Em São Cristóvão, Biel, Pará, Passarinho, João Bala e Putinha entraram no ônibus. Biel forçou a porta de trás e a segurou aberta para os outros passarem. A mulher com o filho no colo torceu a cara. O motorista ameaçou: "Tem blitz ali na frente." CRÉDITO DA ILUSTRAÇÃO: PEDRO FRANZ
Capitães da areia
Um dia quente dentro dos ônibus que ligam o subúrbio à Zona Sul carioca
Tiago Coelho | Edição 109, Outubro 2015
Odomingo, dia 20 de setembro de 2015, amanheceu nublado no Rio. Mas ao longo do dia a temperatura ia aumentar, era o que prometia o locutor de rádio no celular de um dos passageiros do ônibus 474 em sua parada final, no bairro do Jacaré, subúrbio carioca. A notícia desanimou o motorista da linha, um homem grisalho e sisudo, que contava para o despachante da empresa o sonho que tivera naquela noite: chovia forte na cidade, e o ônibus que ele conduzia estava vazio. Por volta das 10 horas, o céu na Zona Norte já estava limpo e claro. “Nem adianta reclamar, hoje vai dar praia”, garantiu o despachante.
À medida que a manhã avançava, os moradores do bairro, a maioria vinda das favelas do Jacarezinho e do Rato Molhado, formavam uma longa fila para embarcar no 474. Uma família grande – a mulher com o filho no colo, o marido, sobrinhos e agregados – carregava um isopor com cerveja, água e refrigerante, uma bola de futebol, bolsas com toalhas e biscoitos, um saco de pão de forma cheio de sanduíches. No burburinho incessante dos passageiros aparecia o descontentamento com uma notícia recente: a Prefeitura do Rio pretendia interromper o trajeto de linhas diretas entre a Zona Norte e a Zona Sul, obrigando os usuários a fazer baldeação no Centro. “Eles querem é ganhar dinheiro com isso”, palpitou um passageiro. “Claro que não, eles querem é que os favelados não cheguem à praia”, disse a mulher que abanava o filho com uma toalhinha. “Colocar ar-condicionado nos ônibus ninguém quer. Mas também, repara a bagunça que esses moleques fazem.”
No trajeto, passando pelos bairros do Jacaré, Riachuelo, Benfica e São Cristóvão, a cada parada uma leva de crianças e jovens, quase todos negros, embarcava do jeito que dava: pulando a roleta, pela porta de trás e até pelas janelas. Na rua Ana Neri, em São Cristóvão, um grupo de cinco meninos entrou no ônibus: Biel, Pará, Passarinho, João Bala e Putinha. Biel, que parecia ser o mais velho e era o mais articulado do grupo, forçou a porta de trás e a segurou aberta para que os outros entrassem. A mulher com o filho no colo torceu a cara. O motorista ameaçou: “Tem blitz ali na frente, é melhor parar com essa zona.”
Biel contava para os amigos a reação de sua mãe quando viu o filho pela televisão no teto de um ônibus, com o veículo em movimento. “A velha ficou doida. ‘Seu filho da puta, se você for pego de novo eu não vou mais ao Juizado te tirar de lá’.” Depois improvisou umas rimas batucando na lateral do ônibus: “O Biel é sagaz, ele é sinistro, se liga nesse papo que eu vou falar pra você, só vou em dezoito quilates e celular Moto G.”
Formando uma rodinha nos fundos do 474, os meninos contabilizavam os ganhos da véspera. Biel anunciou para os amigos que tinha conseguido um comprador que pagava 85 reais pelo grama do ouro. Passarinho dizia que roubar iPhone era “osso”. Eram todos bloqueados. Não conseguia tirar uma onda com nenhum dos quatro telefones que já tinha furtado.
Putinha, pelo tamanho diminuto, parecia ser o mais jovem. Tinha uma imensa cicatriz de queimadura que cobria a metade de seu tronco desnudo. Os mais velhos zombavam de suas conquistas, riam por ele não saber distinguir prata de latão. Pará trazia no braço tatuado a frase “Livrai-nos do mal. Amém”. Atarracado e de voz aguda, queria falar do arrastão de que tinha participado com outros garotos num supermercado da Zona Sul. “Peguei só biscoito do bom, peguei mesmo, roubar comida não é pecado.”
Na semana anterior, a Polícia Militar do Rio de Janeiro havia apreendido 24 menores no Centro da cidade e os levara para a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. A Justiça já havia proibido que os adolescentes fossem detidos sem provas de que estivessem cometendo algum delito.
O 474 chegou ao Centro, metade do trajeto. Alguns carros de polícia interrompiam o trânsito na avenida Rio Branco. Putinha se encolheu no banco. O ônibus parou no ponto e um garoto negro, de boné preto e o olho esquerdo leitoso, tentou subir pela janela, sem sucesso. O motorista deu partida, mas os meninos conseguiram forçar a abertura da porta de trás. “Vem, cracudo, corre!” O menino do olho esquerdo cego correu, saltou para dentro do veículo e sentou no banco de trás com os outros. Putinha pôs a cabeça para fora quando o ônibus passou veloz pelo trecho final da Rio Branco, parecia aliviado em ter escapado da dura da polícia.
Na praia do Flamengo, cada vez que o veículo passava rente a um ponto e havia alguém com um cordão no pescoço, os meninos gritavam: “Pega, Putinha, pega!” O motorista freou numa parada onde uma senhora gorducha, com uma corrente dourada, bem fininha, esperava por outro ônibus. Putinha esticou o braço curto para fora da janela, na direção da mulher, mas não chegou nem perto. Os meninos riram. “Porra, Putinha, só dá mole.” A família numerosa, que vinha desde o Jacaré, desceu na parada seguinte. Decidiram ficar na praia do Flamengo, onde o mar é mais “mansinho”.
A condução seguiu por Botafogo, passando por mais uma blitz, e por fim foi dar em Copacabana. Os garotos comemoraram: tinham escapado da dura pela segunda vez e estavam cada vez mais perto da praia. A alegria, porém, durou pouco.
Logo no início da Barata Ribeiro, em Copacabana, viam-se duplas de policiais em cada esquina. “Fodeu”, exclamou Passarinho. Putinha mais uma vez se encolheu no banco. Virei para trás e perguntei se ele tinha medo da polícia. “Claro, quando eles me pegam só dão cascudo na minha cabeça”, disse, apontando para o cocuruto de cabelos crespos. Diferentemente dos garotos mais velhos do grupo, nem eu, nem Putinha, nem o rapaz cego, que eles insistiam em chamar de “cracudo”, percebemos o grupo de policiais que tinha entrado no ônibus. Os outros meninos se dispersaram. Sentaram-se quietos, distantes uns dos outros. Os policiais caminhavam de um lado para o outro no corredor. Biel, Pará, João Bala e Passarinho olhavam pela janela displicentemente.
Um policial mulato, cuja tarja branca do uniforme dizia “Jacson B+”, encarou Putinha, que baixou os olhos. “Não tá roubando ninguém não, né?” Putinha fez que não. O policial se virou para o passageiro de boné preto e olho cego. “E você? Levanta a camisa.” O garoto ficou de pé, suspendeu a camisa e puxou do bolso da bermuda uma certidão de nascimento rota e dobrada. Entregou o documento ao policial, que já se aproximava de mim. “Você está com eles?” Não. “Tem identificação?” Enfiei a mão no bolso da calça e retirei tudo que havia nele: um cartão de crédito, 20 reais, uma carteira de estudante e um bloquinho de anotações da revista piauí. O policial pegou a carteira de estudante e o bloquinho. Examinou a foto, folheou as páginas – minha letra torta devido às sacudidelas do ônibus – e devolveu tudo. “Você faz o quê?” Sou repórter. “Muito prazer, policial militar”, disse ele, mal-humorado.
Depois desceram, ele e os colegas. “Achei que ia tomar porrada”, disse Putinha. Biel e os outros meninos voltavam para a traseira do ônibus, passando por mim com o olhar desconfiado. Biel sentou ao lado de Putinha e, num cochicho audível, disse: “Para de falar com esse cara. Não ouviu que ele é repórter?” “Quê que tem?”, perguntou o mais novo. “Repórter é igual polícia”, explicou Biel.
Dali a pouco passou pelo grupo um homem musculoso com uma corrente de ouro no pescoço. Biel mirou o cordão, mas Pará o preveniu: “Vai ficar de vacilação com o passageiro? Olha o tamanho do braço dele.” O homem desceu. Na altura da avenida Rainha Elizabeth, a molecada apertou a cigarra: “O Arpoador é que é a boa.” Desceram. O jovem do olho esquerdo cego dormia, só iria acordar no ponto final, no Jardim de Alah, onde a cobradora respirou fundo e agradeceu por aquela ser sua última viagem do dia. O motorista continuava irritado. “Eu ganho 2 130 reais e a empresa quer que eu seja motorista, cobrador e policial. Querem que eu impeça esses abusados de entrar no ônibus. Eu tô cansado já”, desabafou.
O ônibus voltou para o subúrbio, e pelo caminho eram raras as ruas arborizadas. Com o calor que fazia, cada condução que seguia em direção à Zona Sul passava lotada. A cobradora apontou um ônibus da linha 476. “Se aqui é puxado, experimenta pegar o 476 para ver o inferno que é.”
O476, vindo do Engenho Novo, descia a rua Dois de Maio abarrotado. Dezenas de jovens de bermuda e garotas de biquíni cantavam ao som do funk que saía de um celular: “Dia de semana é tenso pra tu vir com essas besteiras/Pega a visão, fim de semana é safadeza.” Em São Cristóvão, dois meninos que aparentavam ter uns 10 anos de idade embarcaram dando calote. Parecia que o grupo no ônibus já os conhecia. Um dos meninos, negro, bochechudo e comunicativo, apelidado de Chumbinho, carregava uma caixa de pastilhas Mentos de vários sabores. O outro, pardo, calado e com cabelos crespos, era o De Bobeira, com uma caixa com pastilhas de hortelã Garoto. Entraram e começaram a cantar, junto com os outros passageiros.
O coletivo seguia cheio, abafado, todo mundo suava. Uma mulher magra, de saia comprida e um coque preso no topo da cabeça, disse alto, para quem quisesse ouvir: “Só Jesus na causa desses garotos.” O 476 atravessava o túnel Rebouças em direção à Zona Sul quando uma garota de biquíni rosa fluorescente pediu uma caixinha de bala para Chumbinho, que em troca quis um beijo. “Se enxerga, moleque.”
Quando o ônibus saiu do viaduto Saint Hilaire, tomando o acesso à Lagoa Rodrigo de Freitas, deu pela frente com outra blitz policial. A essa altura, Chumbinho já comia a segunda caixa de Mentos. O motorista diminuiu a marcha ao passar pelos soldados. Um PM lançou um olhar ameaçador para os passageiros, e alguém se lembrou de abaixar o volume da música. Levantando o braço, o homem mandou o 476 parar. Pela janela, observou os adolescentes com um ar de desconfiança e superioridade. Depois fez um sinal para o carro prosseguir.
Chumbinho pegou uma bala sabor uva, segurou-a firme entre os dedos, apertou os olhos para ter boa pontaria e atirou a pastilha na direção do policial. O projétil passou rente à orelha do militar, que não se deu conta de nada. Na avenida Borges de Medeiros, o ônibus passou em frente à piscina privativa do Jockey Club Brasileiro. “Aí, De Bobeira, olha o piscinão. Vai dizer que você não queria dar um pulo ali?” De Bobeira ignorou a pergunta, interessado nos cavalos que se exercitavam no hipódromo.
O circular parou na avenida Afrânio de Melo Franco, e um grupo de passageiros jovens desceu. Eram mais de vinte, caminhando na direção da praia. No sentido contrário, um grupo de banhistas vinha correndo, segurando as bolsas junto ao corpo, praguejando contra “esses marginais”. Fugiam de um arrastão na areia. Em cada quarteirão da orla do Leblon e Ipanema havia policiais, patrulhas e até um ônibus da PM. Chumbinho relatava aos colegas uma “porradaria” que seus amigos haviam travado com os “playboys”. Cheio de superlativos, contou que bateu muito em um deles. “Tudo mentira, você foi o primeiro a correr quando rolou a confusão”, corrigiu De Bobeira.
Um helicóptero da PM sobrevoava a praia, voando baixo próximo à linha de encontro da areia com o mar. Reforços da Guarda Municipal chegavam a todo instante munidos de cassetete, enquanto policiais militares portavam armas de fogo. Os passageiros do 476 se dispersaram entre as praias lotadas do Leblon e de Ipanema, procurando um espaçozinho na faixa de areia. Quatro garotas estenderam suas cangas e toalhas coloridas perto do canal que liga o mar à Lagoa Rodrigo de Freitas. Tiraram das bolsas garrafas de água congelada. Esticando a vista sobre a massa de gente, Chumbinho olhou para o mar, entregou sua caixinha de balas para De Bobeira e correu para a água.
Na orla, o termômetro registrava 31 graus. A sensação térmica era muito mais alta.
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