ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2016
Agente duplo
Um profissional de manifestações
Paula Scarpin | Edição 115, Abril 2016
No domingo, 13 de março, quando a avenida Paulista recebeu a maior concentração de pessoas de amarelo de que se tem notícia, Juvenal Pereira da Silva dividiu um dos palcos com membros do Movimento Brasil Livre e deputados de oposição. Ele também estava lá na sexta-feira seguinte, integrando o seleto grupo autorizado a subir no trio elétrico quando o ex-presidente Lula discursou para a mesma avenida, agora uniformizada de vermelho. Silva não perde tempo com coerência – e antes que o leitor procure seu nome nos quadros do PMDB, vem a explicação: ele é dono da Sol Nascente, “a primeira empresa a trazer a cultura dos trios elétricos para o Sudeste e o Sul do Brasil”.
No ramo há quase quarenta anos, o septuagenário não faz distinção ideológica entre os clientes. Tampouco se empenha em seguir o dress code da noite: vestiu a mesma camisa listrada de azul e amarelo, com o logo da empresa, nos dois eventos. Enquanto fazia os ajustes na mesa de som antes da chegada de Lula, disse, pragmático: “A gente é trabalhador, não tem partido.” Sua ética também exclui tietar clientes em praça cheia. Dessa vez, no entanto, nem passou vontade. Perguntado se gostava de Lula, Silva deu um sorriso malicioso e recorreu à música Vou Festejar, de Beth Carvalho. “Você pagou com traição…”, cantarolou.
Alguns dias mais tarde, em seu escritório em Perdizes, Silva contou que começou cedo no ramo da mecânica. Aos 9 anos, o baiano de Feira de Santana já consertava os primeiros carros, e aos 13 passou a trabalhar para a família de Martha Rocha, a Miss Brasil mais famosa de todos os tempos, a tal das 2 polegadas a mais. Isso até ser convocado para o Exército. O ano era justamente 1964, mas Silva garante que não sentiu muito os efeitos da “revolução” – “só uma ou outra cuspida na cara de algum esquerdista”.
Ao fim do serviço militar, o baiano se mudou para São Paulo, casou e teve três filhos. Adquiriu um imóvel em Perdizes e fez do quintal uma pequena oficina mecânica, onde passava os dias consertando carros da vizinhança ou trabalhando em alguma invenção. Falar de suas criações o entusiasma bem mais do que a política. Ele desapareceu por segundos e voltou com um objeto de menos de 3 centímetros na palma da mão, lembrando um carretel de linha: “É um amolador de tesouras e alicates de unha!”
Foi o ímpeto de inventor que o levou ao negócio de trios elétricos. Silva conta que no Carnaval de 1978 foi ver o desfile das escolas de samba paulistas na avenida Tiradentes – e voltou extremamente decepcionado. “Não era possível que a maior cidade do país tivesse aquele Carnaval sem graça”, disse. “Eu estava acostumado com o Carnaval de Salvador, que tem trio elétrico desde os anos 50, quando a fábrica de refrigerantes Fratelli Vita lançou a charanga de Dodô e Osmar.”
Mais tarde, naquele mesmo ano, o mecânico viajou de férias com a família para a Bahia – e ao ver uma carcaça de trio elétrico se lembrou do Carnaval paulistano, tão mixuruca. Trouxe-a para São Paulo e a reformou a tempo de lançá-la pelo bairro no Carnaval seguinte. Sucesso estrondoso. A demanda pelos serviços do carro de som ultrapassaria em muito o período de Carnaval.
Silva testou o veículo como estratégia de marketing para suas engenhocas: numa praça movimentada, botava uma música alta e estacionava. Lá em cima, os filhos demonstravam as benesses do produto. “Era uma dupla propaganda: do produto e do trio elétrico”, contou. As lojas gostaram da novidade e o serviço passou a engrossar a renda da oficina.
Juvenal Silva não parou de inventar. Quando a Nestlé o procurou para promover o caldo Maggi pelo interior do país, transformou um ônibus num misto de trio elétrico e trailer com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. No bagageiro, zilhões de amostras grátis e do famoso brinde da galinha de plástico que botava ovinhos, fetiche hipster em qualquer feira de antiguidades. A família viajava unida, muitas vezes dividindo o lar sobre rodas com artistas contratados para a divulgação, como o Trio Virgulino, de forró.
Os políticos, é claro, também cresceram o olho para cima do palco ambulante. “Por muito tempo, o nosso era o único trio elétrico de São Paulo e Minas Gerais”, contou Silva, que passou a lucrar tanto em campanhas eleitorais quanto no Carnaval. Em geral eram políticos miúdos, mas o empreendedor lembra de um ou outro nomão que subiu em seu veículo ainda nos anos 80, como Jânio Quadros – “que morreu me devendo” – e Paulo Maluf – “que pagou direitinho”.
O grosso de seus clientes políticos sempre foi “da direita” – aliás, sua inclinação política. “A ditadura só era ruim mesmo para quem era muito de esquerda”, disse. Em 2002, porém, o mecânico acreditou e votou em Lula. “Me iludi”, disse. Já no primeiro mandato, decepcionado com o escândalo do mensalão, prometeu nunca mais votar nele. Sua convicção, no entanto, não o impediu de aceitar o serviço na comemoração do segundo mandato na mesma Paulista, em 2006, ou na festa da reeleição de Dilma, em 2014.
Para dar voz à presidente reeleita, Silva muniu o trio elétrico de telões que transmitiam seu discurso desde Brasília. “Tinha um bocado de petista lá em cima também, e uma banda pra animar o pessoal”, contou. A nomeação de Lula para ministro só veio confirmar sua antipatia pelo partido. “Não é possível tanto roubo neste Brasil, a ponto de a pessoa se esconder atrás de um cargo. Me desculpe, mas não engoli”, disse.
Confrontado com a hipótese de que o mercado dos carros de som estaria aquecido em tempos de manifestações, o empreendedor foi enfático na negativa. “Até pouco tempo, qualquer festinha de faculdade contratava trio elétrico”, falou. “Agora é difícil fechar as contas, e não são uma ou duas manifestações por semana que vão salvar.” Ele não revela quanto cobra por evento. Não se constrange, porém, em dizer que seu cliente mais fiel tem sido o Movimento Brasil Livre – que nem sonha em pedir fidelidade política, “mesmo porque, do jeito que eles pechincham, não tem como”, disse Silva.