Entramos no estádio e começamos a marcha. Mal nos ouvíamos. O templo ruidoso abafava tudo. Chovia um pouco. Depois de marcharmos tocando mais forte, acabaram nos percebendo no gramado e o barulho arrefeceu. Fizemos a "âncora", evolução exclusiva dos Fuzileiros Navais FOTO: KYLE METCALF
No fim da infância
Até eu duvido que saí de Londrina com a fanfarra do Colégio Marista e fui ao Maracanã tocar e desfilar no jogo do Santos contra o Milan, na final do Mundial Interclubes de 1963
Arrigo Barnabé | Edição 64, Janeiro 2012
Em 1963, entrei para o Colégio Marista de Londrina. Na 1ª série do ginásio, éramos todos já diferentes, distantes do grupo escolar, dos guarda-pós brancos de uso diário, das professoras – dona Maria da Glória, dona Alice, dona Josefa e dona Glacy. O colégio também era mais longe de casa, tive de aprender a andar de ônibus.
Houve diferenças significativas, mas nada complicado, apenas que estudar com vários professores homens em vez de uma professora só (não existia essa coisa de “tia”) era uma novidade, realçada pelo fato de quase todos os professores usarem batina. Mas era comum ver padres andando pela cidade com suas batinas escuras. Então não estranhei muito. Para uma criança sensível, poderia ser amedrontadora a visão de um homem adulto vestido com uma batina preta. Mas não era o caso. Eram bons educadores, e alguns deles muito comunicativos e brincalhões.
O universo feminino nos dizia adeus. Quer dizer, era um colégio exclusivamente masculino. Ali, o feminino era o “eterno feminino”: a Ordem dos Irmãos Maristas era dedicada a Virgem Maria. Sempre rezávamos antes do início das aulas.
Os irmãos não eram ordenados sacerdotes, não podiam rezar a missa ou ministrar os sacramentos. E gostavam muito de futebol. Não era raro ver, durante o recreio, algum irmão, com a longa batina escura, ondeando em meio a trinta ou quarenta meninos, jogando a bola para o alto ao dar início a uma partida de futebol jogada ao acaso. Isso acontecia no recreio, e era uma loucura ver o campo coalhado de crianças. O colégio fora construído com duas alas formando um ângulo reto. O recreio era na parte interior, onde ficava o campo principal de futebol.
Antes do campo havia um jardim com enormes gaiolas onde eram criadas araras. Eram o xodó do irmão Acácio. Ao vê-lo com elas, qualquer um poderia entender o significado da palavra amor. Meu Deus, aquilo era amor em estado bruto, como só os inocentes podem senti-lo. O irmão Acácio era um personagem de Tolstói, uma criatura rústica, simples como aqueles que imaginamos próximos a Deus.
Do outro lado, no ângulo obtuso, havia uma entrada para carros, e ao lado um campinho de futebol com uma grama maravilhosa, suculenta, farta, generosa, que crescia verticalmente, quase em touceiras. Era nosso campo preferido, sem marcas de cal, livre de cerimônias, e com os “gols” menores.
Não sei se ainda hoje é assim, mas o sistema naquela época, entre os maristas, era de rodízio. Eles permaneciam algum tempo em um colégio, e depois eram enviados para outro, em outra cidade. E assim sucessivamente. Era raro alguém permanecer mais de seis anos no mesmo colégio.
Muitos irmãos maristas chegaram a Londrina, creio eu, em torno de 1960, vindos de Santos. Com o seu amor pelo futebol, com certeza haviam presenciado a gênese do maior time de todos os tempos: o Santos Futebol Clube do final dos anos 50 e 60. E com certeza acompanharam o trauma de Vasconcelos, a ascensão de Pelé, o surgimento do trio de pês: Pagão, Pelé e Pepe. Às vezes me pergunto como eles viam o fato de o Santos ter, entre seus miraculosos jogadores, um craque cujo nome negava o primeiro e principal sacramento da fé cristã: Pagão.
Dá para imaginar que eles eram todos fanáticos pelo Santos, certo? Não se tratava do time pelo qual torciam. Acredito que cada um tivesse seu time de coração, mas quantos milagres eles não presenciaram ali na Vila Belmiro? Naquele período, as pessoas que gostavam de futebol não resistiam e aderiam ao Santos, não importando para qual time torcessem. Dizem que era comum são-paulinos, palmeirenses, lusos, até corintianos, para não falar dos cariocas, irem ao campo para assistir aos jogos do Santos. O time transcendia as preferências. Imaginem aqueles padres, loucos por futebol, no Colégio Marista de Santos, presenciando tudo, talvez assistindo aos treinos na Vila Belmiro. Haveria melhor razão para se julgarem abençoados?
No colégio, em Londrina, os maristas haviam formado uma excelente fanfarra, com ambições de banda marcial. Para formá-la, trouxeram do Rio de Janeiro o instrutor da banda marcial dos Fuzileiros Navais, referência máxima das formações desse tipo em todo o país. Assim surgiu a fanfarra do Colégio Marista de Londrina, tantas vezes campeã em concursos, pródiga em exibições de gala em datas festivas, orgulho dos irmãos e dos alunos, glória da cidade!
Mais ou menos um mês após o começo das aulas, em abril, eu e meu irmão mais velho, Marcos, fomos convidados a ingressar na fanfarra. Para usar o jargão da banda, fomos “convocados”. Meu pai, sabendo que iria gastar dinheiro com os uniformes, e também um pouco receoso que era com novidades, tentou criar objeções. Afinal, as calças do uniforme eram de linho 120, que era caro. Precisávamos adquirir um blusão (muito parecido com o da banda dos Fuzileiros Navais) e um bibico (idem). Atenção: bibico é uma espécie de quepe, um quepe de dois bicos, um na frente e outro atrás, com uma fita que passa por um ilhós no bico posterior, e cai como um rabicho.
O argumento de meu pai para não ingressarmos na fanfarra foi bem interessante: poderia atrapalhar meu estudo de piano. Tocar um instrumento de percussão, com baquetas, poderia prejudicar minha formação pianística. Bom, eu não era nenhum prodígio no piano. Pelo contrário, sem nenhuma qualidade especial, era quase medíocre. Fomos consultar minha professora, dona Eudora, que, lucidamente, como sempre, argumentou: será muito bom tocar na fanfarra, você tem dificuldade em coordenar as mãos, tocar tambor vai te ajudar bastante no piano.
Vejam que mentalidade! No interior do Paraná, em 1963, seria de se esperar uma atitude reacionária de uma professora de conservatório. Realmente, tive muita sorte em estudar com ela. Além de me fazer descobrir Bach, entre outras coisas, recomendou aos alunos o filme Freud – Além da Alma, de John Huston, com as seguintes palavras: é um filme muito importante.
Ela era regente do coro da Igreja Batista e diretora do Conservatório Musical Filadélfia, que tinha orientação protestante. Talvez seja essa a explicação: naquele tempo, os protestantes, em alguns aspectos, eram bem menos conservadores que os católicos.
Vejam: eu fazia o ginásio num colégio católico e estudava música num conservatório protestante. Achava muito interessante que houvesse religiões diferentes, e lembro também dos funerais japoneses, com suas reminiscências xintoístas, quando algum vizinho japonês morria. (Estou divagando, me afastando do objetivo principal desta narrativa, mas uma lembrança puxa a outra.)
Voltemos à fanfarra. Meu primeiro instrumento foi a caixa de guerra. Não era muito atraente. O repique, mais agudo, e o surdo, mais grave, me agradavam mais. Para aprender a tocar, afinar (retesando o couro com as tarraxas e percutindo para avaliar o resultado), pendurar a caixa usando o talabarte (uma espécie de cinturão de couro que passava pelo ombro transversalmente) e ajustar as cordas de ressonância, que ficavam na parte inferior do tambor – para essa iniciação toda, íamos ao colégio no período da tarde, das quatro às seis. De ônibus, claro.
O colégio ocupava um grande espaço. A entrada principal era um portão pequeno, situado na esquina de duas ruas que flanqueavam o prédio. Passando o portão, seguíamos por uma calçada estreita, como se fosse um corredor, cortando em diagonal um bosque de flamboyants. Lembro-me das vagens dos flamboyants caídas na grama, e de como elas eram escorregadias ao serem pisadas. Como a grama não oferecia atrito, nossos sapatos derrapavam, procurando inutilmente a perdida crocância. No primário, ao voltar do Grupo Escolar Hugo Simas, as vagens explodiam sob os nossos pés, pressionadas contra o cimento da calçada. (Voltei a divagar, desculpem. São essas lembranças aprisionadas, ludibriando seu tolo carcereiro.)
Voltemos à realidade, à fanfarra. Aprendi, com alguma dificuldade, o primeiro “toque”, a marcha batida. Depois fui aprendendo outros: o “dobrado cinco” e o “cinco do surdo”, que tinha esse nome porque o surdo real mor fazia o sinal com a mão, com os cinco dedos para o alto. Havia outros números e nomes, que, desgraçadamente, não lembro.
Uma vez adestrados no básico, passávamos a participar da “formação”. Quer dizer: íamos tocar e marchar com a fanfarra. Bumbos presos ao peito por correias unidas nas costas, pratos a dois, surdos reais, surdos, repiques e caixas. Depois vinham as cornetas: em fá e em si. Entre as caixas e as cornetas ficavam os pistons, geralmente dois, em momentos de fartura, três. Depois das cornetas, quando existiam, vinham os pífaros. Talvez fossem tocados por meninos menores, quase como mascotes, mas não tenho certeza. Mascotes eram como essas crianças que entram nos jogos de futebol com os atletas. Geralmente uma ou duas crianças iam à frente da fanfarra, com o instrutor, o Battini.
O Santos havia vencido o Mundial Interclubes no ano anterior, 1962. Já era um fenômeno o time de Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Em 1963, quando ingressei no colégio, eu, santista incipiente, começava a acompanhar as transmissões dos jogos pelo rádio. Lembro muito vagamente dos comentários sobre a vitória do Santos na Argentina. Bicampeão da Libertadores! Enfim, vem a decisão do mundial interclubes, entre Santos e Milan. O primeiro jogo seria na Itália, o segundo no Maracanã, no Rio.
Os padres, fanáticos por futebol, e pelo Santos, começaram a acalentar o louco sonho de irem ao Rio assistir ao jogo. Resolveram que a nossa fanfarra deveria se exibir no Maracanã, antes da partida. Que desculpa melhor do que essa para ir ao Rio assistir ao Santos x Milan?
Essa história começou a chegar aos ouvidos da gente, na fanfarra, primeiro como suposições, depois como boato. Mas ninguém conseguia acreditar numa coisa dessas. Quem iria imaginar que pisaríamos no gramado do Maracanã antes do jogo? Quem? Éramos garotos, mas tínhamos algum senso de realidade, sabíamos que aquilo era impossível. Entretanto, os comentários continuavam, a boataria, o zum-zum-zum.
Finalmente, um dia fomos comunicados que a fanfarra do Colégio Marista de Londrina se apresentaria no Rio, antes do jogo Santos e Milan, no Maracanã. Realmente, a vida supera a ficção. Por que nós? Quantos não desejavam a mesma coisa? Que mistério, que bênção!
Às vezes penso que foi muita oração, imagino os irmãos, à noite, ajoelhados diante do altar da Virgem, rezando e fazendo promessas. Mas, pelo que soube posteriormente, foi um senador, Nelson Maculan, que intermediou isso. Mesmo assim, continuo vendo os irmãos ajoelhados diante do altar da Virgem, rezando e fazendo promessas (o que, aliás, é muito mais cinematográfico…).
Lotamos quatro ônibus com os 120 meninos da fanfarra, e partimos para nos apresentar antes do Santos x Milan, no MARACANÃ. Chegando, depois de uma viagem de dezesseis horas, ficamos hospedados num quartel da Polícia do Exército. Em camas de campanha, aquelas de armar. Como havia uma dessas em casa, para hóspedes, não era novidade.
Nossa alimentação era Chocomilk e sanduíches de mortadela. Como eu não comia carne, retirava a mortadela e comia o pão puro mesmo. Almoço, jantar e café da manhã: Chocomilk e sanduíche de mortadela.
No dia seguinte, fomos ao Maracanã ensaiar. Eu estava na primeira fila dos caixas de guerra. À minha frente, o último repique, o Tonelli. Lembro nitidamente ele dizendo que, se na hora da apresentação ele passasse em cima do centro do Maracanã, iria dar uma esfregadinha com o pé, uma “carcadinha”. Fiquei bravo, e disse que ele iria perder o passo, e ele rindo…
Fazíamos evoluções em campo, formávamos a “âncora”, um 88, quatro bolinhas (conhecidas como “rodinhas do Hiroki”, o instrutor substituto), uma série de figuras, todos marchando e tocando; era bem profissional para nossa idade. Bom, ensaiamos, e tudo saiu mais ou menos bem.
No dia do jogo, fomos cedo ao estádio. Ficamos em um vestiário alternativo, ao lado do vestiário do Santos. Tudo muito cinematográfico: 100 ou 120 criaturas com instrumentos musicais, uniformizadas, se preparando para pisar no Maracanã lotado.
Mas isso aconteceu mesmo? Até eu duvido… Entramos no estádio, perfilamos, e começamos a marcha batida. Mal nos ouvíamos. O templo ruidoso abafava tudo. Olhando para cima, víamos ni-ti-da-men-te metade do Maracanã todinho em vermelho e negro. Era a torcida do Flamengo, bandeiras, flâmulas, camisas, cores. Depois, em uma faixa estreita, de uns 20 graus, havia uma nuvem branca flutuando sobre outra torcida. Demorei para entender que era a torcida do Fluminense, o pó de arroz. E assim o estádio estava dividido entre as torcidas cariocas, sobrando uma pequena faixa para os torcedores do Santos.
Chovia um pouco. Depois de marcharmos algum tempo, tocando o mais forte que podíamos, acabaram nos percebendo no gramado e o barulho arrefeceu um pouco. O Tonelli pisou e carcou a marca de cal do centro do campo. Dei-lhe uma baquetada na cabeça com muita vontade, deve ter doído. O 88 ficou torto, uma das bolas do oito deixando de ser perpendicular, formando um ângulo reto com a de cima.
Fizemos a “âncora”, evolução exclusiva dos Fuzileiros Navais. O Ayrton tocando “Qual cisne branco que em noite de lua…” no pistom, acompanhado pelo repiqueiro-mor (Ariovaldo) e pelo surdo-mor (Hiroki). Era sempre a parte mais elegante da apresentação, camerística. O barulho diminuiu mais um pouco. Saímos da âncora fazendo a evolução de profundidade, e acabamos nossa apresentação.
Fomos para as numeradas, cadeiras de metal, que quase tinham gosto. Nos deixaram levar os instrumentos. O Santos, jogando sem Pelé e Zito, machucados, entrava com Ismael na lateral direita, Lima como médio-volante e Almir (Pernambuquinho) com a camisa de Pelé. Primeiro tempo: o Milan abre grande vantagem, com três gols. Segundo tempo: Pepe bate uma falta e marca. Depois Mengálvio, de cabeça. Depois Lima, o golaço da virada, 3 a 2. E Pepe de falta novamente, 4 a 2.
Com isso, o título seria decidido em uma terceira partida, dali a dois dias. Imagina se os padres iam querem voltar sem assistir… Acabamos ficando para a decisão. Mas isso aconteceu mesmo? Lembro da torcida vaiando o Amarildo, ex-Botafogo, campeão mundial em 1962 pelo Brasil, toda vez que ele pegava na bola. E também o Altafini, o Mazzola, campeão em 1958 pelo Brasil. Os dois jogavam pelo Milan. Lembro do Almir, infernizando a defesa italiana, se atirando de cabeça nos pés do zagueiro do Milan. Lembro do Dalmo pegando a bola com as duas mãos e indo para a marca do pênalti. Lembro da gente, na saída do estádio, com os instrumentos dependurados, batucando, misturados aos outros torcedores, a multidão que vibrava em comemoração, como havia negros no Rio, muito mais que em Londrina, sem comparação.
Lembro das meninas negras, adolescentes, pareciam ser da nossa idade, 12, 13 anos, sambando, com saias brancas, e o Luís Carlos, também caixa de guerra, que gostava de escandalizar o menino católico que eu era, passando a baqueta branca, com a ponta pintada de vermelho, nas bundas das meninas enquanto elas sambavam. E, é claro, elas não percebiam, o tecido da saia, que parecia um pouco com o das bailarinas clássicas, meio bufante, impedia a sensação tátil. E ele olhava para mim, rindo, com seus dentes grandes, e dizendo: Elas gostam, elas gostam!
Nesse momento, ele parecia aquele amigo do Pinóquio, que se transforma em burrico na cidade do Stromboli. Aquele personagem também tinha dentes grandes e o mesmo sorriso zombeteiro… Mas isso aconteceu mesmo?