante. De duas, uma: ou Elisa tinha roubado o computador, ou sabia a senha e tinha algo a esconder. Convenhamos que não podiam ser taxados de homens patologicamente incrédulos. Elisa era vítima do fato de que nem sempre a verdade é verossímil.
O próximo passo era previsível. Pediram para ver o celular de Elisa e submeteram ao tradutor do Google cada mensagem armazenada na memória do aparelho. Ocorre que este oráculo permanece perplexo diante do dialeto consonantal dos SMS, e nada pode diante de qd, tb e bjs. O que já era esquisito ganhou ares de conspiração ao desencavarem a única mensagem inteligível: “Elisa, vem amanhã trabalhar no Berimbau. Vai dar muito $$$.” Os cifrões eles entenderam – e chamaram um terceiro agente para se divertir com o caso. Aquilo era uma farra.
Chorando no ombro do guarda, Elisa perguntou por que não a deportavam logo. Pois era isso mesmo que fariam, respondeu o agente, feliz como um beija-flor na primavera. “Me senti numa cena de filme, fui algemada, segurei a plaquinha com o número do meu passaporte e tirei aquelas fotos de perfil.” Como no cinema, teve direito a seu telefonema. Avisou à mãe que estava bem, a caminho de casa.
Às seis da manhã, transferiram a brasileira para o aeroporto JFK, de onde seu voo sairia às 23 horas. Passou as dezoito horas mais longas da sua vida aguardando numa salinha branca com uma única saída de ar. Para passar o tempo, ficou torcendo um lenço roxo que por sorte tinha à mão.
Elisa já não sabia quantos nós havia feito no lencinho quando avistou o agente que conduzira o interrogatório no dia anterior. Ele viera de Newark apenas para se despedir dela. O choro da menina o sensibilizara. Explicou que ele e sua turma acharam que ela fosse uma grande traficante do East Village. Pediu desculpas e disse que, dentro de um ano, ela poderia voltar para os Estados Unidos. Os dois se abraçaram e Elisa o convidou para ficar na casa dela quando fosse ao Brasil.
O policial talvez tenha desconfiado ali de que a história do laptop afinal não era tão descabida assim. Mas já não havia como voltar atrás. Elisa embarcou algemada. Chegou à casa da mãe às onze da noite do dia 31, a tempo de ver os fogos de artifício.