J. K. Rowling que se cuide
Chilena desdenha gigante editorial e não quer saber quanto vende
Ana Luiza Beraba | Edição 70, Julho 2012
Francisca Solar aguardava na fila a van para o hotel. A chilena de 29 anos estava em Bogotá para participar de uma feira literária. Falaria no dia seguinte sobre livros transmídia. Fran, como prefere ser chamada, tem olhos verdes, pele sardenta e uma grande franja ruiva emoldurando o rosto miúdo. Questionada sobre o tema de sua palestra, respondeu com um sorriso tímido: “Parece que sou um exemplo de autopublicação.”
A modéstia e o aspecto frágil não são o que se espera de um fenômeno editorial que transcendeu as fronteiras do Chile. Fran atrai hordas de leitores nas sessões de autógrafo. Sai em revistas femininas e feministas. É garota-propaganda de celulares e iogurtes. Em Bogotá, explicou como está ajudando a criar um novo modelo de negócios que o mercado acompanha com interesse.
Em outubro de 2011, Fran lançou o romance El Hada de las Cadenas [A Fada das Correntes], uma história de mistério ambientada na Amazônia. É o segundo volume de uma pentalogia iniciada em 2006. O primeiro foi publicado por uma das maiores editoras do mundo e tornou Fran a mais jovem autora chilena a assinar um contrato internacional. No entanto, a escritora fez de tudo para rompê-lo pouco depois. A sequência, em vez de ser publicada sob a chancela de uma editora, traz apenas a marca do patrocinador. Foi o primeiro livro chileno lançado só em formato digital.
Foi por causa de uma grande decepção com seu maior herói que Fran Solar se tornou escritora. O ano era 2003 e ela estava prestes a completar 20 anos. Fã das aventuras de Harry Potter, aguardava ansiosamente o lançamento do quinto volume da saga escrita pela britânica J. K. Rowling, em que o bruxo começaria sua transição para a idade adulta. No dia do lançamento, ela se plantou na porta de uma livraria e disse ter sido a primeira a comprá-lo no Chile. Devorou as 704 páginas em dezesseis horas. Mas não gostou nada do que leu.
“Eu esperava que Rowling escrevesse um livro inteligente para dar conta da passagem da adolescência à idade adulta, e, no entanto, encontrei uma ficção infantil e infantilizada, com vilões estereotipados e sentimentos pouco complexos”, queixou-se, com a segurança de quem havia estudado minuciosamente a construção da narrativa e dos personagens.
A chilena decidiu então escrever ela mesma a continuação que julgava digna do bruxo de Hogwarts. Fez o que se chama de fan fiction ou simplesmente fanfic um relato feito em tom de homenagem e publicado de graça na internet, no qual o fã cria uma história usando o universo ficcional de seu ídolo. Em onze meses, escreveu 756 páginas divididas em 33 capítulos. Harry Potter y el Ocaso de los Altos Elfos foi publicado em julho de 2003. Foi baixado mais de 1 milhão de vezes e traduzido espontaneamente por fãs para o inglês e o italiano. Na Argentina, circulou o boato de que aquele era o texto oficial vazado antes da publicação, tamanha a verossimilhança da narrativa.
Fran aproveitou o sucesso para estabelecer com seus fãs uma relação oposta à cultivada por J. K. Rowling. Ela guarda evidente ressentimento da inacessibilidade da britânica, que pouco aparece em público, não responde a e-mails e não está disponível nas redes sociais. A chilena decidiu que responderia a cada carta, e-mail ou tuíte que recebesse. Escreveria com janelas de Facebook e Twitter abertas e levaria em conta os comentários dos leitores. “A visão arraigada na América Latina de um escritor semideus, afastado do mundo real, é obsoleta”, considerou.
O sucesso de fanfic valeu a Fran Solar um contrato com a gigante britânica Random House, sonho de muito autor consagrado. Lançado na Feira de Frankfurt de 2006, o romance policial fantástico La Septima M foi publicado em catorze países e traduzido para quatro idiomas. Vendeu 25 mil exemplares. Mas a jovem chilena estava insatisfeita com a distribuição do livro. Leitores de localidades remotas reclamavam que era impossível encontrá-lo, e as queixas feitas à editora não resolveram o problema.
Fran decidiu então interromper a publicação da trilogia em formato impresso. Abriu mão do pagamento que receberia pelo primeiro livro em troca de reaver seus direitos para os outros volumes, a fim de publicá-los como bem entendesse. Formada em jornalismo, ela trabalhava como blogueira no site da LG Chile e convenceu a empresa a apostar no seu lançamento comercial no mundo virtual.
Para contornar a desconfiança de seus conterrâneos com as compras pela internet, teve a ideia de imprimir cartões de papel vendidos em livrarias que tinham no verso um espaço para autógrafos e um código raspável, com o qual se baixava o romance.
A julgar pelo assédio nos encontros com leitores e nas redes sociais, El Hada de las Cadenas está vendendo como água. Questionada sobre quantas cópias já foram baixadas, Fran fechou os olhos e sorriu: “Não faço ideia.” Em seu contrato com as revendedoras digitais, ela incluiu uma cláusula determinando que só receberia a prestação de contas e o pagamento dos direitos autorais se atingisse um patamar de vendas “muito alto, impossível de se atingir”.
Fran disse que prefere não perder seu foco acompanhando os números de vendas. “A pressão dos exemplares vendidos é muito mais das editoras que do autor”, justificou a autora, que recebeu um valor não divulgado de patrocínio e vive do salário que recebe num canal chileno de televisão. “Mais vale o risco que corri ao apostar num conceito novo, ao fazer parte da transição de uma indústria e construir o futuro. O que me interessa é o feedback imediato dos meus leitores.”
Em Bogotá, após ser ovacionada pelo público que assistiu perplexo à sua palestra, a jovem autora foi cercada por algumas dezenas de pessoas que se acotovelavam por um autógrafo. Precavida, sacou da bolsa alguns cartões que trouxera e assinou até o último admirador.