ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Parafuso é coisa séria
Notícia é o que não falta no universo das porcas, rebites e arruelas
Daniela Pinheiro | Edição 65, Fevereiro 2012
Quando uma câmera do telescópio espacial Hubble parou de funcionar, dois astronautas americanos foram encarregados de resolver o problema. Flutuando na órbita da Terra a quase 600 quilômetros de altura, chave de fenda à mão, eles gastaram horas na inglória tarefa de desatarraxar um único parafuso emperrado. Caso não conseguissem, comprometeriam a sobrevida do projeto bilionário.
No verão de 2002, durante um longo racionamento de energia, 67 milhões de brasileiros em dez estados ficaram sem luz. A primeira explicação do governo para o apagão soou inverossímil: um parafuso frouxo na rede de transmissão perto da hidrelétrica de ilha Solteira havia se soltado, provocando a pane.
“E ainda teve o descarrilamento de um trem em Londres, o terrível acidente com o piloto Felipe Massa, causado pelo carro à sua frente, a tragédia com o bondinho de Santa Teresa, no Rio. Sem falar na maioria dos recalls de montadoras no mundo inteiro. A culpa é sempre dele, do parafuso”, lamentou Sergio Milatias, um paulista de 48 anos, baixo, de arredondados olhos azuis, sorriso blindado por um aparelho ortodôntico e fala paciente como a de um vendedor de enciclopédia. Ele trabalha para combater o preconceito contra essa peça corriqueira, mas essencial. “As pessoas o subestimam, mas parafuso é coisa séria”, afirmou.
Desde 2006, Milatias é editor, pauteiro, fotógrafo, assessor de imprensa, relações públicas e publisher da Revista do Parafuso, publicação bimestral de cinquenta páginas. Parafuso, no caso, é uma metonímia: o periódico se propõe a esmiuçar o universo dos chamados fixadores, que abrange também roscas, arruelas, rebites, buchas, pinos, cavilhas, chavetas e cupilhas. De acordo com o sindicato da categoria, o setor parafuseiro no Brasil movimenta cerca de 1,2 bilhão de dólares ao ano.
Em uma manhã recente, Milatias usava uma calça escura de tergal, camisa branca, gravata cinza-clara e um lustroso sapato preto. Dava expediente na sede da revista, uma sala de 20 metros quadrados com duas mesas, dois telefones, uma geladeira e um armário, em um prédio comercial no Centro de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Dali, comanda por e-mail ou celular dois jornalistas, um produtor e um fotógrafo terceirizados.
A revista tem tiragem de 8 mil exemplares, distribuídos gratuitamente entre profissionais do ramo. Impressa em capa com papel brilhante e fotos em close das peças (em evidente influência construtivista) ou imagens de obras de artistas plásticos conceituais, como o paulistano Cláudio Tozzi, a publicação relata eventos, seminários, feiras, workshops, encontros de classe e veicula artigos de autoridades da área. Seu forte, porém, são as reportagens e entrevistas exclusivas.
É assim que se diferencia da maior concorrente – a revista Tratamento de Superfície, com tiragem de 12 mil exemplares e em sua 170ª edição. Focada na agenda de empresas ligadas à Associação Brasileira de Tratamentos de Superfície, ela também cobre a atualidade de parafusos e afins e disputa anunciantes com a revista de Milatias.
O leitor da Revista do Parafuso não fica por fora da atualidade do setor dos fixadores. Em que outra publicação ele saberia que a Bombril também fabrica pentes laminadores de rosca? Ali ele se informa também sobre as novas técnicas de aperto do torque controlado, o lançamento de modernas conformadoras para bitolas de até 16 milímetros ou os últimos revestimentos anticorrosivos isentos de cromo hexavalente. Uma série de artigos avaliou três tipos de parafusos odontológicos: o de titânio foi o que se mostrou mais estável após um ano de uso. Na última edição, numa entrevista elogiada pelos leitores, o piloto Nelsinho Piquet contou como quase foi desclassificado em uma prova da Nascar Truck Series porque teve que voltar aos boxes para prender o parafuso de uma roda.
Como não poderia faltar, há também colunismo social no mundo das rosquetas e dos parafusos. A festa de inauguração da fábrica da Acument Global Technology, em Atibaia, foi pretexto para um show de mulatas com farta distribuição de cerveja, coxinhas e pastéis – tudo devidamente documentado em três páginas. A cobertura agradou ao editor: “Fábrica de parafuso é, em geral, muito feia, mas aquela era de luxo, rendeu ótimas fotos”, disse. “O pessoal gosta de ver esse lado mais social do business.”
Formado em desenho e ajustagem mecânica pelo Senai, Milatias já foi fotógrafo de casamentos, vendeu anúncios para o jornal O Estado de S. Paulo e arriscou-se fazendo sites, até se tornar representante de marketing de uma empresa de parafusos.
Com a ajuda de um amigo que trabalhava no Ibope, conversou com fabricantes, distribuidores e lojistas do setor para sondar se havia espaço no mercado para uma revista dedicada ao tema. Constataram que mesmo entre os profissionais do ramo tinha pouca informação sobre o assunto. Ele e o amigo desembolsaram 8 mil reais e contaram com a simpatia de um dono de gráfica para imprimir os 5 mil primeiros exemplares, distribuídos em montadoras, fábricas e lojas de parafusos.
“Na semana seguinte, o pessoal já estava ligando para me dar parabéns e se oferecer como anunciante”, contou. O segundo número da revista já foi pago pela publicidade. Anunciam ali desde empresas que fazem a máquina da rosca do parafuso a revendedoras de ferramentas para produzir porcas. Atualmente, o faturamento é de 50 mil reais por edição.
A cada número, atacadistas são homenageados com sucintas biografias de seus negócios. Na última edição, a honra coube à Parafuso Prestes Maia, localizada a 150 metros do apartamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em São Bernardo do Campo. À Revista do Parafuso, o proprietário declarou ter um estoque de 5 mil fixadores, detalhou seus projetos de expansão e admitiu que Lula nunca esteve na loja. “Mas um irmão dele, sim”, revelou.
O manancial de pautas, garante Milatias, é inesgotável. “Parafuso para uma Harley-Davidson é uma coisa, para pregar um quadro na parede ou prender uma plataforma petrolífera é outra completamente distinta. De um parafuso dentário ao usado na junta do cabeçote de biela, há acabamentos, elasticidade, densidades diferentes”, argumentou. “Tem assunto de sobra.”
Apesar da abundância de notícias, conseguir um furo no jornalismo de fixadores é um grande desafio. “É um mercado muito fechado, estratégico”, disse Milatias. “Mas eu gostaria de desvendar – e publicar – por que a Embraer comprou uma máquina de embalar parafusos depois que soube que a Airbus o fez.”
À guisa de entretenimento, a revista propõe um teste no qual os leitores são instados a adivinhar, por exemplo, quantos parafusos foram usados para montar o palco do show do U2 no Brasil (320 mil) ou quantos fixadores são necessários para prender as peças de um ônibus (900 arruelas e 6 400 parafusos). “São curiosidades que ninguém sabe, nem as pessoas da área”, disse Milatias. Por mais de uma vez, ele telefonou para a Prefeitura na tentativa de apurar o número de peças usadas na construção da ponte estaiada da Marginal Pinheiros. Na primeira, acharam que era trote. Depois, alegaram tratar-se de uma informação confidencial e divulgaram apenas o que foi usado no sistema de iluminação da obra: 1 600 chumbadores e 2 700 parafusos.
Pauta é mesmo o que não falta para quem tem um parafuso a mais.