Chernobil é uma catástrofe do tempo. Os radionuclídeos espalhados sobre nossa terra viverão 50, 100, 200 mil anos. Ou mais. Do ponto de vista da vida humana, são eternos. Está dentro da nossa capacidade reconhecer um sentido nesse horror? FOTO: ROBERT POLIDORI
Vozes de Chernobil
Relatos de quem sobreviveu ao maior desastre nuclear da história
Svetlana Aleksiévitch | Edição 114, Março 2016
Bielorrússia… Para o mundo,
somos uma terra incognita –
uma terra totalmente desconhecida.
Já Chernobil todos conhecem; no
entanto, relacionam o desastre apenas
à Ucrânia e à Rússia. Um dia ainda
deveríamos contar nossa história.
(Naródnaia Gazeta, 27/4/1996)
NOTA HISTÓRICA [1]
No dia 26 de abril de 1986, à 1h23min58, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Nuclear de Chernobil, na Ucrânia, bem próximo à fronteira da Bielorrússia. A catástrofe de Chernobil se converteu no mais grave desastre tecnológico do século XX.
Para a pequena Bielorrússia (com uma população de quase 10 milhões de habitantes), o acidente representou uma desgraça nacional, levando-se em conta que no país não havia nenhuma central nuclear. Tratava-se de um país agrário com predomínio de populações rurais. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas destruíram 619 aldeias e, com elas, a população local. Depois de Chernobil, o país perdeu 485 aldeias, das quais setenta estão sepultadas para sempre. Na guerra, morreu um para cada quatro bielorrussos; hoje, um em cada cinco vive em território contaminado. São 2,1 milhões de pessoas, das quais 700 mil são crianças. Dentre os fatores de descenso demográfico, a radiação ocupa praticamente o primeiro lugar. Nas regiões de Gómel e Moguilev (as mais afetadas pelo acidente), a mortalidade superou a natalidade em 20%.
As explosões lançaram na atmosfera 50 milhões de curies de radionuclídeos, dos quais 70% caíram sobre a Bielorrússia: 23% de seu território está contaminado por radionuclídeos de césio-137, com uma densidade de mais de 1 curie por quilômetro quadrado. Para fins de comparação: a Ucrânia teve 4,8% de seu território contaminado; a Rússia, 0,5%. A superfície de terras cultiváveis com concentração radioativa de 1 curie por quilômetro quadrado ou mais representa 1,8 milhão de hectares; cerca de meio milhão de hectares foi contaminado com estrôncio-90, com uma concentração de 0,3 curie por quilômetro quadrado. Foram perdidos para a produção agrícola 264 mil hectares de terra. A Bielorrússia é um país de florestas, mas 205 delas, e mais da metade dos prados no leito dos rios Prípiat, Dniepr e Soj, se encontram nas zonas de contaminação radioativa.
Em consequência da permanente ação de pequenas doses de radiação, a cada ano cresce no país o número de doentes de câncer, de deficientes mentais, de pessoas com disfunções neuropsicológicas e com mutações genéticas.
De acordo com observações diversas, em 29 de abril de 1986 foram registrados altos níveis de radiação na Polônia, Alemanha, Áustria e Romênia; em 30 de abril, na Suíça e no norte da Itália; nos dias 1o e 2 de maio, na França, na Bélgica, nos Países Baixos, na Grã-Bretanha e no norte da Grécia; em 3 de maio, em Israel, no Kuwait e na Turquia.
Projetadas a grandes alturas, as substâncias gasosas e voláteis se dispersaram pelo globo: em 2 de maio foram registradas no Japão; no dia 4, na China; no dia 5, na Índia; e em 5 e 6 de maio, nos Estados Unidos e no Canadá.
Em menos de uma semana, Chernobil se tornou um problema para o mundo inteiro.
O quarto reator, chamado Abrigo, continua guardando em suas entranhas de chumbo e concreto armado cerca de 200 toneladas de material nuclear. Entretanto, parte do combustível se misturou ao grafite e ao concreto – o que ocorre com esse material hoje, ninguém sabe.
O sarcófago foi edificado às pressas. Construção única no gênero, os engenheiros de São Petersburgo responsáveis por ela certamente ficaram orgulhosos. A instalação deveria se manter em funcionamento por trinta anos. No entanto, como foi montada “à distância”, as pranchas tendo sido unidas com o auxílio de robôs e helicópteros, dez anos depois começou a apresentar fendas. De acordo com alguns dados, a superfície total de trechos defeituosos e com fissuras ultrapassava 200 metros quadrados, por onde continuavam a escapar aerossóis radioativos. Se o vento soprasse do norte, a atividade radioativa era detectada no sul: urânio, plutônio, césio. Em dias ensolarados, na sala do reator era possível vislumbrar, com a luz apagada, feixes de luz que caíam do teto. O que era aquilo? A chuva também penetrava no reator – caso a umidade atingisse as massas que continham combustível, tornava-se possível uma reação em cadeia.
Uma década depois, o sarcófago era um defunto que respirava. Respirava morte. Quanto tempo se sustentaria? Ninguém soube responder, era impossível se aproximar de muitos de seus blocos e construções para estabelecer o grau de segurança. Porém, todos compreendiam então que a destruição do Abrigo traria consequências ainda mais terríveis que aquelas de 1986.
Antes de Chernobil, havia 82 casos de doenças oncológicas para cada 100 mil habitantes. Hoje a estatística registra 6 mil doentes para os mesmos 100 mil habitantes. Os casos multiplicaram-se quase 74 vezes.
A mortalidade nos últimos dez anos cresceu em 23,5%. Por velhice, morre apenas uma pessoa em catorze; a grande maioria dos óbitos ocorre entre adultos de 46 a 50 anos, idade perfeitamente apta ao trabalho. Nas regiões mais contaminadas, os médicos constataram que, de cada dez pessoas, sete estão doentes. Quando se visita a zona rural, não há como não se assustar com a extensão dos cemitérios.
Até hoje muitas cifras não foram reveladas. São mantidas em segredo, de tão monstruosas que são. A União Soviética enviou para o local da catástrofe 800 mil soldados, recrutados em serviço de urgência, boa parte dos quais constituída de “liquidadores”, os encarregados de lidar com os efeitos imediatos do desastre. A média de idade dos liquidadores era de 33 anos; quanto aos demais, eram rapazes recém-saídos da escola.
Só na lista da Bielorrússia contam-se 115 493 liquidadores, dos quais 8 553 morreram entre 1990 e 2003, segundo dados do Ministério da Saúde. Quase duas pessoas por dia.
Assim começa a história: no ano de 1986, as primeiras páginas dos jornais soviéticos e estrangeiros estampavam reportagens sobre o julgamento dos acusados pelo desastre de Chernobil.
Imagine um prédio de cinco andares, vazio. Sem nenhum morador, mas cheio de objetos, mobílias e roupas – coisas que nunca mais alguém poderá usar, porque esse edifício fica em Chernobil. Pois é justamente numa dessas casas da cidade morta que se realiza uma pequena conferência para a imprensa, convocada pelos encarregados de levar a cabo o julgamento dos acusados pelo acidente nuclear. Nas instâncias mais altas do poder, no Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, o PCUS, deliberaram que as causas do delito deveriam ser examinadas in loco. Na cidade de Chernobil. O tribunal ocupou o prédio da Casa da Cultura local. No banco dos réus, seis pessoas: o diretor da central nuclear, Viktor Briukhánov; o engenheiro-chefe, Nikolai Fomin; o substituto do engenheiro-chefe, Anatoli Diátlov; o chefe do turno, Boris Rogójkin; o chefe da seção do reator, Aleksándr Kovaliênko; e o inspetor do Serviço Estatal de Inspeção de Energia Nuclear da União Soviética, Iuri Lauchkin.
Os assentos destinados ao público estavam praticamente vazios, ocupados por apenas um ou outro jornalista. Aliás, já não vivia mais ninguém por lá, a cidade estava “fechada” por ser “zona de controle radioativo severo”. Não teria sido esse o critério para a escolha da sede do julgamento? Quanto menos testemunhas, menor o barulho. Não havia operadores de câmera nem jornalistas estrangeiros. Decerto todos gostariam de ver no banco dos réus as dezenas de funcionários de Moscou igualmente responsáveis. E todo o estamento científico, à época do acidente, deveria ter sido obrigado a assumir suas responsabilidades. Mas se conformaram com os “guarda-chaves”.
Saiu a sentença: Viktor Briukhánov, Nikolai Fomin e Anatoli Diátlov receberam pena de dez anos. Para os demais, as penas foram menores. No final, Anatoli Diátlov e Iuri Lauchkin morreram em consequência da exposição às fortes radiações. O engenheiro-chefe Nikolai Fomin enlouqueceu. Já o diretor da central nuclear, Viktor Briukhánov, cumpriu toda a sentença, os dez anos, ao fim dos quais seus familiares e alguns jornalistas foram recebê-lo. O acontecimento passou em brancas nuvens. O ex-diretor vive atualmente em Kiev e trabalha como escrevente em uma empresa.
Assim termina a história.
Em breve a Ucrânia empreenderá uma obra de grande envergadura. Sobre o sarcófago que em 1986 cobriu o quarto bloco destruído da Central Elétrica Nuclear de Chernobil, será edificada a Arca, um abrigo patrocinado por 28 países, cujos investimentos iniciais ultrapassam 768 milhões de dólares. Uma construção feita para durar cem anos, não trinta. Gigantesca, para sepultar todos os resíduos. Serão necessárias fundações colossais, prevendo-se a produção de solo rochoso artificial constituído de colunas e lajes de concreto armado. Em seguida, há que se preparar o depósito para onde serão trasladados os resíduos radioativos a serem exumados do velho sarcófago. O novo abrigo será erguido em aço de alta qualidade, capaz de resistir às radiações gama. Só de metal, calculam-se 18 mil toneladas.
A Arca será uma instalação sem precedentes na história da humanidade. De proporções grandiosas – o invólucro duplo alcançará 150 metros de altura –, seu aspecto externo será semelhante à Torre Eiffel.
LIUDMILA IGNÁTIENKO, MULHER DO BOMBEIRO VASSÍLI IGNÁTIENKO
Não sei do que falar… Da morte ou do amor? Ou é a mesma coisa? Do quê?
Estávamos casados havia pouco tempo. Ainda andávamos na rua de mãos dadas, mesmo quando entrávamos nas lojas. Sempre juntos. Eu dizia a ele: “Eu te amo.” Mas ainda não sabia o quanto o amava. Nem imaginava. Vivíamos numa residência da unidade dos bombeiros, onde ele servia. No 2º andar. Ali também moravam três jovens famílias, que compartilhavam a cozinha. Embaixo, no 1º andar, ficavam os carros, os carros vermelhos do corpo de bombeiros. Era esse o trabalho dele. Eu sempre sabia onde ele estava e o que se passava com ele. No meio da noite, ouvi um barulho. Gritos. Olhei à janela. Ele me viu: “Feche a persiana e vá se deitar. Há um incêndio na central. Volto logo.”
A explosão, propriamente, eu não vi. Apenas as chamas, que iluminavam tudo, o céu inteiro… Chamas altíssimas, muita fuligem. O calor era terrível. E ele não voltava. A fuligem se devia ao betume queimado, o telhado da central era coberto de asfalto. As pessoas andavam sobre o telhado como se fosse resina, como depois ele me contou. Os colegas apagavam as chamas, enquanto ele rastejava e subia até o reator. Eles chutavam o grafite ardente… Foram para lá sem o equipamento de lona, com as camisas que estavam usando. Não os preveniram, soltaram o aviso de um incêndio comum.
Quatro horas… Cinco… Seis… Nós tínhamos combinado de ir à casa dos pais dele às seis, para plantar batatas. Da cidade de Prípiat até a aldeia Sperijie, onde eles viviam, eram 40 quilômetros. Nós íamos lá semear, arar. Era o que meu marido mais gostava de fazer… A mãe dele frequentemente se lembra de que ela e o pai não queriam deixá-lo ir para a cidade, chegaram a construir uma casa nova. Mas ele foi convocado pelo Exército. Serviu em Moscou nas tropas dos bombeiros e quando voltou só queria ser bombeiro. Nada mais. (Silêncio)
Às vezes parece que escuto sua voz. Que ele está vivo… Nem as fotografias me tocam tanto quanto a voz dele. Mas ele nunca me chama. Nem em sonhos… Sou eu que chamo meu marido.
Sete horas… Às sete me avisaram que ele estava no hospital. Corri até lá, mas havia um cordão de policiais em torno do prédio, ninguém passava. As ambulâncias chegavam e partiam. Os policiais gritavam: “Os carros estão com radiação, não se aproximem.” Eu não era a única, todas as mulheres cujos maridos estavam na central essa noite vieram correndo, todas. Quando vi saltar de um carro uma conhecida que trabalhava como médica naquele hospital, corri e a segurei pelo jaleco: “Me deixe entrar!” “Não posso! Ele está mal. Todos estão mal.”
Agarrei-a com força: “Só quero ver o meu marido.” “Está bem”, ela disse. “Vamos. Mas só por quinze, vinte minutos.”
Eu o avistei. Estava todo inchado, inflamado. Quase não se viam seus olhos.
“Ele precisa de leite. Muito leite!”, ela disse. “Eles devem beber ao menos 3 litros.” “Mas ele não toma leite.” “Agora vai ter que tomar.”
Muitos médicos, enfermeiras e, sobretudo, as auxiliares desse hospital, depois de algum tempo, começaram a adoecer. Mais tarde morreriam. Mas na época ninguém sabia disso.
Às dez da manhã morreu o técnico Chichenok. Foi o primeiro. No primeiro dia. Logo soubemos de outro que tinha ficado sob os escombros, Valera Khodemtchuk. Não conseguiram retirá-lo, foi emparedado com concreto. Mas ainda não sabíamos que esses seriam apenas os primeiros.
Perguntei ao meu marido: “Vássienka, o que é que eu faço?”
“Vá embora daqui! Vá embora! Você vai ter um filho.”
Eu estava grávida. Mas como deixá-lo? Ele suplicava: “Vá embora! Salve a criança!” “Primeiro vou te trazer leite, depois decidimos.”
Então chegou minha amiga Tania Kibenok. O marido dela estava na mesma enfermaria. Tania tinha vindo de carro com o pai e zarpamos para a aldeia mais próxima, que ficava a uns 3 quilômetros da cidade. Compramos vários galões de leite, de 3 litros cada. Uns seis, para dar para todo mundo. Mas o leite provocava vômitos terríveis e eles perdiam os sentidos, e por isso recebiam soro. Por algum motivo os médicos nos diziam que eles tinham se envenenado com gases, ninguém falava em radiação.
Nesse meio-tempo, a cidade ficou coalhada de veículos militares, todas as estradas foram fechadas. Havia soldados por tudo que é canto. Os trens regionais e expressos pararam de circular. As calçadas eram lavadas com uma espécie de pó branco. Fiquei assustada: como iria à aldeia comprar leite fresco no dia seguinte? Ninguém falava em radiação, só os militares circulavam com máscaras. As pessoas compravam seus pães e doces. A vida cotidiana prosseguia. Só que… as calçadas eram lavadas com uma espécie de pó branco.
À noite, já não me deixaram entrar no hospital. Havia um mar de gente ao redor. Fiquei em pé debaixo da janela da enfermaria; Vassíli se aproximou e gritou alguma coisa para mim. Parecia desesperado! Alguém na multidão entendeu o que ele disse: seriam levados para Moscou naquela noite. Nós, suas mulheres, nos reunimos e decidimos que iríamos com eles. “Que nos deixem ir com nossos maridos! Vocês não têm o direito!” Lutamos, nos atracamos com os soldados, que já haviam formado um cordão duplo e nos empurravam. Foi então que um médico surgiu e confirmou que os doentes seriam levados a Moscou de avião, e que precisávamos arrumar roupas para eles, pois as que usaram na central haviam sido queimadas. Os ônibus já não circulavam, então atravessamos a cidade correndo. Quando finalmente voltamos com as sacolas, o avião já tinha partido. Eles nos enganaram de propósito. Para evitar que gritássemos, que chorássemos.
Chegou a noite. De um lado da rua havia muitos ônibus, centenas de ônibus (já preparavam a cidade para a evacuação), e do outro lado, centenas de carros de bombeiros, vindos de toda parte. A rua inteira estava coberta por uma espuma branca, e nós caminhávamos por ela… Gritando e praguejando…
Pelo rádio, éramos advertidos da necessidade de evacuar a cidade por três a cinco dias, que levássemos conosco agasalhos e roupas esportivas, que iríamos viver nos bosques. Em barracas. As pessoas chegaram a se alegrar: “Vamos para o campo! Vamos comemorar o feriado de Primeiro de Maio no campo.” Era um acontecimento inédito. Prepararam carne assada, compraram vinho. Levaram violões, toca-fitas. Adoráveis festas de maio. Só as mulheres que tiveram seus maridos vitimados choravam.
Não me lembro da viagem. Só despertei quando vi a mãe dele: “Vássia está em Moscou! Foi levado num voo especial!”
Terminamos de semear a horta: batatas, repolho (e daí a uma semana a aldeia seria evacuada!). Quem poderia saber? Quem poderia então saber? À noite, tive uma crise de vômito. Estava no sexto mês de gravidez, me sentia tão mal… Durante a madrugada, sonhei que ele me chamava, ainda estava vivo, me chamava em sonho: “Liúcia! Liúcienka!” Mas depois que morreu não me chamou nem uma vez. Nem uma vez… (Chora) Levantei cedo com a ideia de ir sozinha a Moscou. “Aonde você vai desse jeito?”, a mãe dele chorava. Encontramos meu pai no caminho: “Eu acompanho você.” E tirou de uma poupança o dinheiro que possuía, todo o dinheiro.
Não me recordo da viagem, nem lembro que caminho fizemos… Em Moscou, perguntamos ao primeiro policial que encontramos para que hospital tinham sido transferidos os bombeiros de Chernobil, e ele nos respondeu. Eu até me surpreendi, porque nos haviam assustado: seria um segredo de Estado, totalmente secreto.
“Para a clínica número seis, na Schúkinskaia.”
Nesse hospital, que era uma clínica especial de radiologia, não se entrava sem autorização. Ofereci dinheiro ao vigia, que me disse: “Entre.” Disse também a que andar eu deveria me dirigir. Não sei a quem mais tive que suplicar, implorar… mas, por fim, cheguei ao gabinete da chefe de seção de radiologia, Angelina Vassílievna Guskova. Até então eu ainda não sabia como ela se chamava, não conseguia pensar em nada. A única coisa que sabia é que precisava ver, encontrar meu marido…
Ela imediatamente me perguntou: “Querida! Coitadinha… Você tem filhos?”
Como dizer a verdade? Era evidente que eu devia esconder a gravidez, ou não me deixariam vê-lo! Ainda bem que eu era muito magra e não se notava nada.
“Tenho”, respondi.
“Quantos?”
Pensei: é melhor dizer dois. Se disser um, talvez não passe. “Um menino e uma menina.”
“Se são dois, então creio que não terá mais. Agora escute: o sistema central nervoso foi completamente atingido, a medula está totalmente afetada.” Bem, pensei, ele deve estar mais nervoso.
“Mais uma coisa: se chorar, eu tiro você de lá imediatamente. É proibido abraçar e beijar. Não se aproxime muito. Você tem meia hora.” Mas eu sabia que não iria embora dali. Só sairia com ele. Eu havia jurado a mim mesma!
Entrei. Os rapazes estavam sentados na cama, jogando cartas e rindo.
“Vássia”, gritei.
“Ô, meu pai, estou perdido! Até aqui ela me encontra!”
Ele estava engraçado – vestia um pijama 48, e seu número era 52. As mangas da blusa e as pernas da calça estavam curtas. O inchaço do rosto havia regredido, e estavam lhe injetando alguma solução.
“Perdido por quê?”, perguntei.
Ele quis me abraçar.
“Fique aí sentado”, disse o médico, impedindo-o de se aproximar de mim. “Nada de abraços aqui.”
Não sei por quê, mas tomamos isso como uma brincadeira. E nesse momento todos se aproximaram de nós, vieram também de outros quartos. Eram todos nossa gente. De Prípiat. Ao todo, 28 pessoas foram trazidas de avião. “O que está acontecendo por lá? Como estão as coisas na nossa cidade?” Eu contei que a cidade estava começando a ser evacuada, que tinham levado as pessoas para fora da cidade por três ou cinco dias. Os rapazes ficaram em silêncio. Entre os pacientes, havia duas mulheres, uma que estava de guarda no dia do acidente, e que chorou: “Meu Deus! Meus filhos estão lá. O que será deles?”
Eu queria ficar a sós com meu marido, nem que fosse por uns minutinhos. Os rapazes perceberam isso, arrumaram pretextos e saíram para o corredor. Eu então o abracei e beijei. Ele se afastou: “Não fique perto de mim. Pegue uma cadeira.”
“Tudo isso é bobagem”, respondi, dando de ombros. “Você viu o local da explosão? O que aconteceu? Vocês foram os primeiros a chegar lá.” “É claro que foi sabotagem. Alguém fez de propósito. Todos os rapazes são dessa opinião.”
Então era isso que diziam. E eles acreditavam.
No dia seguinte, quando voltei, eles estavam alojados cada um num quarto, tinham sido separados. Haviam sido categoricamente proibidos de sair até o corredor. E de conversar entre eles. Mas eles se comunicavam por batidas na parede: ponto-traço, ponto-traço… Ponto… Os médicos justificaram o isolamento dizendo que cada organismo reage de maneira diferente às doses de radiação: o que um suporta, outro pode não suportar. No quarto em que eles estavam antes, até as paredes ficaram extremamente radioativas. À direita, à esquerda e no andar de baixo. Os outros pacientes foram removidos. Os que estavam abaixo e acima deles…
Passei três dias na casa de conhecidos em Moscou. Eles me diziam: pegue panelas, tigelas, tudo que precisar, não se acanhe. Assim é que eram essas pessoas… Assim é que eram! Eu fazia caldo de peru para seis pessoas. Seis dos nossos rapazes, os bombeiros. Do mesmo turno… Todos eles estavam de plantão naquela noite: Vaschuk, Kibenok, Titenok, Pravik, Tischura. Comprei sabonete, escova e pasta de dente para todos. Não havia nada disso no hospital. Comprei toalhas pequenas. Hoje fico impressionada com aqueles amigos que aceitaram me receber – eles evidentemente temiam o contágio, não tinha como ser diferente, já corria todo tipo de rumores, mas apesar disso estavam dispostos a me ajudar: “Pegue tudo o que for necessário. Pegue! Como está ele? Como estão todos? Eles vão viver?” Viver… (Silêncio)
Naqueles dias encontrei muitas pessoas solidárias, não me lembro de todas. E meu mundo se reduziu a um único ponto. Ele… Apenas ele… Lembro de uma auxiliar mais velha que começou a me preparar: “Algumas enfermidades não se curam. Sente ao lado dele e acaricie sua mão.”
De manhã cedo eu ia ao mercado e voltava para preparar o caldo dos rapazes. Tinha que passar as carnes e os legumes por uma peneira, e repartir em porções. Um deles me pediu: “Traga uma maçã.” Seis jarras com meio litro de caldo cada. Sempre seis! Ficava no hospital até anoitecer. E então voltava para o outro lado da cidade. Por quanto tempo eu resistiria? Depois de três dias me ofereceram acomodação no hotel destinado ao pessoal do hospital, na área do próprio hospital. Deus, que felicidade!
“Mas lá não tem cozinha. Como posso preparar as refeições deles?”
“Você não precisa preparar mais nada. O estômago deles parou de absorver alimentos.”
Meu marido começou a mudar, cada dia eu via nele uma pessoa diferente. As queimaduras saíam para fora. Na boca, na língua, nas maçãs do rosto. De início eram pequenas chagas, depois iam aumentando. As mucosas caíam em camadas, como películas brancas. A cor do rosto, a cor do corpo… Azulada… Avermelhada… Cinza-escuro… E, no entanto, tudo nele era tão meu, tão querido! É impossível falar disso! Impossível escrever! E mesmo sobreviver… O que salvava era que tudo acontecia num átimo, não dava tempo de pensar, não dava tempo de chorar.
Eu amava meu marido! Eu ainda não sabia como o amava! Tínhamos nos casado havia tão pouco tempo… Ainda não tínhamos tido tempo de nos saciar um com o outro. Andávamos na rua, ele me tomava nos braços e me girava. E me beijava, beijava. As pessoas passavam por nós e sorriam.
O processo clínico de uma doença aguda do tipo radioativo dura catorze dias. No 14o dia, o doente morre.
No primeiro dia que passei no hotel, os dosimetristas já mediram os meus níveis. Roupa, bolsa, porta-moedas, sapatos, tudo “ardia”. Recolheram tudo. Até a roupa de baixo. Só não tocaram no dinheiro. Recebi em troca uma bata de hospital tamanho 56, apesar de vestir 44; e sapatos 43, em vez dos meus 37. Disseram que talvez pudessem devolver a roupa, talvez não, porque dificilmente elas poderiam ficar “limpas”. Foi desse jeito que eu apareci para ele. Ele se assustou: “Minha nossa, o que houve com você?”
Mesmo assim, eu dava um jeito de preparar o caldo. Punha uma jarra de vidro no aparelho de ferver água e jogava uns pedacinhos de frango, bem pequenininhos. Depois alguém me emprestou uma panela, acho que foi a faxineira ou a auxiliar. Alguém conseguiu uma tábua de cortar verduras. Eu não podia ir ao mercado com a roupa do hospital, mas sempre tinha alguém que me trazia verduras. Era tudo em vão, ele já não conseguia engolir, nem mesmo um ovo cru. E eu sempre tentando arrumar alguma coisa apetitosa! Achava que isso poderia ajudar.
Um dia, fui até o correio: “Moça, eu preciso urgente ligar para os meus pais em Ivano-Frankovsk. O meu marido está morrendo.”
Por alguma razão, adivinharam do que se tratava e imediatamente fizeram a ligação. Meu pai, minha irmã e meu irmão voaram no mesmo dia para Moscou. Trouxeram dinheiro e minhas coisas.
Isso foi no dia 9 de maio… Ele sempre me dizia: “Você não imagina como Moscou é bonita! Principalmente no Dia da Vitória, com os fogos de artifício. Quero que você veja.”
Sentei perto dele, que abriu os olhos: “É dia ou noite?”
“Nove da noite.”
“Abra a janela! Os fogos vão começar!”
Eu abri a janela. Estávamos no 8º andar, toda a cidade ali diante de nós! Um buquê de luzes subiu ao céu. “Nossa, então é isso!”
“Eu prometi que iria te trazer a Moscou. Prometi que nos dias de festa te daria flores, por toda a vida…”
Olhei para ele e vi que pegava três cravos que estavam escondidos embaixo do travesseiro. Tinha dado dinheiro à enfermeira para comprá-los…
Aproximei-me e o beijei: “Meu amor! Minha vida!”
Ele protestou: “O que foi que o médico disse? Você não pode me abraçar! Não pode me beijar!”
Me proibiram de abraçar, de acariciar meu marido. Mas eu… Era eu que lhe dava apoio para se sentar na cama. Era eu que trocava os lençóis, tirava a temperatura, levava e trazia a comadre. Eu que o limpava.
Passava todas as noites ao lado dele. Vigiava cada um de seus movimentos, de seus suspiros. É verdade que do corredor, não no quarto… Um dia, senti minha cabeça girar e me agarrei ao peitoril da janela. Nesse momento passou um médico e me segurou. E de supetão me perguntou: “Você está grávida?”
“Não, não!”
Tinha tanto medo que nos tivessem ouvido.
“Não minta”, o médico disse, com um suspiro. Senti-me tão perdida que nem me ocorreu contestar.
No dia seguinte, fui chamada pela médica-chefe: “Por que você me enganou?”, ela perguntou, em tom severo.
“Eu não tinha saída. Se dissesse a verdade, me mandariam para casa. Foi uma mentira piedosa!”
“Você não percebe o que fez?”
“Sim, mas estou com ele…”
“Coitadinha! Coitadinha…”
Serei grata por toda a vida a Angelina Vassílievna Guskova. Toda a vida!
Outras mulheres também vieram, mas não permitiram que elas entrassem. Apenas as mães deles estavam comigo, eles deixavam as mães entrar. A mãe de Volódia Pravik não parava de rogar a Deus: “Leve a mim, Senhor!”
O professor norte-americano dr. Gale – o médico que fez a operação de transplante de medula em Vassíli – procurava me consolar: existe uma esperança, pequena, mas existe. Um organismo tão vigoroso, um rapaz tão forte! Chamaram a família do meu marido. Duas irmãs vieram da Bielorrússia e um irmão veio de Leningrado, onde cumpria serviço militar. A pequena Natacha, de 14 anos, chorava muito, estava assustada. Mas a medula dela era a melhor de todas. (Silêncio) Agora posso falar sobre isso. Antes não podia. Eu me calei por dez anos… Dez anos. (Silêncio)
Quando ele soube que a medula seria doada pela irmãzinha mais nova, recusou com veemência: “Prefiro morrer. Não toquem na Natacha, ela é pequena.”
A irmã mais velha, Liuda, tinha 28 anos, era enfermeira e sabia do que se tratava. “Façam o necessário para ele viver”, ela disse. Eu assisti à operação. Os dois estavam deitados lado a lado, em duas mesas. Havia uma grande janela no centro cirúrgico. A operação durou duas horas. Quando terminou, Liuda estava pior que ele, tinha dezoito perfurações no peito, saiu com dificuldade da anestesia. Ainda hoje continua doente, foi aposentada por invalidez. Era uma moça bonita e forte. Não se casou…
Eu corria de um quarto a outro, para ajudar os dois. Ele não ocupava o mesmo quarto de antes, estava atrás de uma cortina transparente, numa câmara hiperbárica especial onde era proibido entrar. Havia uns instrumentos próprios para aplicar as injeções e pôr os cateteres sem que fosse preciso atravessar a cortina. Tudo era feito com ventosas e tenazes que aprendi a manipular. Perto da cama havia uma cadeirinha.
Ele estava tão mal que eu não ousava sair dali nem por um minuto. Chamava por mim constantemente: “Liúcia, onde você está? Liúcenka!” Chamava, chamava sem parar.
Os rapazes que ocupavam as outras câmaras hiperbáricas eram cuidados por soldados, porque os auxiliares civis se recusaram a fazê-lo, exigiam roupas de proteção. Os soldados transportavam as comadres. Limpavam o chão, trocavam os lençóis, faziam toda a faxina. De onde surgiram aqueles soldados? Não perguntei. Para mim só havia ele. Ele… E todo dia eu ouvia: “Morreu, morreu…” “Morreu Tischura.” “Morreu Titenok.” “Morreu…” Isso ficava martelando na minha cabeça.
Ele evacuava 25, 30 vezes por dia. Com sangue e mucosidade. A pele das mãos e dos pés começava a rachar. O corpo ficou coberto de furúnculos. Quando ele virava a cabeça, caíam chumaços de cabelo sobre o travesseiro. E tudo isso era tão meu. Tão querido… Eu tentava fazer graça: “É mais cômodo. Assim, você não precisa mais de pente.”
Logo cortaram o cabelo de todos os rapazes. Eu mesma cortei o dele. Eu sempre queria fazer tudo por conta própria. Se aguentasse fisicamente, ficaria 24 horas a seu lado. Lamentava perder um minuto que fosse… não queria perder nem um minutinho… (Cobre o rosto com as mãos e silencia)
Meu irmão veio e se assustou: “Não vou te deixar voltar mais lá!”
E o meu pai disse a ele: “Essa aí, você não vai deixar? Ela é capaz de se esgueirar pela janela! Pela escada de incêndio!”
Um dia me ausentei. Ao voltar, vi uma laranja grande sobre a mesa. Não amarela, mas rosada. Ele sorriu: “Ganhei de presente. Pegue para você.”
A enfermeira me faz um sinal através da cortina para não comer. Uma vez que ficou algum tempo ao lado dele, não é que não se possa comer: até tocar é uma temeridade.
“Venha comer”, ele pediu. “Você adora laranja.”
Peguei a laranja. Nesse momento, ele fechou os olhos e adormeceu. Tomava injeções para dormir. Narcóticos. A enfermeira me olhava horrorizada… E eu? Eu estava decidida a fazer de tudo para que ele não pensasse na morte. Nem no que havia de terrível em sua doença, nem que eu sentia medo dele.
Um fragmento de conversa… Agora me veio à lembrança. Alguém tentava me convencer: “Você não deve esquecer que isso que está na sua frente não é mais seu marido, a pessoa que você ama, mas um elemento radioativo com alto poder de contaminação. Não seja suicida. Recupere a sensatez.”
Mas eu estava como louca: “Eu o amo! Eu o amo!”
Enquanto ele dormia, eu sussurrava: “Eu te amo!” Caminhava no pátio do hospital: “Eu te amo!” Levava a comadre: “Eu te amo!” Ficava me lembrando de como vivíamos antes, da nossa casa. Ele só dormia segurando minha mão. Tinha esse hábito, de pegar no sono segurando minha mão. A noite toda.
E no hospital, agora era eu que segurava a mão dele e não largava.
Certa noite, tudo estava silencioso. Estávamos sós. Ele olhou para mim longamente e de repente disse: “Como eu queria ver o nosso filho. Como será que ele vai ser?”
“E como vamos chamá-lo?”
“Bem, é você que vai decidir.”
“Por que eu, se nós somos dois?”
“Então, se for menino, pode ser Vássia, e se for menina, Natachka.”
“Por que Vássia? Eu já tenho um Vássia. Você! Não preciso de outro.”
Eu ainda não sabia como o amava! Ele… Só ele, Vássia… Estava cega! Eu nem sentia os golpezinhos embaixo do coração, embora já estivesse no sexto mês de gravidez. Pensava que a pequena dentro de mim estaria protegida, a minha filhinha. A minha pequena…
Nenhum médico sabia que à noite eu dormia com ele na câmara hiperbárica, nem passava pela cabeça deles. As enfermeiras consentiam. No início queriam me convencer: “Você é jovem. O que está inventando? Isso já não é um homem, é um reator nuclear. Os dois vão queimar.”
Mas eu corria atrás delas como um cachorrinho. Ficava uma hora de pé na frente da porta. Pedia, implorava. E finalmente elas me diziam: “Raios! Você não bate bem.”
Pela manhã, antes das oito, quando a ronda médica começava, elas me faziam sinais através da cortina: “Vai embora!” E eu corria para o hotel. E das nove da manhã às nove da noite eu tinha salvo-conduto. Minhas pernas ficaram azuladas até o joelho, inchadas de cansaço. Minha alma era mais forte que meu corpo. O meu amor…
Enquanto eu estava com ele, não faziam isso… Mas quando eu saía, eles o fotografavam. Sem roupa. Nu. Coberto apenas por um lençol fino. Eu trocava o lençol todo dia, mas à noite já estava todo ensanguentado. Quando eu o levantava, pedaços de pele grudavam nas minhas mãos. Eu suplicava: “Querido! Me ajude! Fique apoiado no braço, no cotovelo, o quanto puder, para que eu possa arrumar o lençol, puxar a costura, as dobras.” Qualquer costura feria sua pele. Cortei minhas unhas rentes até sangrar, para não machucá-lo. Nenhuma das enfermeiras tinha coragem de se aproximar dele, de tocá-lo. Se era preciso fazer algo, elas me chamavam. E eles… Eles fotografavam… Para a ciência, diziam. Queria poder expulsar todos de lá! Queria poder gritar! Como eles se atreviam? Se pudesse, não deixaria que eles entrassem. Se pudesse…
Saí do quarto me apoiando nas paredes. Tateei até uma poltrona, porque não enxergava nada. Parei em frente à enfermeira auxiliar e disse: “Ele está morrendo.” Ela respondeu: “E o que você esperava? Ele recebeu 1 600 roentgens, quando 400 já é a dose mortal.” Ela também sentia pena, mas de outra maneira. Para mim, ele era tudo o que eu tinha, o que eu mais amava.
Depois que todos morreram, o hospital foi reformado. Rasparam as paredes, arrancaram o assoalho, tudo que fosse de madeira.
Por fim, a última coisa. Lembro disso em fragmentos, tudo se desvanece…
À noite, sentei numa cadeira ao lado dele. Às oito da manhã, falei: “Vássienka, vou sair um instante. Vou descansar um pouquinho.” Ele abriu e fechou os olhos, e então me soltou. Assim que cheguei ao hotel, ao meu quarto, deitei no chão – era impossível deitar na cama, meu corpo todo doía –, mas logo uma enfermeira auxiliar bateu à porta: “Vá! Corra! Ele está te chamando feito um louco!”
Mas naquela manhã Tania Kibenok havia me suplicado: “Venha comigo ao cemitério. Sem você, eu não vou conseguir.” Naquela manhã estavam enterrando seu marido, Vítia Kibenok, e também Volódia Právik. Nós éramos muito amigos do casal, vivíamos como uma família. Um dia antes da explosão, tiramos uma foto de nós todos, no prédio dos bombeiros onde morávamos. Como eles estavam bonitos, os nossos maridos! E alegres! O último dia daquela nossa vida, antes de Chernobil… Como éramos felizes!
Ao voltar do cemitério, chamei logo a enfermeira: “Como ele está?”
“Morreu há quinze minutos.”
Como? Eu estive com ele a noite toda. Só me afastei por três horas! Então me apoiei à janela e gritei: “Por quê? Por quê?”
Olhei para o céu e gritei. Todos no hotel ouviram… Tinham medo de se aproximar de mim. Então, me recompus e pensei: É a última vez que o verei! Vou vê-lo! Desci a escada, tropeçando… Ele ainda estava na câmara hiperbárica, não o haviam levado. As últimas palavras dele foram: “Liúcia! Liúcienka!”
“Acaba de partir. Agora mesmo”, tentou me acalmar a enfermeira.
Ele suspirou e silenciou.
Eu não me afastei mais dele. Fui com ele até o túmulo, embora não me recorde do caixão, só de um saco de polietileno. Esse saco… Vestiram-lhe um traje de gala e puseram seu quepe sobre o peito. Não calçaram sapatos, pois os pés estavam inchados. Eram bombas em vez de pés. O traje de gala também foi cortado, não era possível esticá-lo, o corpo estava se desfazendo. Todo ele era uma chaga sanguinolenta.
No hospital, nos últimos dias, eu levantava a mão dele e os ossos se moviam, dançavam, se separavam da carne. Saíam pela boca pedacinhos do pulmão, do fígado. Ele se asfixiava com as próprias vísceras. Eu envolvia minha mão com gaze e a enfiava em sua boca para retirar tudo aquilo de dentro… É impossível contar isso! É impossível escrever sobre isso! E sobreviver… E tudo isso era tão querido… Tão meu… Nenhum número de sapato serviria… Puseram-no descalço no caixão.
Sob meus olhos, vestido de gala, meteram-no dentro de um saco plástico, que ataram. E esse saco foi posto no caixão de madeira. E o caixão também foi envolvido por outro saco. Um celofane transparente, mas grosso como uma lona. E puseram tudo isso num esquife de zinco, tiveram que forçar. O quepe ficou por cima.
Vieram todos. Os pais dele, os meus. Compraram lenços pretos em Moscou. Fomos recebidos por uma comissão extraordinária. Falavam a todos sempre a mesma coisa: “Não podemos entregar o corpo de seus maridos, de seus filhos, são muito radioativos, serão enterrados de uma maneira especial num cemitério de Moscou. Em esquife de zinco soldado, sob pranchas de concreto. E vocês devem assinar esse documento. É necessário o consentimento de vocês.” E se alguém, indignado, quisesse levar o caixão para casa, convenciam-no de que se tratava de heróis, diziam que já não pertenciam a suas famílias. Que eram personalidades. Pertenciam ao Estado.
Subimos para o ônibus funerário. Os familiares e alguns militares. Um coronel com um rádio. Pelo rádio se ouvia: “Esperem nossas ordens! Esperem!” Rodamos duas ou três horas por Moscou, seguimos por vias circulares. Voltamos a Moscou. Pelo rádio, diziam: “Não podem entrar no cemitério. Está rodeado de correspondentes estrangeiros. Esperem mais um pouco.” Os familiares estavam calados. Minha mãe estava com um lenço preto.
Sinto que vou perder a consciência. Tenho um ataque de histeria: “Por que estão escondendo meu marido? O que ele é? Um assassino? Um criminoso? Presidiário? Quem está sendo enterrado?” Minha mãe diz: “Calma, calma, filhinha.” Ela segura meu rosto e o acaricia.
O coronel informa pelo rádio: “Solicito permissão para me dirigir ao cemitério. A mulher está com ataque de histeria.”
No cemitério, fomos rodeados por soldados. Seguimos sob escolta. O esquife seguiu sob escolta. Não deixavam ninguém se despedir, apenas os familiares. Cobriram-no de terra rapidamente. “Rápido! Rápido!”, o oficial ordenava. Nem nos deixaram abraçar o caixão.
E tivemos que voltar correndo para o ônibus.
Compraram imediatamente as passagens de volta para casa. Já para o dia seguinte. O tempo todo fomos acompanhados por um homem em trajes civis, mas com porte militar, que não nos permitia sair do quarto nem comprar comida para a viagem. Temia que falássemos com alguém, sobretudo eu. Como se naquele momento eu pudesse falar! Nem chorar eu podia.
A funcionária do hotel, quando saímos, contou todas as toalhas e lençóis. Enfiou tudo num saco de polietileno. Com certeza os queimou. Nós pagamos pelo hotel. Por catorze dias.
O processo clínico das doenças radioativas dura catorze dias. Depois de catorze dias, as pessoas morrem.
Assim que cheguei em casa, adormeci profundamente. Entrei e desmoronei na cama. Dormi três dias, ninguém conseguia me acordar. Chamaram o pronto-socorro. O médico disse: “Não, ela não morreu. Ela vai acordar. É uma espécie de sono terrível.”
Eu tinha 23 anos.
Me lembro de um sonho… Minha avó que já morreu vinha me ver, com a mesma roupa que a enterramos. Ela está enfeitando um pinheiro. “Vovó, por que temos um pinheiro? Não é verão?” “Porque deve ser assim. O teu Vássienka logo estará aqui comigo.” E ele, que cresceu na floresta…
Em outro sonho, Vássia chegava de branco e chamava por Natacha. A nossa filhinha, que ainda não tinha nascido. No sonho ela já era grande e eu me perguntava, assombrada, quando é que ela havia crescido tanto. Ele a lançava para cima, no ar, e os dois riam… Eu olhava para eles e pensava que a felicidade é simplesmente isso. Simplesmente isso.
Tive mais um sonho: nós dois andávamos pela água. Andamos muito, muito tempo. Ele pedia que eu não chorasse. Dava sinais de lá… De cima. (Longo silêncio)
Depois de dois meses, voltei a Moscou. Da estação de trem para o cemitério, para vê-lo. E ali, no cemitério, vieram as contrações. Assim que comecei a falar com ele… Chamaram a ambulância. Eu lhes dei o endereço do hospital. Dei à luz ali mesmo, com a mesma médica, Angelina Vassílievna Guskova. Ela tinha me dito: “Venha fazer o parto conosco.” E para onde mais eu iria? Dei à luz duas semanas antes do prazo.
Me mostraram… uma menina…
“Natáchenka! Papai te chamou Natáchenka”, eu disse.
Pelo aspecto, parecia um bebê saudável. Bracinhos, perninhas… Mas tinha cirrose. Tinha 28 roentgens no fígado, e uma lesão congênita no coração. Depois de quatro horas, me disseram que ela tinha morrido. E me falaram de novo: “Nós não vamos te dar o corpo dela.” “Como não vão me dar o corpo?! Sou eu que não o darei a vocês! Vocês querem tomar minha filha para a ciência, pois eu odeio a ciência de vocês! Odeio! Ela já levou o meu marido e agora quer mais. Não darei! Eu mesma a enterrarei. Ao lado dele…” (Passa a falar em sussurros)
Não consigo dizer o que quero, não com palavras… Depois do ataque do coração, não posso gritar. E nem chorar. Mas eu quero… Quero que saibam… Ainda não confessei a ninguém… Quando me recusei a entregar minha filhinha, a nossa filhinha. Então trouxeram uma caixinha de madeira: “Aqui está ela.” Olhei: ela estava embrulhada, ela jazia envolta em panos. Então eu chorei.
“Que a ponham aos pés do meu marido. Digam que é a nossa Natáchenka.”
Ali, na tumba, não está escrito Natália Ignátienko. Há só o nome dele. Ela não teve nome, não teve nada, apenas alma… E foi ali que enterrei sua alma.
Sempre que venho ver os dois, trago dois buquês: um para ele, o outro eu ponho num cantinho, para ela. Me arrasto de joelhos pela sepultura, sempre de joelhos… (De maneira desconexa) Eu a matei… Fui eu… Ela… Ela me salvou… A minha filhinha me salvou. Recebeu todo o impacto radioativo, foi uma espécie de receptor desse impacto. Tão pequenininha. Uma bolinha. (Suspira) Ela me salvou. Mas eu amava os dois. Será… Será possível matar com o amor? Com um amor como esse?! Por que andam juntos, amor e morte? Estão sempre juntos. Alguém pode explicar? Alguém tentaria? Eu me arrasto de joelhos sobre a sepultura… (Longo silêncio)
Recebi um apartamento em Kiev. Num grande edifício onde hoje vivem os que foram evacuados da central nuclear. Todos eles são conhecidos meus. O apartamento é grande, com dois quartos, como Vássia e eu havíamos sonhado. Mas eu ficava louca lá! Em todo lugar, olhasse para onde olhasse, lá estava ele. Os seus olhos… Decidi reformar, qualquer coisa para não ficar parada, qualquer coisa para não pensar. E assim se passaram dois anos.
Certo dia, tive um sonho. Nós caminhávamos, mas ele estava descalço. “Por que você está sempre descalço?” “Porque não tenho nada.” Fui à igreja, o padre me disse: “Compre sapatos grandes e deposite sobre o túmulo de algum defunto. Escreva que é para ele.” Foi o que fiz. Fui a Moscou e imediatamente me dirigi a uma igreja. Em Moscou estava mais perto dele, porque ele está lá, no Cemitério Mítinski. Expliquei a um clérigo o que acontecia, que precisava fazer chegar os sapatos ao meu marido. Ele me perguntou: “E você sabe como deve fazer isso?” Então começou a me explicar… Justo nesse momento, trazem um defunto ancião para as orações. Eu me aproximo do caixão, levanto o véu e ponho os sapatos ali. “E o bilhete, você escreveu?” “Sim, escrevi, mas sem especificar o cemitério onde ele está enterrado.” “Lá, estão todos no mesmo mundo. Certamente o encontrarão.”
Eu já não tinha nenhum desejo de viver. Passava as noites à janela, olhando o céu: “Vássienka, o que eu faço? Eu não quero viver sem você.” De dia ia até o jardim de infância, parava, ficava ali. Observava as crianças por muito tempo. Estava enlouquecendo! E à noite dizia: “Vássia, vou ter um filho. Tenho medo de ficar sozinha. Não aguento mais. Vássienka!” E no outro dia: “Vássienka, não preciso de um homem. Não há ninguém melhor que você. Eu quero um filho.”
Eu tinha 25 anos…
Encontrei um homem. Contei tudo a ele. Toda a verdade: que tenho um só amor por toda a vida. Confessei tudo. Nós nos encontrávamos, mas eu nunca o levei a minha casa, em casa era impossível. Lá havia Vássia.
Eu trabalhava numa confeitaria. Fazia tortas e as lágrimas saltavam. Eu não chorava, as lágrimas é que saltavam. Só pedi uma coisa às outras moças: “Não tenham pena de mim. Se tentarem me consolar, vou embora.” Eu queria ser como todo mundo. Não queria consolo. Houve um tempo em que fui feliz.
Trouxeram a medalha de Vássia, vermelha. Eu não podia olhá-la por muito tempo, as lágrimas saltavam.
Tive um filho. Andrei… Andreika. As amigas me alertavam: “Você não deve ter filhos.” E os médicos se assustavam: “Seu organismo não vai suportar.” Depois… Depois, disseram que a criança nasceria sem mão. Sem a mão direita. Via-se pelo aparelho. “Bem, e daí?”, eu pensava. “Vou ensiná-lo a escrever com a mão esquerda.” Mas nasceu normal, um menino lindo. Já vai à escola e tira notas excelentes. Agora tenho alguém por quem respirar e viver. É a luz da minha vida. Ele compreende tudo perfeitamente: “Mamãe, se eu for à casa da vovó por dois dias, você conseguirá respirar?” Não consigo! Tenho medo de me separar dele por um dia.
Estávamos caminhando pela rua, e sinto que estou caindo… Foi quando tive o primeiro ataque, ali, na rua. “Mamãe, quer um pouco de água?” “Não, fique ao meu lado. Não vá a parte alguma.” E agarrei a mão dele. Depois disso, não me lembro de nada. Abri os olhos no hospital. Agarrei a mão dele com tanta força que os médicos tiveram dificuldades em soltar meus dedos. E a mão dele ficou azul por algum tempo. Agora, quando saímos de casa, ele me pede: “Mamãe, não me segure pela mão. Eu nunca vou me afastar de você.”
Ele também adoece: vai duas semanas à escola e passa duas em casa, com o médico. E vamos vivendo. Tememos um pelo outro. E em todos os cantos está Vássia. As fotografias dele… À noite, converso com ele sem parar. Às vezes, ele me pede em sonho: “Mostre-me o nosso filhinho.” E Andrei e eu vamos vê-lo. E ele traz nossa filhinha pela mão. Sempre com a pequena. Sempre brincando com ela.
Assim vou vivendo. Vivo simultaneamente num mundo real e irreal. Não sei onde me sinto melhor. (Levanta-se e se aproxima da janela)
Aqui nós somos muitos, ocupamos uma rua inteira. Chama-se “a rua de Chernobil”. Essa gente trabalhou a vida toda na central nuclear. Muitos até hoje vão ali trabalhar, fazer a guarda em turnos. Ninguém mais vive ali nem viverá, nunca mais. Muitos sofrem de enfermidades terríveis, são inválidos, mas não deixam a central, têm medo até de pensar que ela possa fechar. Não imaginam a vida sem o reator, o reator é a vida deles. E para que mais eles serviriam hoje?
Muitos vão morrendo. Morrem de repente. Caminhando. Estão andando e caem mortos. Adormecem e não acordam mais. O sujeito está levando flores para uma enfermeira e o coração para. Está no ponto de ônibus… Estão morrendo, e ninguém lhes perguntou de verdade sobre o que ocorreu. Sobre o que sofremos, o que vimos. As pessoas não querem ouvir falar da morte. Dos horrores…
Mas eu falei do amor… De como eu amei.
ENTREVISTA DA AUTORA CONSIGO MESMA SOBRE A HISTÓRIA OMITIDA E POR QUE CHERNOBIL DESAFIA NOSSA VISÃO DE MUNDO
Sou testemunha de Chernobil. O principal acontecimento do século XX, além das terríveis guerras e revoluções que já marcam essa época. Passaram-se vinte anos desde a catástrofe, mas até hoje a pergunta me persegue: eu sou testemunha do quê, do passado ou do futuro? É fácil deslizar para a banalidade. Para a banalidade do horror. Mas olho para Chernobil como quem olha para o início de uma nova história: Chernobil não significa apenas conhecimento, mas também pré-conhecimento, porque o homem pôs em discussão sua antiga concepção de si mesmo e do mundo. Quando falamos de passado e futuro, nessas palavras se insere nossa concepção de tempo, mas Chernobil é antes de tudo uma catástrofe do tempo. Os radionuclídeos espalhados sobre nossa terra viverão 50, 100, 200 mil anos. Ou mais. Do ponto de vista da vida humana, são eternos. Então, o que somos capazes de entender? Está dentro da nossa capacidade alcançar e reconhecer um sentido nesse horror que ainda desconhecemos?
Não escrevo sobre Chernobil, mas sobre o mundo de Chernobil. Sobre o evento propriamente, já foram impressos milhares de páginas e filmadas centenas de milhares de metros em película. Quanto a mim, eu me dedico ao que chamaria de história omitida, aos rastros imperceptíveis da nossa passagem pela Terra e pelo tempo. Escrevo os relatos dos sentimentos e pensamentos cotidianos, com palavras cotidianas. Tento captar a vida cotidiana da alma. A vida ordinária de pessoas comuns. Mas aqui nada é ordinário: nem as circunstâncias nem as pessoas, obrigadas a uma nova condição ao colonizarem esse novo espaço. Chernobil para elas não é uma metáfora ou um símbolo, mas a casa delas. Por mais que a arte tenha ensaiado o apocalipse, tenha experimentado diversas versões tecnológicas do fim do mundo, só agora temos a certeza de que a vida é mais fantástica ainda.
Um ano depois da catástrofe, alguém me disse: “Todos estão escrevendo. Mas você, que vive aqui, não escreve. Por quê?” Eu não sabia como escrever sobre isso, com que ferramentas, a partir de que perspectiva. Se antes, quando escrevia meus livros, observava o sofrimento dos outros, dessa vez éramos, minha vida e eu, parte do acontecimento. Fundiram-se numa só coisa, não havia distância. O nome do meu país, pequeno e perdido na Europa, quase nunca pronunciado no mundo, passou a ecoar em todas as línguas – meu país converteu-se no diabólico laboratório de Chernobil, e nós, bielorrussos, no povo de Chernobil. Onde quer que eu fosse, olhavam com curiosidade: “Ah, você é de lá? O que está acontecendo?”
É claro que eu poderia ter escrito um livro rapidamente, uma obra como as que logo começaram a sair, uma depois da outra: o que aconteceu naquela noite na central, quem é o culpado, como a avaria foi escondida do mundo e da própria população, quantas toneladas de areia e concreto foram necessárias para construir o sarcófago sobre o reator mortífero… Mas havia algo que me detinha. Alguma coisa me segurava. O quê? Uma sensação de mistério. Essa impressão que se instalou como um raio em nosso foro íntimo impregnava tudo, conversas, ações, temores, e seguia os passos dos acontecimentos. O acontecimento se assemelhava a um monstro. Em todos nós se instalou, explicitamente ou não, o sentimento de que havíamos alcançado o nunca visto.
Chernobil é um enigma que ainda tentamos decifrar. Um signo que não sabemos ler. Talvez um enigma para o século XXI. Um desafio para nosso tempo. É claro que além dos novos desafios religiosos, comunistas e nacionalistas em meio aos quais vivíamos e sobrevivíamos, a nossa frente nos esperam outros desafios, mais selvagens e totais, mas ainda ocultos a nossos olhos. No entanto, depois de Chernobil algo se deixou entrever.
Na noite de 26 de abril de 1986… Em apenas uma noite nos deslocamos para outro lugar da história. Demos um salto para uma realidade nova, uma realidade que está acima do nosso saber e da nossa imaginação. Rompeu-se o fio do tempo. O passado de súbito surgiu impotente, não havia nada nele em que pudéssemos nos apoiar – e no arquivo onipotente (assim acreditávamos) da humanidade, não se encontrou a chave que abria a porta. Mais de uma vez ouvi naqueles dias: “Não encontro palavras para expressar o que vi e vivi”, “Ninguém antes me contou nada parecido”, “Nunca li nada semelhante em livro algum, nem vi algo assim em filme algum.” Entre o momento em que aconteceu a catástrofe e aquele em que começaram a falar dela, houve um intervalo. Um momento de mudez. E todos se lembram dele.
Nas altas esferas, decisões eram tomadas, instruções secretas eram passadas, helicópteros subiam aos céus, enorme quantidade de carretas se movimentava; embaixo, esperavam-se ordens e temia-se, vivia-se de rumores, mas todos guardavam silêncio sobre o principal: o que de fato havia acontecido? Não encontravam palavras para novos sentimentos, e não encontravam sentimentos para novas palavras, ainda não ousavam se expressar. Aos poucos, porém, emergia uma nova maneira de pensar – é assim que hoje podemos definir aquele nosso estado. Os fatos já não bastavam, devia-se olhar além dos fatos, penetrar no significado do que acontecia. Estávamos sob o efeito da comoção. E eu buscava essa pessoa abalada. E ela pronunciava um texto novo. As vozes por vezes irrompiam como de um sonho ou de um pesadelo, de um mundo paralelo.
Em relação a Chernobil, todo mundo se punha a filosofar. Todos passaram a ser filósofos. As igrejas se encheram de crentes e de pessoas ainda há pouco ateias, que buscavam respostas impossíveis de serem obtidas da física e da matemática. O mundo tridimensional se abriu e eu já não encontrava aqueles valentões que haviam jurado sobre a bíblia do materialismo. Incendiou-se a chama da eternidade. Calaram-se os filósofos e os escritores, expulsos de seus canais habituais da cultura e da tradição. Naqueles primeiros dias, era mais interessante conversar com os velhos camponeses, não com cientistas, funcionários ou militares com muitas medalhas. Gente que vivia sem Tolstói e Dostoiévski, sem internet, mas cuja consciência de algum modo continha uma nova imagem de mundo. E ela não se destruiu.
Teria sido mais fácil nos acostumarmos à situação de uma guerra atômica como a de Hiroshima, pois sempre nos preparamos para ela. Mas a catástrofe aconteceu numa instalação nuclear não militar, e nós éramos pessoas do nosso tempo e acreditávamos, tal como nos haviam ensinado, que as centrais nucleares soviéticas eram as mais seguras do mundo, que poderiam ser construídas até mesmo na Praça Vermelha. O átomo militar era o de Hiroshima e Nagasaki; o átomo da paz era o da lâmpada elétrica de cada casa. Ninguém imaginava que ambos os átomos, o de uso militar e o de uso pacífico, fossem gêmeos. Que houvesse correspondência. Nós nos tornamos mais sábios, o mundo todo vem se tornando mais inteligente – mas depois de Chernobil. Hoje cada bielorrusso é uma espécie de “caixa-preta” viva, a registrar as informações para o futuro. Para todos.
Dediquei muito tempo a escrever este livro. Quase vinte anos. Me encontrei com ex-trabalhadores da central, cientistas, médicos, soldados, evacuados, residentes ilegais em zonas proibidas, e conversei com eles. Com aqueles para quem Chernobil representa o conteúdo fundamental do mundo, cujo interior e entorno, e não só a terra e a água, Chernobil envenenou. Essas pessoas conversavam, buscavam respostas. Nós pensávamos juntos. Eles frequentemente tinham pressa, temiam não chegar ao fim, eu ainda não sabia que o preço do testemunho deles era a vida. “Anote”, eles repetiam. “Nós não compreendemos tudo o que vimos, mas deixe assim. Alguém lerá e entenderá. Mais tarde. Depois de nós…” Tinham razão em ter pressa, muitos deles já não estão entre os vivos. Mas conseguiram mandar um sinal…
Tudo o que conhecemos sobre o horror e o medo tem mais a ver com a guerra. O gulag stalinista e Auschwitz são recentes aquisições do mal. A história sempre foi a história das guerras e dos líderes, e a guerra se tornou, como costumamos dizer, a medida do horror. Por isso as pessoas confundem os conceitos de guerra e catástrofe. Em Chernobil, pode-se dizer que estão presentes todos os sinais da guerra: muitos soldados, evacuação, locais abandonados. A destruição do curso da vida. As informações veiculadas estão coalhadas de termos bélicos: átomo, explosão, heróis… E isso dificulta o entendimento de que nos encontramos diante de uma história nova: teve início a história das catástrofes… Mas o homem não quer pensar nisso, porque nunca ninguém pensou nisso antes. Esconde-se atrás do que já é conhecido. Atrás do passado.
Até os monumentos aos heróis de Chernobil parecem militares.
Na minha primeira visita à zona proibida, os jardins floresciam, a relva brilhava alegremente à luz do sol. Os pássaros cantavam. Um mundo tão… tão familiar. Meu primeiro pensamento foi que tudo estava no lugar, tudo era como antes. A mesma terra, a mesma água, as mesmas árvores. As formas, as cores e os aromas eram eternos e ninguém seria capaz de modificá-los. Mas já no primeiro dia me explicaram que não se devem arrancar flores, que é melhor não se sentar na terra e tampouco beber da água dos mananciais. À tardinha, observei os pastores conduzindo ao rio o rebanho cansado; as vacas, ao se aproximarem da água, imediatamente retrocediam. De algum modo intuíam o perigo. E os gatos, me disseram, deixaram de comer os ratos mortos, que se amontoavam no campo e nos pátios. A morte se escondia por toda parte, mas se tratava de um tipo diferente de morte, com uma nova máscara. Com um disfarce desconhecido.
O homem se surpreendeu, não estava preparado para isso. Não estava preparado como espécie biológica, os sentidos já não serviam para nada – olhos, ouvidos e dedos já não serviam, não podiam servir, porque a radiação não se vê, não tem cheiro nem som. É incorpórea. Passamos a vida lutando e nos preparando para a guerra, tão bem a conhecíamos, e de repente isso! A imagem do inimigo se transformou. Surgiu diante de nós um outro inimigo… Inimigos. Tocavam a relva ceifada, o peixe pescado, a caça aprisionada. As maçãs… O mundo a nossa volta, antes maleável e amistoso, agora infundia pavor. As pessoas mais velhas, ao serem evacuadas e ainda sem perceber que isso seria para sempre, olhavam para o céu e diziam: “O sol está brilhando, não se veem fumaça nem gás. Não se escutam tiros. Como isso pode ser uma guerra? No entanto, agora somos refugiados.” O conhecido – desconhecido – mundo.
Como entender onde estamos? O que aconteceu? Aqui… Agora… Não há a quem perguntar.
Na zona e ao redor da zona, a quantidade de equipamentos militares era assombrosa. Soldados em formação marchando com suas armas novinhas em folha. Com todos os acessórios de combate. Não sei bem por quê, mas me lembro mais das armas que de tudo, e não dos helicópteros e dos blindados. Das armas… De pessoas armadas na zona. Em quem eles poderiam atirar? De quem iriam se defender? Da física? Das partículas invisíveis? Metralhar a terra contaminada ou as árvores? A KGB trabalhava na central. Procurava espiões e terroristas, corria o rumor de que o acidente fora resultado de uma ação planejada pelos serviços secretos ocidentais a fim de minar o bloco socialista. Era preciso se manter vigilante.
Esse cenário de guerra… Essa cultura da guerra ruiu aos meus olhos. Ingressamos num mundo opaco, onde o mal não dá explicações, não se revela e não conhece leis.
Eu vi como o homem pré-Chernobil se converteu no homem pós-Chernobil.
Mais de uma vez – e aqui há o que se pensar – escutei a opinião de que o comportamento dos bombeiros que apagaram o incêndio da primeira noite na central nuclear, assim como o dos liquidadores, assemelhava-se a um suicídio. Um suicídio coletivo. Em geral os liquidadores trabalharam sem roupas especiais de proteção, dirigiram-se sem protestar para o local, onde morreram os robôs – esconderam deles a verdade sobre as altas doses recebidas, e eles se resignaram a isso, e ainda se alegraram ao receber os diplomas e as medalhas que o governo lhes conferiu pouco antes de morrerem. Muitos nem chegaram a recebê-los. Então, o que são eles, heróis ou suicidas? Vítimas das ideias e da educação soviética? Por alguma razão, esquece-se, com o tempo, de que eles salvaram o país. Salvaram a Europa. Imagine por um segundo a cena, caso o incêndio tivesse se espalhado e os outros três reatores houvessem explodido…
Eles são heróis. Heróis de uma história nova. São comparados aos heróis das batalhas de Stalingrado ou de Waterloo, mas eles salvaram algo mais importante que a pátria, salvaram a própria vida. O tempo da vida. O tempo vivo. Com Chernobil, o homem levantou a mão contra tudo, atentou contra toda a criação divina, onde vivem, além do homem, milhares de outros seres vivos. Animais e plantas.
Quando fui vê-los, escutei os relatos sobre como eles (os primeiros e pela primeira vez!) levaram adiante a tarefa inédita, humana e desumana, de enterrar a terra com a terra, ou seja, de cobrir com terra as camadas contaminadas e seus habitantes – escaravelhos, aranhas, larvas –, confinando-as em bunkers de concreto especiais. Havia uma enorme diversidade de insetos, cujos nomes eles nem sabiam ou não conheciam. Esses homens tinham uma compreensão totalmente distinta da morte, que estendiam a todas as coisas, dos pássaros às borboletas; o mundo deles já era um outro mundo, um mundo com um novo direito à vida, uma nova responsabilidade e um novo sentimento de culpa. Em seus relatos frequentemente surge o tema do tempo, nas expressões “primeira vez”, “nunca mais”, “para sempre”. Lembram-se das aldeias desertas por que passaram, encontrando por vezes idosos solitários que haviam se recusado a partir com os outros, ou que haviam regressado mais tarde do exílio: homens que viviam à luz da lamparina, que ceifavam com a gadanha e a foice, que cortavam lenha com o machado, que dirigiam suas preces aos animais e aos espíritos. A Deus. Tudo como há 200 anos, enquanto naves espaciais sulcavam o céu.
O tempo mordeu o próprio rabo, o início e o fim se tocaram. Para aqueles que lá estiveram, Chernobil não terminava em Chernobil. Esses homens não regressaram de uma guerra, mais parece que voltaram de outro planeta. Compreendi que de maneira totalmente consciente aqueles homens convertiam seus sofrimentos em novo conhecimento. Ofereciam-no, dizendo: vocês haverão de fazer algo com isso, saberão como utilizá-lo.
Há um monumento aos heróis de Chernobil. É o sarcófago que construíram com as próprias mãos e no qual depositaram a chama nuclear. Uma pirâmide do século XX.
Na terra de Chernobil, sente-se pena do homem. Mas o bicho dá mais pena ainda. Não estou desdenhando, vou explicar… O que restou na zona morta depois que as pessoas foram embora? As velhas tumbas e as fossas biológicas, como se referem aos cemitérios de animais. O homem só salvou a pele, todo o resto ele atraiçoou. Depois que as populações partiram das aldeias, pelotões de soldados e caçadores foram lá e abateram os animais. E os cachorros acorriam à voz humana, e também os gatos… E os cavalos não podiam entender nada. E eles não tinham culpa, nem as bestas nem os pássaros, e morriam em silêncio, isso é ainda mais terrível. Houve um tempo em que os índios do México e mesmo as populações russas pré-cristãs pediam perdão aos animais e pássaros quando os sacrificavam para se alimentar. No Egito antigo, o animal tinha direito a se queixar do homem. Num dos papiros conservados nas pirâmides está escrito: “Não há nenhuma queixa do touro contra N.” Antes de partir para o reino dos mortos, os egípcios liam uma prece: “Não ofendi nenhum animal. E não o privei nem de grão nem de erva.”
O que a experiência de Chernobil nos deu? Terá nos conduzido a esse mundo secreto e silencioso dos “outros”?
Certa vez, vi como os soldados entraram numa aldeia já evacuada e começaram a atirar. Os gritos impotentes dos animais… Eles gritavam em suas línguas. Sobre isso já se escreveu no Novo Testamento. Jesus Cristo chegou ao Templo de Jerusalém e lá viu animais preparados para o ritual de sacrifício: com o pescoço cortado, esvaindo-se em sangue. Jesus gritou: “Haveis convertido a casa de orações em covil de bandidos.” Poderia ter acrescentado: “Em matadouro.” Para mim, as centenas de fossas biológicas abandonadas na zona são o mesmo que os túmulos funerários da Antiguidade. Mas dedicados a que deuses? Ao deus da ciência e do conhecimento ou ao deus do fogo? Nesse sentido, Chernobil foi mais longe que Auschwitz e Kolimá. Mais longe que o Holocausto. Chernobil nos propõe um ponto final. Não se apoia em nada.
Observo o mundo ao redor com outros olhos. Uma pequena formiga se arrasta pela terra, e ela agora me é próxima. Um pássaro voa no céu e também me é próximo. Entre mim e eles, o espaço se reduziu. Não há mais o abismo de antes. Tudo é vida.
Lembro também do que me contou um velho apicultor (e depois ouvi de outras pessoas): “Saí ao jardim pela manhã e notei que faltava algo, faltava o som familiar. Nem sequer uma abelha. Eu não ouvia nem uma abelha! Nem uma! O que é isso? O que está acontecendo? No segundo dia, elas não voaram. E também no terceiro. Depois nos informaram que ocorrera uma avaria na central nuclear, que era perto. Durante muito tempo não soubemos de nada. As abelhas sabiam, mas nós não. Agora, se noto algo estranho, vou observá-las. Nelas está a vida.”
Outro exemplo. Eu conversava com pescadores junto ao rio e eles me contaram: “Nós esperávamos que nos explicassem pela tevê, que dissessem como nos salvar. E as minhocas… Eram minhocas comuns, mas entravam para dentro da terra, desciam fundo, meio metro, talvez 1 metro. E nós não entendíamos. Nós cavávamos, cavávamos. Não conseguíamos nenhuma minhoca para pescar.”
Quem de nós é o primeiro, quem está mais sólida e eternamente ligado à terra, nós ou eles? Devíamos aprender com eles como sobreviver. E como viver.
Confluíram duas catástrofes: a social – a nossos olhos arruinou-se a União Soviética, submergiu sob as águas o gigantesco continente socialista – e a cósmica – Chernobil. Duas explosões globais. A primeira nos é mais próxima, mais compreensível. As pessoas estão preocupadas com o dia a dia, com o cotidiano: o que comprar, aonde ir? No que acreditar? Levantar-se novamente sob que bandeira? Ou será preciso aprender a viver para si, viver a vida de cada um? Já a outra nos é desconhecida, não sabemos o que fazer, porque ninguém nunca viveu assim. Isso é algo que experimentamos todos e cada um. Gostaríamos de esquecer Chernobil, porque diante dela nossa consciência capitula. É uma catástrofe da consciência. O mundo de nossas representações e valores explodiu. Se tivéssemos vencido Chernobil ou compreendido o fenômeno até o fim, pensaríamos e escreveríamos mais a respeito. E assim vivemos num mundo enquanto nossa consciência vive em outro. A realidade escapa, não cabe no homem.
Sim. Não há como alcançar a realidade.
Um exemplo. Até hoje usamos os termos antigos: “longe–perto”, “próprio–alheio.” Mas o que significa longe e perto depois de Chernobil, quando já no quarto dia suas nuvens sobrevoavam a África e a China? A terra parece tão pequena, não é mais aquela terra do tempo de Colombo. Infinita. Hoje possuímos outra sensação de espaço. Vivemos num espaço arruinado. E ainda… Nos últimos 100 anos, o homem passou a viver mais, mas seu prazo de vida continua a ser minúsculo e insignificante se comparado à vida dos radionuclídeos instalados em nossa terra. Muitos deles viverão mil anos. Impossível atingirmos tamanha dimensão! Diante disso, experimenta-se uma nova sensação de tempo. E tudo é Chernobil. As suas marcas. O mesmo ocorre em nossas relações com o passado, com a ficção científica, com o conhecimento. O passado se faz impotente – a única coisa que se salva em nosso conhecimento é saber que nada sabemos. Está acontecendo uma perestroika, uma reestruturação dos sentimentos.
Agora, em lugar das frases habituais de consolo, o médico diz à mulher sobre o marido moribundo: “Não se aproxime! Você não deve beijá-lo! Não deve acariciá-lo! Ele já não é a pessoa amada, mas um elemento que deve ser desativado.” Aqui, até Shakespeare emudece. E também Dante. Beijar ou não beijar, eis a questão. Aproximar-se ou não? Uma das minhas heroínas (grávida naquele momento) nunca deixou de se aproximar do marido e beijá-lo, e não o abandonou até sua morte. Por essa ousadia, ela pagou com sua saúde e com a vida de sua filha. Mas como escolher entre o amor e a morte? Entre o passado e o presente desconhecido? E quem poderá condenar as mulheres e mães que não ficaram ao lado de seus maridos e filhos? Ao lado de elementos radioativos? O amor se modificou. E também a morte.
Tudo se modificou, menos nós.
Para que um acontecimento se torne história, são necessários uns cinquenta anos. Mas nesse caso as marcas ainda estarão quentes.
A zona proibida é um mundo à parte. Outro mundo em meio ao restante da Terra. Primeiro foi inventada pelos escritores de ficção científica, mas a literatura cedeu o passo à realidade. Agora já não podemos mais crer, como os heróis de Tchékhov, que dentro de 100 anos o ser humano será maravilhoso. Que a vida será maravilhosa. Esse futuro nós já perdemos. Nesses 100 anos houve o gulag de Stálin, Auschwitz, Chernobil. O 11 de Setembro de Nova York. É incompreensível como se sucederam tantos fatos, como couberam na vida de uma geração, em suas proporções. Na vida do meu pai, por exemplo, que está com 83 anos. E o homem sobreviveu.
Destino é a vida de um homem, história é a vida de todos nós. Eu quero narrar a história de forma a não perder de vista o destino de nenhum homem.
Antes de tudo, em Chernobil se recorda a vida “depois de tudo”: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para lugar nenhum, cabos para parte alguma. Você se pergunta o que é isso: passado ou futuro?
Algumas vezes, parece que estou escrevendo o futuro.
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Trecho do livro Vozes de Chernobil a ser lançado pela Companhia das Letras em abril.
[1] Compilação de notícias publicadas em livros na década de 90 e na internet entre 2002 e 2005.
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