Servo de Verinha
Aos 84, Sergio Rodrigues ainda desenha móveis, mas quem manda é a esposa
Luiz Henrique Ligabue | Edição 61, Outubro 2011
Ele tinha 17 anos e amava Verinha, então com 14. Um dia, ela pôs fim ao namoro, mas nunca lhe saiu da cabeça. “Preciso arranjar outra Vera de 14 anos para casar”, dizia-se ele. Até que a arranjou. Com ela teve três filhos. Mas o casamento acabou e reavivou a velha obsessão. Era Verinha, a primeira, que ele queria. E ela voltou, com 42 anos e dois filhos. É com o amor da adolescência que Sergio Rodrigues está até hoje, aos 84 anos.
Quando se reencontraram, o arquiteto e designer de móveis descobriu o motivo do desencantamento de Verinha. A moça andava assustada com a fama dos Rodrigues, aqueles desregrados. Nelson, tio de Sergio, havia pouco escandalizara o Municipal com seu Vestido de Noiva. Roberto, pai do pretendente, não fez por menos e tomou um tiro à queima-roupa de uma socialite adúltera. E o avô, Mario, colecionava inimigos com os artigos ferinos que assinava em seu jornal. Decididamente, não podia sair da grei dos Rodrigues um bom partido para aquela moçoila de vestidinho rendado, aluna do tradicional Notre Dame de Sion. Ajuizada, Vera Beatriz Agapito da Veiga rompeu o namoro a pedido dos pais. Mas não pôde evitar a expulsão do colégio por contestar os dogmas divinos.
É num sobrado em Botafogo que o arquiteto mantém o escritório em que passa seus dias, com Verinha por perto e rodeado de móveis premiados. “Meu analista – ou seja, eu mesmo – disse que está na hora de cuidar de mim mesmo, e é a isso que eu mais me dedico”, disse ele. Sergio Rodrigues gosta de chegar ao escritório às dez da manhã depois de andar os dois quarteirões que o separam do seu apartamento – invariavelmente de boina, bengala e suspensórios.
A diligência com que o arquiteto se ocupa das solicitações da agenda pode dar a falsa impressão de que está no comando. Mas a palavra final é sempre de Verinha. Depois que os dois se casaram, ela abandonou a carreira de administradora para gerir a vida e os negócios do marido. Quando a esposa passou por Sergio Rodrigues no escritório, ele tentou cooptá-la: “Meu amor, vem cá. Senta um pouco com a gente.” Vão apelo para uma atribulada Verinha: “Não posso, meu bem, estou atendendo clientes.”
Os cabelos do arquiteto já rarearam, mas o bigode alvo continua frondoso. Sergio herdou-o do tio-avô escocês James Andrew, dono do Castelinho da Praia do Flamengo em que ele foi criado. Foi observando, ainda criança, as ordens algo estapafúrdias que o velho Andrew dava a dois marceneiros portugueses na oficina do castelinho que nasceu o designer de móveis.
Quando a propriedade foi vendida, Sergio empenhou o quinhão que lhe coube para custear a primeira loja de mobiliário moderno de Curitiba, a Móveis Artesanal Paranaense. O estabelecimento provocou enorme bafafá na cidade, em 1953, mas em seis meses de funcionamento vendeu apenas dois sofás – e pelo preço errado.
Na faculdade, Sergio Rodrigues descobriu que o seu futuro estava no desenho de móveis. Embrenhou-se num curso de composição decorativa, nome dado na época ao ramo da arquitetura dedicado à decoração. Tentou também o curso propriamente de decoração Singer, mas saiu de lá correndo – costurar cortinas e almofadas não era o que tinha em mente. Saiu com a convicção de que o nome dos cursos estava em patente desacordo com a matéria.
Sergio nunca teve medo de arriscar. Depois do fiasco em Curitiba, foi a São Paulo ajudar no projeto do que seria a Loja Forma. Voltou ao Rio desacreditado. Resolveu fazer seus próprios móveis. Inspirado nos banquinhos usados na ordenha de vacas, rabiscou um projeto e levou-o a um marceneiro. Uma semana depois nascia o Mocho. A surpresa maior foi quando ele encontrou seu banco em várias lojas do Rio. Foi tirar satisfação com o marceneiro, que explicou que não iria desperdiçar tempo fazendo uma peça só. O jeito, concluiu Sergio, era fundar sua própria loja e fábrica, a Oca.
A novidade caiu no gosto da intelligentsia carioca. Niemeyer, Lúcio Costa e Darci Ribeiro, entre outros, convidaram-no para equipar palácios, hotéis, teatros e ministérios na nascente Brasília. Adolpho Bloch também o chamou para mobiliar a sede da extinta Rede Manchete. Ao lado do baiano José Zanine Caldas, do português Joaquim Tenreiro e do polonês Jorge Zalszupin, virou um dos mestres do modernismo brasileiro em móveis.
Mas nunca ficou rico – decerto porque tardou a reencontrar Verinha. Da Oca, saiu sem levar nada, por desentendimentos com o sócio que administrava o negócio. Seu projeto mais famoso e premiado, a Cadeira Mole, rendeu-lhe boas histórias, mas poucos dividendos. Certa vez, ao sair de uma aula, foi abordado por um senhor muito efusivo. “Sergio Rodrigues, devo-lhe a minha vida, o senhor é um gênio!”, felicitou-o. “Quando descobri que existia uma poltrona chamada Mole, não tive dúvidas: copiei e vendi para todo o interior do Brasil, fiquei rico e criei meus filhos. Muito obrigado.” Ao ouvir de novo a história, Verinha contemporizou. “O Sergio é assim mesmo, muito bonzinho, não sabe dizer não.” O arquiteto explicou que foi desarmado pela franqueza do plagiário: “O homem falou aquilo com tal desprendimento que virei amigo dele e até fizemos negócio. Depois ele produziu uma luminária minha e, desta vez, pagou.”
O designer continua projetando móveis, mas já não aceita encomendas. Às seis horas da tarde, a caneta cai impreterivelmente sobre a prancheta. Sergio Rodrigues se apruma, pega a bengala e volta para casa. Já Verinha quase sempre faz hora extra.
O alto preço de suas obras no exterior espanta o arquiteto. “Estou vivo e produzindo, não faz sentido”, disse. “Estão querendo que eu morra?” Dois traços de personalidade da esposa ainda o intrigam. Ele não entende por que ela é indiferente ao catolicismo e a outras religiões. Mas não é o que mais o perturba. Verinha, para seu grande pasmo, gosta mesmo é de ser chamada de Beatriz.