ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2016
Moreno de Angola
Como pintar as unhas em Luanda
Gisele Lobato | Edição 116, Maio 2016
Na entrada do mercado São Paulo, em Luanda, Emanuel Agostinho tentava atrair novos clientes. “Vamos pintar a unha, irmã? Fica bonito. Quer unha de gel?” A camisa com frase em inglês e, sobre ela, uma grossa corrente dourada dariam ao jovem de 23 anos a aparência de um rapper americano – não fosse pelos sapatos sociais, que destoavam.
Agostinho apontava para uma placa de madeira coberta com fotos de mãos em que se destacavam as unhas postiças, longas e desenhadas. Na pequena loja logo atrás da tabuleta, montada sob uma tenda de lonas furadas, funcionava um salão de manicure informal – mais um, entre tantos que há na capital de Angola.
A cliente, a princípio desconfiada, cedeu, e dali a pouco já se ajeitava num banco de plástico no fundo do salão. Agostinho sentou-se imediatamente à sua frente, em um banquinho mais baixo. Logo ao lado ficava uma mesa de ferro, sobre a qual se enfileiravam dezenas de esmaltes, organizados por marca. As brasileiras, como Risqué e Impala, formavam a comissão de frente. São as preferidas do manicuro, que já dava início ao trabalho de lixar as unhas – movimento que ele repete, com destreza, há quatro anos.
“Tem que pintar sempre. Assim vai olhar, lembrar que gastou dinheiro e desistir de roer”, aconselhou, após reparar que havia pouco trabalho para seu instrumento naquelas mãos.
Enquanto a elite local faz suas compras nas capitais europeias, o acesso ao consumo para a maioria dos angolanos passa pelos mercados populares. Em Luanda, o São Paulo é um dos maiores e mais importantes. Integra uma paisagem urbana em que convivem o luxo dos arranha-céus – financiados pelas receitas do petróleo dos últimos anos – e imensas montanhas de lixo, já que a queda recente no preço do barril levou o governo a cortar o pagamento das empresas de limpeza urbana. Um terço dos 24 milhões de habitantes de Angola vive na província de Luanda.
No galpão de alvenaria que é o coração do São Paulo, fileiras de balcões exibem produtos agrícolas, artesanato local e quinquilharias chinesas. Também são vendidas roupas e serviços de beleza – difícil mesmo é encontrar uma única pessoa branca, entre os milhares de clientes diários.
A tenda de Agostinho fica na parte externa do mercado, zona que se assemelha a um camelódromo, com estreitos corredores de terra batida a céu aberto. “Chocolate”, sócio do manicuro no estabelecimento, permanecia sentado à porta da loja, numa terça-feira de fevereiro. Trajava um uniforme do Chicago Bulls e preenchia com cuidado uma cartela de bingo. À distância, alguém cantava os números. No salão, a cliente mirou a mesa de esmaltes para escolher uma cor.
Na cidade do Caxito, cerca de 60 quilômetros a nordeste de Luanda, onde Emanuel Agostinho nasceu, persiste o preconceito em relação a seu ofício. Na capital é diferente. Independentemente do caminho escolhido para ir do Centro ao mercado, não faltarão oportunidades para dar um trato nas mãos. A vaidade pode ser satisfeita sob tendas mais precárias, como a de Chocolate e Agostinho, ou noutras, feitas de tecido, com ambiente quase VIP. Mais comuns são os ambulantes, quase sempre homens, que vão de porta em porta carregando dois bancos de plástico num ombro e vidrinhos coloridos na cesta de vime pendurada no outro braço. Manicure, em Angola, é uma atividade predominantemente masculina.
Agostinho perambulou com seu cesto entre as tendas do São Paulo por alguns anos, antes de conseguir um ponto privilegiado numa das entradas do mercado. Os preços dos seus serviços começam em 500 kwanzas, mesmo valor para mão ou pé. Em fevereiro, isso valia pouco mais de 3 dólares pelo câmbio oficial – ou menos da metade, no paralelo. A unha de gel custa 5 mil kwanzas, o dobro do chamado “gelinho”, um esmalte mais resistente. “As unhas de jornal ficam muito bonitas”, garantiu o especialista, explicando a técnica que permite ver as notícias impressas sob o verniz transparente. Da mesma forma são feitas as “unhas de cigarro”, que levam tabaco desmanchado.
Pelos corredores do mercado, ninguém sabe dizer como os rapazes se tornaram os reis da profissão. Até existem algumas meninas no setor, sobretudo chinesas, mas as angolanas fazem coro para dizer que preferem o trabalho deles. Samuel Mateus, concorrente de Agostinho no São Paulo, tem um palpite: “As mulheres são muito ranhosas, só nós sabemos lidar com elas”, segreda ao pé do ouvido. Com “ranhosas”, quer dizer que são chatas mesmo.
Com o trabalho de manicuro, Agostinho fatura até 18 mil kwanzas por dia, dependendo do movimento. No interior, recebia 8 mil por mês para pintar a sinalização da estrada. Largou o serviço no meio do caminho quando o trajeto começou a ganhar curvas, aumentando o risco de acidentes. “Sou de família pobre, mas a vida não tem preço”, explicou.
A cliente queria uma cor discreta, e sentiu-se em casa ao ver um vidro da cor Renda. O esmalte claro cobriu as unhas em duas camadas, após uma primeira demão de base. Unhas curtas e de cor discreta, de toda forma, não são a regra por ali. É mais comum que as clientes apareçam com imagens encontradas na internet e peçam listras em branco e preto no anelar e no dedo médio, as outras três em laranja, com glitter na ponta.
Num gesto de independência repentina, o rapaz se levantou para buscar três vidros de esmalte especiais para decoração, desses que têm o pincel fino como uma agulha de bordar. Começou a desenhar sem deixar espaço para questionamentos. Fez um traço branco na ponta, estilo unha francesinha, seguido de uma linha preta. Para a surpresa da cliente, que a essa altura já não tinha mais o menor domínio sobre suas mãos, o manicuro passou a desenhar laços nos dedos anelares com a mesma precisão com que antes pintava faixas contínuas e tracejadas.
Na fase da decoração, a concentração de Agostinho é total. Não abre a boca nem para citar algum versículo da Bíblia. Fiel da Assembleia de Deus, esse é o seu assunto preferido – que de vez em quando provoca discussões acaloradas com Chocolate, já há algum tempo descrente de qualquer religião.
Quanto às unhas, Agostinho admite que gosto é gosto e que quem manda é a cliente. Se alguém lhe perguntasse, diria que nesse quesito seu lado viril se sobrepõe ao de artista: ele não resiste a um esmalte vermelho.
A cliente olhou para as unhas sem reconhecê-las. Estavam longe da discrição almejada quando escolheu o frasco de Renda. “Tirei tudo da minha cabeça”, gabou-se o manicuro. Antes de liberar a cobaia, lembrou-se de que faltava uma última camada de base, para finalizar. “Vai dar outro brilho”, prometeu.
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