ILUSTRAÇÃO: REBECCA MCMILLIAN
Poemas
Julia de Souza | Edição 110, Novembro 2015
MONGE
alguém me disse
queria viver quatrocentos anos
aos quatrocentos anos poderia
ser monge viver livre das rédeas
do desejo, fumar à janela
um único e suficiente cigarro
ver o mundo com clareza
sem o prisma da vontade
ir à padaria atrás de
pão e não da gaja de carnes
rijas ver só o que há de triste
na superabundância dizer
palavras desinvestidas da queda
querer apenas o que está
ao alcance de um braço abafar
enfim a urgência do monstro
inesgotável
(aos quatrocentos anos
as esporas já estariam
alinhadas com o vento.
aos quatrocentos anos tenho
a certeza disso não haverá
mais perdas nem resto de borra
no fundo das taças)
aos quatrocentos anos seria
um velho de pernas moucas
sentado de costas para as plantas
que crescem no descontrole
do jardim
VERÃO
talvez vocês consigam
atravessar esse verão
talvez possam matar sua sede
com jarras de cleriquot
enxergar vultos nas montanhas
saber o suficiente para falar sobre
o que falar à beira de uma piscina
onde uma abelha se afoga
no que resta de azul
esta é a cor dos meus sonhos
talvez vocês consigam
atravessar esse verão
mas poderão me perdoar
pelo meu fracasso?
DESGRAÇA
não amava mais os fatos
sabia entre outras coisas
que a segunda-feira é um dia impuro
e que há aviões que borrifam gotículas de água
na base das nuvens para fazer chover
mas não amava mais os fatos
nem os evidentes nem os pressentidos
esperava o dia em que algo causasse
novo espanto pois pouco efeito
tinha sobre ele o fato de que os corredores
frios das universidades podiam gerar
palavras tão belas como cadeiraço.
conhecia de cor certos fatos
os mais curiosos para as mesas
de bar e os jantares artísticos –
a controversa domesticação
dos chimpanzés e as aplicações sociais
e afetivas do efeito bumerangue
– o grande amor
aquele brinquedo
aquela arma.
mas não os amava
pas du tout e sem esse amor
a vida parecia um eterno preâmbulo
sem esse amor só lhe restava
a idiotia de ser um pouco
como um peixe
talvez houvesse
uma película
envolvendo os fatos
talvez houvesse uma película
invisível que o apartasse
da urgência retroativa dos fatos
era sempre pontual demais
e assim sujeito a desencontros
os fatos lhe chegavam sempre amornados
como se ao acontecerem sussurrassem
ya tu sabes
enquanto assim fosse
– e isso era certo –
nada de bom se passaria
sim, foi uma espécie de desgraça
essa de já não amar os fatos
faltava-lhe o que o ajudasse
a perceber a hierarquia dos fatos
uma trena uma bússola
um termômetro uma antena
uma forma qualquer
de mediação
e tão sem mãos e pernas
na abundância do mundo percebeu
com o sorriso frouxo dos retardatários
que o caos está mesmo muito próximo
da depuração total
SEGUNDA-FEIRA
segunda-feira acordamos
com a notícia: havia
uma bomba-relógio
amarrada a um poste
na avenida paulista
como de costume
eu não tinha escutado
as trovoadas à noite
como de costume
eu não tinha previsto
o ponto de ebulição
que as coisas atingem
na abertura da noite
eu não tinha percebido
como de costume
a bomba-relógio estava armada
a bomba-relógio era a ameaça
da noite engolir tudo o que veio
depois
os técnicos do esquadrão antibombas
desarmaram a bomba-relógio
a tempo de salvar a segunda-feira
mas você
você não queria ser salvo