Proust morto: traiu o realismo para ser realista, criou um indivíduo literário num tempo em que os indivíduos reais não significam nada, imersos que estão num mundo prescinde deles FOTO: MARCEL PROUST EM SEU LEITO DE MORTE _ANDRÉ DUNOYER DE SEGONZAC @MUSEU DO LOUVRE_RMN_OTHER IMAGES
Proust ─ Do pêndulo ao calendário
O acesso à riqueza de Tempo Perdido não requer preâmbulos. Demanda algo que está fora da obra e é cada vez mais complicado de conseguir: tempo e concentração
Mario Sergio Conti | Edição 65, Fevereiro 2012
O trecho que conta a morte de Bergotte é dos mais conhecidos de À Procura do Tempo Perdido. Ele está em A Prisioneira, o quinto livro do romance de Marcel Proust, e narra a visita do escritor Bergotte a uma exposição de arte holandesa, em Paris, para rever o quadro Vista de Delft, de Vermeer (ou “Ver Meer”, como preferiu o romancista). O episódio está ligado ao da madeleine, este sim o mais conhecido: o pequeno bolo ativa a memória involuntária do Narrador, no primeiro volume, e faz com que reencontre o vilarejo onde passava férias na infância, Combray.
A Prisioneira foi publicada um ano depois de Proust morrer, sem que tenha completado a revisão. A passagem sobre a morte de Bergotte contém aspectos biográficos e é das mais trabalhadas de À Procura do Tempo Perdido. Numa rara viagem ao exterior, Proust estivera nos Países Baixos em outubro de 1902. “Desde que vi no Museu de Haia a Vista de Delft, soube que vira o quadro mais bonito do mundo”, escreveu ele quase vinte anos depois a um amigo, o crítico de arte Jean-Louis Vaudoyer. A tela chegara então a Paris e Vaudoyer publicara um artigo a respeito dela e da exposição de arte holandesa no Jeu de Paume.
Proust, que quase não saía mais de casa, onde escrevia Tempo Perdido na cama, no festejado quarto com paredes forradas de cortiça, visitou a exposição com o amigo crítico em maio de 1921. Passou mal no museu, teve vertigens e voltou extenuado para casa. Percebeu, no entanto, a grandeza do quadro. Essa experiência, na qual epifania estética se confunde com perda de consciência e medo da morte, fez com que Proust relatasse o fim de Bergotte sob o prisma da permanência da arte no tempo.
Ele escreveu pedaços do relato em vários cadernos. A editora Gallimard juntou-os numa versão tipográfica, na qual Proust fez acréscimos à mão nas margens. Quando não havia mais lugar para escrever, continuou em folhas de papel e as colou umas às outras. Na noite de 17 de novembro de 1922, ditou mais algumas sentenças sobre a agonia de Bergotte a Céleste Albaret, sua governanta. Numa delas, o personagem pergunta: “Eu poderia tomar champanhe?” E um médico lhe responde: “Mas claro, se isso lhe dá prazer.”
Na manhã seguinte, dia 18, Proust acreditou ver uma grande mulher vestida de preto entrar no quarto e instou a atônita Céleste a expulsá-la. À tarde, seu irmão Robert e outro médico lhe deram uma injeção de óleo de cânfora, aplicaram-lhe ventosas e trouxeram tubos de oxigênio. Em vão: Proust morreu no início da noite. Como as frases que ditou sobre Bergotte eram incoerentes, ficaram fora de A Prisioneira, publicada em 1923. A versão definitiva só foi estabelecida em 1987, com base em manuscritos e versões datilografadas compradas pela Biblioteca Nacional da França.
No Brasil, a admiração pelo fragmento se expressa no número dos que o traduziram. Maria Julieta Drummond publicou uma versão no Correio da Manhã. A romancista Dinah Silveira de Queiroz o retraduziu para um número especial da Revista Branca intitulado Proustiana Brasileira. Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar trabalharam em dupla para a edição da Globo, coordenada por Mário Quintana. E Fernando Py fez outra tradução para a Ediouro.
A bibliografia sobre Proust compreende centenas de ensaios, teses, correspondências, biografias, memórias e múltiplas traduções para várias línguas. É uma indústria acadêmica e comercial. Há um livro sobre as viagens de Proust (patrocinado pela Louis Vuitton), outro fala do seu casaco (que está no Museu Carnavalet), um terceiro reproduz os pratos (inclusive receitas) e ainda outro traz as obras de arte (em papel cuchê) que aparecem em Tempo Perdido. Além de álbuns de fotos e manuscritos, catálogos, agendas, volumes só de bibliografia, cartões-postais, guias introdutórios ou de autoajuda, dicionários, resumos, índices de pessoas e lugares reais e de personagens inventados, coletâneas, seletas de toda espécie e até estudos empenhados sobre como usava parênteses.
Para não falar dos roteiros e das adaptações para televisão, teatro e cinema. Ou dos 111 CDs, com 128 horas de gravação, nos quais atores de primeiro time (André Dussollier, Lambert Wilson, Michael Lonsdale etc.) leem a íntegra do original de À Procura do Tempo Perdido – uma iniciativa fabulosa: percebe-se que Proust era um craque nos diálogos e na linguagem oral. Ou do pequeno museu em Illiers-Combray e do seu apartamento em Paris, que fica hoje dentro de um banco.
Escritores admiraram Proust: Gide, Cocteau, Beckett, Benjamin, Adorno, Virginia Woolf, Greene, Nabokov, Drummond, Barthes, Deleuze, Pinter, Antonio Candido. Cada vez mais há leitores de À Procura do Tempo Perdido, cujas diferentes edições são ininterruptamente republicadas. A edição canônica é a última da Pléiade, que traz esboços e variantes, prefácios, posfácios e notas em abundância em quatro volumes de mais de 5 mil páginas.
A miríade de produtos da usina proustiana é outra coisa. Amiúde fetichista, ou hipersegmentada, ela se estende em todas as direções e enreda o romance que lhe serve de objeto, chateando a sua fruição. A leitura, o acesso à riqueza de Proust não requer preâmbulos. Demanda algo que está fora da obra e é cada vez mais complicado de conseguir: tempo e concentração. Mas há estudos que ajudam a compreender a força do relato da morte de Bergotte.
Um deles é La Phrase de Proust, publicado em meados dos anos 70 por um professor universitário chamado Jean Milly. Ele diz que a frase é o elemento que define o estilo de À Procura do Tempo Perdido. E demonstra que, ao contrário do que se alardeia, os períodos proustianos não são invertebrados, labirínticos ou se perdem em nuances aleatórias. Proust concebeu uma maneira de compor frases para fazer algo necessário e novo: inventar uma forma literária que comportasse a crítica da sociedade à luz do tempo que a corrói.
Em Tempo Perdido há quatro personagens que servem de alegoria para a criação em pintura, música, teatro e literatura. Elstir, pintor impressionista de cenas ao ar livre, é adotado pelos salões mundanos. Vinteuil, professor de piano de província e compositor atormentado pelo lesbianismo da filha, tem suas obras enaltecidas depois da morte. A Berma é uma atriz que revitaliza a representação de Racine. E Bergotte, o escritor, é o modelo adotado pelo personagem principal do livro, o Narrador, que tenta aprender sua vocação e virar literato.
O Narrador dá poucos exemplos da escrita de Bergotte. Quando muito, cita expressões isoladas: “Emocionantes efígies que enobrecem para sempre a fachada venerável e encantadora das catedrais”, “eterna torrente das aparências”, “tormento estéril e delicioso de compreender e amar”, “sonho vão da vida”, “misteriosos calafrios da beleza”. Encarceradas em si mesmas, as imagens soam rebuscadas e passadistas.
Ao meditar sobre o estilo de Bergotte e ao contrastá-lo com a linguagem oral do personagem, diz Jean Milly, Proust explicitou o procedimento que ele próprio emprega em Tempo Perdido: o de fazer fluir longas frases, nelas emendando orações subordinadas e interpolações que buscam incorporar o que está contíguo ao narrado. São períodos que se alastram de maneira sinuosa e imprevisível, nos quais a locução ensaística dá a direção. Eles reproduzem o fluxo de pensamentos que altera a realidade ao percorrê-la.
O sentido dessas frases deságua em imagens que inundam, ou mesmo submergem, aquilo que o próprio estilo fixou em etapas anteriores: no gosto dessa madeleine molhada de chá, mordida ao acaso numa noite úmida, vive a Combray imutável e esquecida, reencontra-se o tempo para sempre perdido. Walter Benjamin, que o traduziu para o alemão, descreveu assim o romance-rio em “Para a imagem de Proust”: “Nilo da linguagem, que transborda e frutifica os vastos espaços da verdade.”
As frases de Proust, como as de Bergotte, têm uma dicção, uma melodia, quase uma música própria. Possuem “uma beleza plástica independente da significação das frases”. Mas não são apenas belas. Na longa duração do ciclo de sete livros, elas harmonizam asperezas e sobrepujam contradições pontuais. Isso ocorre de modo a que o sentido, a verdade acerca de um fato ou personagem, lentamente se transforme no seu contrário para captar dilaceramentos da consciência burguesa.
Na análise de Milly a técnica dá o tom. Ele maneja instrumentos da gramática, da linguística, da semiótica e da crítica literária. Apreende aliterações e ressonâncias, conta sílabas, registra paralelismos e repetições, ouve ecos internos, investiga ritmos, decompõe cacofonias. E descobre que a escrita proustiana é encadeada e cadenciada. As suas frases não terminam, por capricho subjetivo, em taldissílabo ou vogal aberta. Além de intenção, há maestria no procedimento do escritor.
Proust não tinha preconceito em relação a questões de técnica literária. Flaubert, ele escreveu, foi “um homem que pelo uso inteiramente novo e pessoal que fez do passado definido, do passado indefinido, do particípio presente, de certos pronomes e certas preposições, renovou quase tanto nossa visão das coisas quanto Kant”. A boa literatura não se faz apenas com o manejo de tempos verbais: pouco adiante ele nota que “só a metáfora pode dar uma espécie de eternidade ao estilo, e não há talvez em todo Flaubert uma única bela metáfora”. E defende que a construção de metáforas depende da visão que o escritor tem da literatura e da vida.
Milly chama o oceano de frases de Tempo Perdido de “prosa poética”, o que é um lugar-comum – e um clichê horrendo no Brasil, onde qualquer fardão diz que faz prosa poética. Mas serve para enfatizar que os sete livros não fazem uma justaposição forçada de temas e épocas, que seriam esmiuçados e matizados até se esvaziarem: a unidade da frase liga as partes ao todo e conecta os personagens à história, na qual corre o tempo.
Um segundo livro útil da bibliografia proustiana é o estudo, em três volumes e 1 644 páginas, feito no início da era da informática por outro professor francês, Étienne Brunet. Le Vocabulaire de Proust é tecnocrata: lista os 18 322 vocábulos e 2 976 nomes próprios empregados em Tempo Perdido. Contadas, ordenadas e catalogadas por computadores, essas palavras são repetidas mais de 1,2 milhão de vezes no livro.
Até aí, quase nada. Em literatura, levantamentos quantitativos fornecem raros atrativos, afora curiosidades e a confirmação de intuições um tanto tolas. Eis algumas delas. Albertine (2 360 vezes) é bem mais citada que Charles Swann (1 643) e o barão de Charlus (1 294). Proust não usa palavrões ou vulgaridades, evita o vocabulário de perito e prescinde de palavras altissonantes (glória, honra, herói), oriundas de conceitos da Idade Média e difundidas pela nobreza. Elstir, Bergotte e Vinteuil, três artistas, são citados praticamente o mesmo número de vezes (295, 299 e 302, respectivamente).
Tudo isso seria pouco mais que insosso se Brunet não tivesse contrastado o vocabulário de Tempo Perdido com o dos escritores do período, reunidos no Tesouro da Língua Francesa, e por essa via ampliado o entendimento de Proust. Ele constata que o mundo do trabalho está ausente da sua obra, assim como o da escola e o da prática religiosa – temas do realismo e do naturalismo, as tendências literárias dominantes. Na vida familiar, a idiossincrasia predomina: são raros irmão, avô e pai, enquanto abundam mãe e avó, por quem Proust era apaixonado.
A palavra tempo lhe era crucial, e não um adereço: aparece cinco vezes mais que nos livros de escritores da época. No primeiro volume, contudo, o termo aparece mais em sinônimos de curta duração (hora, momento, noite), enquanto no último livro, no qual o sistema se torna concreto, predominam as menções de maior alcance (anos, memória, tempo). E há apenas 54 datas precisas nas mais de 3 mil páginas de Tempo Perdido.
O levantamento de Brunet conclui que a originalidade de Tempo Perdido não está no seu léxico (que é enorme) ou na edição de trechos escritos ao longo de décadas diferentes (na qual Proust perseverou até morrer, sem terminá-la), e sim na frase (onde a novidade é radical, em que pese ressonâncias de Saint-Simon e Chateaubriand).
Brunet confirma que as frases são, de fato, longas: têm em média trinta palavras cada. E há uma, em A Prisioneira, com mais de 400 palavras, o que lhe dá cerca de 4 metros de comprimento. Mas é a única a se estender tanto. Tendo como parâmetro a edição Pléiade, grosso modo 40% delas têm até cinco linhas. Outras 40% ficam entre cinco e dez linhas. E só 20% das frases ultrapassam as dez linhas. O que marca o estilo proustiano é a oscilação entre o longo e o curto, o contraponto do relato abrangente e analítico com a síntese indagativa ou intensa, que emerge do caudal da narrativa.
O lugar do escritor na sociedade, sua posição política, suas opiniões ou boas intenções não garantem que se torne um grande artista. Filho de mãe judia e pai católico, convencionais e bem integrados à sociedade, Proust foi dreyfusard resoluto, mas que não levava a sério a política institucional. Rico e herdeiro, nunca teve profissão, emprego nem salário. Foi arroz de festa de banquetes fúteis, criatura mundana que viveu de mesada, ligada no mais das vezes a figuras menores. Essa situação, em vez de levá-lo à dissipação, à ignomínia de acumular dinheiro ou à defesa do status quo, inclusive literário, propiciou-lhe independência para se dedicar à arte. Rompeu com a divisão de trabalho que confere só a “especialistas” o privilégio da criação intelectual e artística, que se tornou um negócio com departamentos e entrada restrita.
Pelo rompimento com a divisão que está no cerne da sociedade, escreveu Adorno em Minima Moralia, a classe da qual Proust desertou – assim como os profissionais que a defendem – não o perdoou jamais. Não importa que a literatura lhe fosse uma questão de vida e morte, que tenha conhecido o ofício melhor que todas as academias e que seja autor de uma obra-prima da modernidade: para eles, foi tão somente um riquinho diletante.
“Sou muito trabalhador”, escreveu Proust a um amigo. Entenda-se a afirmação pelas tentativas goradas de encontrar uma forma literária em Jean Santeuil e Contra Sainte-Beuve. Pelas traduções e prefácios aos livros de Ruskin. Pelos pastiches de Balzac, Michelet, Renan, dos irmãos Goncourt e de outros, que revelam um conhecimento íntimo e mimético da literatura francesa. Pela correspondência monumental, cuja edição mais longa se estende por 21 volumes, mas abarca menos de 10% das cartas que escreveu. E, por fim, pelos 62 cadernos de esboços de À Procura do Tempo Perdido.
Toda essa atividade produtiva, exercida a despeito da divisão do trabalho intelectual em linhas de montagem, tem como corolário À Procura do Tempo Perdido. Trabalho livre e obra de arte autônoma que permitem bem apreciar a afiada afirmação de Fredric Jameson: há mais de quarenta anos, o crítico americano viu no salão da duquesa de Guermantes, palco de “relacionamentos pessoais, conversas, arte, moda, amor”, um reflexo distorcido da utopia comunista, “daquela paixão por tudo que é humano em seus menores detalhes, que será comum a todos na sociedade transfigurada”.
Um terceiro estudo pertinente é Proust’s Way, do americano Roger Shattuck. Ele sustentou, no início do século XX, que a oscilação estilística entre o longo e o breve em Tempo Perdido é de natureza pendular. O vai e vem, acrescento, expressa o conteúdo de verdade do romance: a contradição entre solidão e sociedade de um Narrador pendular, que vai do cárcere do pensamento individual ao presídio dos salões grã-finos, e vice-versa. Igualmente, oscila entre o ciúme e o hábito: o amor é a ilusão que permeia uma coisa e outra.
Em gramática, as frases longas seriam hipostáticas. São orações que estabelecem correlações sem fim, serpenteiam, cercam e arrastam o leitor para os fatos narrados. Já as frases curtas são paratáticas. Postas lado a lado, sem transições e conectivos, serviriam de contraponto e registrariam conclusões parciais. Só no fim a obra se revelaria por inteiro e apontaria para o seu próprio início. Daí Tempo Perdido ser avaro em aforismos e pródigo em dialética.
Não há no trecho sobre a morte de Bergotte a barragem de frases infindáveis, e sim a sua articulação com sentenças curtas. O que se narra é uma subjetividade parcial, uma experiência – apreciar uma tela e morrer – que situa a arte de Bergotte na sociedade e no tempo. Tudo o mais é um “corpo roído pelos vermes”.
Ao fixar a vista num trecho do quadro de Vermeer, Bergotte explicita a importância da frase:
Meus últimos livros são secos demais, seria preciso passar várias camadas de cor, tornar minha frase preciosa em si mesma, como esse pequeno pedaço de parede amarela.
A expressão-chave é “pequeno pedaço de parede amarela”. Repetida oito vezes, com ligeiras variações, ela associa a pintura do holandês à prosa do francês. O original, petit pan de mur jaune, faz com que monossílabos e dissílabos aliterem em “p” e ressoem rimas nasais internas (“m” e “n”).
Pan significa “pedaço” e remete a “pano” (de tela), enquanto mur quer dizer tanto “muro” como “parede”. Há três lugares na Vista de Delft onde o tal pedaço amarelo poderia estar, e é incerto se é muro ou parede. No pedaço mais parecido, o da extrema-direita da tela, parece não haver o alpendre de que fala Bergotte.
Essas ambiguidades, a possibilidade de uma coisa ser outra, e de estar em lugares diferentes, percorrem À Procura do Tempo Perdido. Quanto mais um personagem se aproxima de um fato ou outro personagem, menos ele o entende e nele se reconhece. Nada é fixo ou parece o que é. Como o amor está no sujeito e não no objeto, a alma do amor é o egoísmo. O casamento marca o afastamento definitivo dos amantes, que iludem a si mesmos e enganam um ao outro o tempo todo. A generosidade é uma forma de acumulação. A amizade serve para evitar a intimidade.
A imprecisão de Vermeer nos detalhes é parte de seu método pictórico. Por isso, o pedacinho de parede amarela, crucial no quadro e na cena proustiana, não se dá a ver nem num nem noutra. A parede que pode ser muro está envolta na mesma névoa que se propaga pelo livro.
Essa névoa é o tempo. A realidade não existe em si: depende da hora no dia fugidio, do lugar do personagem na estrutura literária e social, dos humores de quem a procura. Albertine ignora que se sente atraída pelo Narrador apenas porque naquela manhã ele fez a barba: acha que está apaixonada. Proust lamenta que a unidade aparente da vida se esfarele em átomos.
Na versão do petit pan de mur jaune para o português, a opção foi preservar a aliteração em “p”, estendê-la a mais um vocábulo e trocar a brevidade monossilábica pelos trissílabos, arrematando-os com um polissílabo. O mesmo ocorre com as ressonâncias nasais, que cedem lugar às vogais “a” e “e”: pequeno pedaço de parede amarela.[1]
Os recursos manejados por Proust – consonâncias internas, aliteração, cadência – pertencem mais à poesia do que à prosa. A irrupção de orações sintéticas, de duas ou três palavras, com interrogativas graves, se segue às frases longas: “Estava morto. Morto para sempre? Quem o pode dizer?” É o pêndulo marcando o tempo, a finura de relojoeiro num romance sem calendário.
Esses recursos são mobilizados para revelar uma falha. A morte de Bergotte é o apontamento de um fracasso. Ele malogra porque não percebe os sinais da morte que se aproxima. Põe sua existência num prato na balança e noutro, o pedaço de parede amarela. Malogra duplamente porque as suas frases, a sua arte, não estiveram à altura de seu tempo.
Na simetria interna de À Procura do Tempo Perdido, a cena da queda de Bergotte se situa a meio caminho entre duas outras, e dialoga com ambas. Na primeira, já referida, o Narrador redescobre Combray na madeleine. Repete a pergunta que fez a propósito da sua infância, mas agora questiona o destino final de Bergotte: “Morto para sempre?” Nos dois casos, não há certeza da morte. O passado em Combray pode, sim, reaparecer, mas o acesso a ele depende da memória involuntária. Nada pode recuperar o vivido, só o acaso. Passa-se a vida como joguete de imprevistos fortuitos até que o tempo conduza ao previsto, à morte.
A memória involuntária funciona em Tempo Perdido como a mercadoria em O Capital, no qual ela aparece já no primeiro capítulo. Ambas são uma concessão do método à exposição temporal, ao discurso: era preciso começar o livro por um elemento. Mas memória involuntária e mercadoria só podem ser entendidas quando o sistema – econômico e capitalista no caso de Marx, artístico e burguês no de Proust – adquire inteligibilidade, o que só ocorre na derradeira linha dos livros. Num caso, a transcendência do sistema está na revolução; no outro, na literatura.
Diante da Vista de Delft, Bergotte vislumbra que a arte pode criar um universo de alegria e verdade, e sobreviverá enquanto houver homens. Está na iminência de descobrir o segredo da criação desse mundo. Repete a expressão pedacinho de parede amarela e é aniquilado por um mal súbito. Morre tendo entendido que deveria ter escrito frases valiosas em si mesmas. Mas se deixou levar, não teve tempo de escrevê-las.
A outra cena, bem longa, ocorre no desenlace do romance, em O Tempo Reencontrado. O Narrador passou anos num sanatório, desistiu da vocação de escritor e a Primeira Guerra explodiu a Belle Époque. Abatido, vai a uma recepção da princesa de Guermantes. Ao entrar, um faux pas lhe reaviva a Praça de São Marcos, em Veneza, esquecida há muitos anos, onde também tropeçou. Um toque de colher num prato, o roçar de um guardanapo engomado, vários movimentos o levam de novo ao coração do passado. É a memória involuntária em ação, mas dessa vez ele não deixa que as impressões fujam. Vai adiante, pensa contra si mesmo, faz ligações entre o tempo perdido e o presente.
Descobre na recepção que a sua sociedade, a da nata com a qual conviveu, azedou. O esnobe machista agora é homossexual bem de vida. O arrivista, um escritor respeitável. A burguesa vulgar virou duquesa. O ambiente é fantasmagórico, as pessoas são ruínas ambulantes. Mas há reconciliação na dança macabra: os Guermantes se uniram aos Swann, a aristocracia se mesclou à burguesia e a classe dominante se reproduz sobre os destroços da guerra de 1914-18.
O Narrador faz uma espessa digressão estética e conclui que essas mulheres e homens – essas classes, essa sociedade – só sobreviverão por meio da arte, que pode ter o condão de situá-las na mudança e no tempo. E cabe a ele fazer isso. Agora, sim, ele tem um objetivo: escrever À Procura do Tempo Perdido.
Necessitará de uma forma literária na qual a análise seja inextricável do material descrito e que capture as modificações tanto dos personagens quanto do sujeito que narra. Precisará trair o realismo para ser realista, estilhaçar o narrador sem destruí-lo. Deverá criar um indivíduo literário num tempo em que os indivíduos reais não significam quase nada, imersos que estão num mundo que prescinde deles. Cria então o Narrador anti-ilusionista de uma época de crise.
Proust hesitou bastante até decidir que Tempo Perdido era um romance. “Não sei se disse que o livro é um romance. Ao menos, é do romance que ele fica menos longe”, escreveu numa carta de 1913, e concluiu: “Há nele um senhor que conta e diz: Eu.” O senhor que conta o que acontece a si e aos outros em primeira pessoa não é Proust. É o personagem mutante que narra o romance escrito pelo autor. Ser fictício, não tem sobrenome nem características físicas definidas.
Ao longo dos sete livros, apenas em duas ocasiões Proust atribui ao Narrador o prenome “Marcel”. A confluência entre personagem e autor fez com que muita tinta corresse para atribuir ao livro um eixo memorialístico e biográfico, e não o sentido de um romance. Vistas de perto, as duas vezes em que Marcel aparece, ambas em A Prisioneira, não sustentam a atribuição.
Na primeira, Albertine chama o Narrador de Marcel, mas Proust fez uma cláusula condicional, no gerúndio, como se exemplificasse: “Dando ao narrador o mesmo prenome do autor desse livro, ficaria: Meu Marcel.” Na segunda citação, feita novamente por Albertine, dessa vez num bilhete, não há o anteparo condicional, mas o trecho não foi revisado pelo autor – e há pelo menos outras quatro revisões anteriores nas quais ele cortou “Marcel”, substituindo o nome por fórmulas genéricas como “senhor” e “meu caro”, ou simplesmente o suprimindo. É mais sensato acreditar que Proust tenha mesmo sobreposto autor e Narrador um par de vezes, mas sem que “o senhor que conta” o romance deixe de ser figura fictícia e de vida própria.
Esse Eu multifacetado tem unidade complexa. Roger Shattuck distinguiu três Eu que narram Tempo Perdido: o menino que cresce ao longo do romance; o Narrador propriamente dito, que conta e pensa no que lhe aconteceu durante a vida, da infância em Combray até a recepção no salão da princesa de Guermantes; e o autor propriamente dito, que “não é o Proust biográfico, mas a sua persona literária, que comenta o romance e suas relações com a verdade e a realidade”.
O esquema, de pendor algébrico, pode ser matizado. Às vezes, o Narrador menino, jovem e mesmo adulto, não sabe, ou parece não saber, o que acontecerá adiante. Está imerso na ação, narra fatos do cotidiano e reage a eles. Noutras, como que assume a postura de alguém que está num tempo situado à frente, explica que a impressão tida no passado não é correta e afirma que o futuro revelará outras coisas. (No jargão, os retornos seriam analepses; as antecipações, prolepses.)
Mais adiante, as vozes se mesclam e alteram o tempo verbal das frases. As características e a perspectiva do Narrador se compõem e decompõem ao longo do livro. Ele fica mais ou menos ingênuo, ou cético, ou amoroso, ou iludido. Compartilha o que aprendeu, sentimentos e raciocínios que podem ou não ser também do autor.
N’A Prisioneira, o Narrador conversa com Albertine sobre aspectos de Baudelaire e Dostoiévski, e lhe diz: “Tudo isso me parece tão distante quanto possível, a menos que haja em mim partes que desconheço, pois a gente não se realiza senão sucessivamente.” On ne se réalise que successivement: eis o Narrador proustiano.
O Narrador, no entanto, muda de figura em duas ocasiões, uma notável e a outra extraordinária. A primeira ocorre na seção “Um Amor de Swann”, depois da parte da madeleine e da descoberta da memória involuntária. Ela tem quase 200 páginas e é uma das mais envolventes do livro. Ali, surge um narrador onisciente, na terceira pessoa, que conta a paixão do frívolo Charles Swann pela cocote Odette de Crécy. O Narrador explica que o caso entre os dois lhe foi relatado muitos anos depois de ter ocorrido, quando ele ainda não era nascido. Com isso, a configuração realista é mantida.
A segunda vez em que o narrador onisciente aparece é justamente na morte de Bergotte. Na parte inicial do trecho, que fala da doença do escritor, dos remédios que tomava, de seus diálogos com médicos e de suas relações amorosas, há componentes biográficos. Proust, filho e irmão de médicos, entendia do assunto e era partidário fervoroso e audaz da automedicação. E, como Bergotte, umas tantas vezes gastou a rodo com amantes jovens e com menos dinheiro (no seu caso, rapazes).
Ao assumir o ponto de vista de Bergotte, e ao dar um andamento cômico ao episódio, recorreu a artifícios que estão presentes no livro todo. Fez o mesmo com Charlus, Saint-Loup, Bloch e vários outros. O procedimento não destrói a verossimilhança porque, além de usual, o Narrador era amigo de Bergotte, que poderia lhe ter contado tudo.
No parágrafo final, porém, o da visita à exposição no Jeu de Paume, o Narrador não poderia saber nada do que se passou com Bergotte. O escritor percorreu sozinho o museu e percebeu a aridez e a inutilidade de alguns quadros, que considerou inferiores à natureza: não valiam “as correntes de ar e o sol de um palazzo de Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar”.
É materialmente impossível que tenha contado a alguém as suas impressões ao ver a Vista de Delft porque caiu fulminado logo em seguida. Só mesmo um narrador que tudo sabe, tradicional e implausível, poderia fazer isso. Teria sido simples a Proust continuar com o Narrador de sempre. Bastaria ter feito com que outro personagem fosse à exposição com Bergotte. Poderia ter se inspirado em Jean-Louis Vaudoyer, que o acompanhara à mostra holandesa em Paris; e também em si mesmo, pois tivera tonturas ao ver os quadros. Algumas expressões que Bergotte pensa ou fala antes de morrer são adaptações das que Vaudoyer escrevera sobre Vista de Delft: “areia rosa dourada”, “mulher de avental azul”, “matéria tão preciosa”, “paciência chinesa”.
Mas, não. Proust emprega a terceira pessoa. A exceção intriga. Por que ele fez isso? Seria uma regressão à narrativa tradicional? Há uma interpretação possível. Com a narração onisciente, a forma literária que o próprio Tempo Perdido superou e enterrou concretiza, também ela, o fracasso de Bergotte. É uma ruína estilística que referenda o malogro do personagem do escritor modelar. A adequação da forma literária ao tempo redescoberto só ocorrerá nos derradeiros parágrafos do livro, quando o Narrador descobre os meios de fazer o romance polifônico. Aí o escritor se fechou no quarto, recostou-se na cama e escreveu a primeira – e curta – frase de À Procura do Tempo Perdido: “Por um longo tempo, me deitei cedo.”
[1] Não é hora de se estender sobre as traduções de À Procura do Tempo Perdido. Mas a editora Globo acaba de publicar a 15ª edição de A Prisioneira e a apresenta como “revista” e “definitiva”. No trecho sobre a morte de Bergotte, Proust escreveu que o escritor era um “artista ateu”. E a Globo, quase sessenta anos depois de ter lançado o livro, republica a tradução “artista culto” sem fazer qualquer comentário. Não há alternativa possível: athéeé “ateu”.