ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Pig Brother
Porcos viram celebridades antes de virar linguiça
Tamine Maklouf | Edição 68, Maio 2012
Uma votação incomum mobilizou 124 usuários do Facebook em janeiro. A partir de um punhado de fotos, eles tiveram que escolher um porco num universo de cinco concorrentes. O que diferenciava os candidatos eram detalhes como uma pinta preta ou uma orelha torta. A votação foi acirrada: ganhou um suíno malhado, com 35 votos, três à frente do segundo colocado. Desde então, os eleitores podem monitorar online a vida do escolhido até o dia em que vier a óbito e virar um apetitoso toucinho. Após o abate, é facultada aos interessados a aquisição de embutidos e derivados feitos com a suculenta carne do mamífero em questão, devidamente rotulados com a sua foto, data de nascimento e morte.
A ideia de vender “linguiças com rosto” é de Dennis Buchmann, um estudante de Berlim de 34 anos. Com o projeto Meine kleine Farm [Minha Fazendinha], idealizado durante sua pós-graduação em políticas públicas, ele pretende alertar para o consumo exagerado de “carne anônima”. Não se trata de humanizar os bichos que viram refeição, como faria Walt Disney. Os suínos comercializados por ele são identificados apenas por números – o animal eleito ficou conhecido como #2. “Meus porcos não são animais de estimação”, esclareceu o estudante. “Estão ali para ser comidos.”
Buchmann é alto, ruivo e fala depressa. Na sua avaliação, os alemães querem uma pecuária cada vez mais transparente. Para atender à nova e bestial Weltanschauung, nada mais apropriado que dar aos teutônicos a oportunidade de conhecer o leitão que vão deglutir, sua procedência, hábitos alimentares, características físicas e a maneira como foi criado. Alguns críticos acusaram-no de alimentar um fetiche mórbido. “Ora, o mínimo que se espera de alguém que queira comer carne é que seja capaz de olhar na cara do animal”, reagiu, impaciente. “Quem não aguentar que vire vegetariano.”
Pelo site do projeto, o interessado pode escolher um porco e encomendar seus derivados, quitutes que vão do patê de fígado ao chouriço. Um blog apresenta informações detalhadas sobre o cotidiano dos mimosos animais e uma ficha com peso, data de nascimento e abate. A procura é tão grande que, mesmo antes de sua morte, os derivados do #2 já estavam todos vendidos. Os 15 euros cobrados por um belo salsichão defumado – quase o triplo do que se paga por um equivalente produzido convencionalmente – parecem não assustar o boche urbanoide, que valoriza a alimentação orgânica e cultua uma romântica nostalgia da roça.
Um comentarista anônimo do blog pediu a Buchmann detalhes sobre o próximo animal a ir para a faca: “A vida do porquinho #6 foi tão boa quanto a do #5? Por favor, preciso contar a meus filhos mais detalhes sobre a vida desse porco, senão vão ficar decepcionados. Será que você poderia subir mais algumas fotos do #6?” Wunderbar!
A fazenda em que a bicharada pouco asseada vive é tocada por Bernd Schulz, um tipo falante e bonachão que virou ícone do nicho da suinocultura teuto-orgânica. Sua propriedade tem 53 hectares e fica numa cidadezinha de uma rua só chamada Gömnigk, a 75 quilômetros de Berlim. Lá é criada uma vara de 300 porcos, à base do bom e do melhor em matéria de centeio, cevada, trigo e feno – tudo orgânico (sim: como aprendemos nos bancos escolares, mas usamos só no vestibular, o coletivo de porcos é “vara”).
Quem visita a fazenda pode atestar que a porcaria de fato vive num ambiente assaz bucólico e familiar, para não dizer idílico – nada que lembre os hediondos chiqueiros com piso de cimento em que são confinados os pobres suínos fadados ao nefando manejo industrial.
Para saciar o suíno-voyeurismo dos compradores, foram instaladas na granja câmeras que transmitem em tempo real a rotina dos rabicós. É um Pig Brother. Uma das câmeras fica posicionada sobre um contêiner cheio de feno, direcionada para o guapo porcalhão escolhido pelos internautas. A imagem, que lembra o estilo nervoso de Fassbinder em O Assado de Satã, permite acompanhar a criatura de rosto triangular e 44 dentes enquanto chafurda na terra com suas patinhas curtas, agita com alegria o rabicho, confabula gravemente com seus pares, emporcalha o focinho cartilaginoso na lama e em seguida balança sensualmente a cabeça à la Gisele Bündchen, como se estivesse num comercial de xampu.
Dennis Buchmann acompanha o álacre refocilar de casa, em Berlim, onde divide o seu tempo entre o emprego de redator numa agência de comunicação, a gestão do Meine kleine Farm a redação de biografias das cobaias do projeto. O abate do animal #1 (“Um porco ótimo, nunca reclamou de nada”) foi descrito nos seguintes termos: “Em seu último dia de vida, quando Bernd foi buscá-lo com o caminhão, #1 subiu sozinho na rampa, feliz da vida. Nem precisamos insistir. Outros porquinhos vieram atrás e fizeram igual, seguindo-o quase saltitantes.”
Naquela noite, #1 dormiu no celeiro de Schulz e fez um jejum de sete horas. No dia seguinte, a caminho do abatedouro, tolinho, não imaginava o destino infausto que o aguardava. Chegando lá, refestelou-se ingenuamente no chão e deixou que lhe dessem um prazeroso banho de mangueira. Comportado e sem grunhir, recebeu o chamado abate humanitário, no qual o ser para a morte suíno-heideggeriano é insensibilizado por eletronarcose. Anestesiado e inconsciente, foi suspenso por uma perna e – Zack! – degolado sem apelação. Quando sua morte foi anunciada na internet, logo em seguida, apareceu um comentário: “Nunca esqueceremos de ti, #1.”
Ao todo, #1 rendeu 123 quilos de carne, distribuídos em 250 vidros de embutidos e 320 salsichões de dar água na boca. Dennis Buchmann recolhe pessoalmente a mercadoria e leva de carro até sua casa, de onde comanda a logística de envio aos compradores. “Ainda tenho que limpar todos os vidros e colar as etiquetas. Faço tudo sozinho”, disse o estudante. Gierigsten, separa o filé e as costelas para si.
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