Em 9 de março de 2015, um dia depois do primeiro panelaço, Dilma conversou com jornalistas e deu sinais de que a crise havia se agravado ao mencionar, pela primeira vez, o impeachment FOTOS: ORLANDO BRITO
Fim do caminho
A agonia de Dilma Rousseff nas imagens de um veterano de Brasília
Orlando Brito e Julia Duailibi | Edição 116, Maio 2016
Orlando Brito não gosta de se atrasar. Às cinco e quarenta da manhã, dirigindo seu carro, corria contra o tempo pela Esplanada dos Ministérios, ainda escura. Naquela manhã de março, havia uma possível foto a ser feita, e Brito estava ansioso para não perdê-la. “O horário é o endereço do tempo”, soltou a máxima num tom delicado e professoral. Lucia e Carol, duas câmeras alemãs da marca Leica, do modelo Typ 114, repousavam no banco do passageiro. Oitenta anos antes, Henri Cartier-Bresson começou a usar a sua Leica 35mm, com lentes de 50 milímetros – havia um inegável ar de romantismo acompanhando aquele fotógrafo no cerrado, em busca do seu “instante decisivo”. Detentor da credencial de número 1 entre os jornalistas que fazem a cobertura do Palácio do Planalto, depois de 51 anos de profissão, Brito, aos 66 anos, ainda parece um jovem entusiasmado diante da notícia – ou um foca, como se diz dos novatos que chegam às redações.
A foto que Brito não queria perder não deveria ser alvo de maiores aflições. Flagrar a presidente Dilma Rousseff pedalando pela manhã dificilmente seria um grande furo – os jornais já haviam captado a imagem das mais diferentes maneiras desde que o fantasma do impeachment a rondava. Mas Brito espanou qualquer hipótese de que pudesse estar perdendo tempo: “Eu não venho fotografá-la pedalando, já tenho um monte dessas fotos. Eu estou fazendo história, porra.” De fato, aquela era uma manhã de ressaca para a presidente. Na véspera, o PMDB, do vice Michel Temer, rompera oficialmente com o governo numa cerimônia que durou três minutos.
Não é sempre que Dilma se anima a pedalar no entorno do Palácio da Alvorada. Mas Brito estava otimista. “Eu venho quando tenho feeling. Feeling é importante no jornalismo”, disse.
Às seis e dois da manhã, na avenida que dá acesso ao Alvorada, avançaram em nossa direção três bicicletas, escoltadas por dois carros à paisana. O feeling do fotógrafo estava certo. “Olha ela aí, olha ela aí”, repetiu Brito, animado e acelerando o carro na direção do grupo, que passou por nós na pista contrária e foi se distanciando pelo retrovisor. Dilma seguia na frente, pedalando sua bicicleta preta, da marca americana Specialized, com um capacete e um casaco amarelo. Tinha a cara fechada. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, Brito me disse: “Fica fria que eu sei dominar aqui.” Continuou dirigindo e se afastando do grupo.
Poucos metros depois, estacionou o seu Renault Megane prata num bolsão entre as duas pistas da avenida vazia. Saltou com uma das câmeras na mão e ficou quieto, quase que de tocaia, olhando para o grupo que se distanciava cada vez mais. Até que Dilma fez um retorno abrupto, atravessou de uma pista para a outra e começou a pedalar em nossa direção, fazendo com que os carros da segurança, pegos de surpresa, a seguissem na contravenção.
Dilma, acompanhada por um general e um major já fora de forma, cada qual com sua bicicleta, aproximava-se do fotógrafo. Parecia um roteiro acordado previamente. Mas não. O tempo de Brasília deu a Brito não só o domínio dos códigos e da etiqueta no trato com as autoridades, como a capacidade de se antecipar a situações. Depois de dias fazendo aquela pauta, ele havia decifrado o trajeto escolhido por Dilma.
Quando a presidente estava a alguns metros de nós, Brito segurou a pequena máquina alemã com a mão esquerda, aproximou os olhos do visor e disparou com o dedo direito seis vezes. Só depois arriscou, em voz alta, um “Muito cedo, presidente”. Dilma não respondeu. Insistimos com um “Bom dia”. Dessa vez, ela respondeu – “Bom dia” –, quase que balbuciando, sem desviar os olhos de seu caminho. Os carros dos seguranças nos fecharam. Mas Brito já havia conseguido sua foto. Era o único fotógrafo por ali naquela manhã.
Desde 1965, Orlando Brito fotografa a República de Brasília. Nenhum presidente desde então escapou de suas lentes. Entre os fotógrafos do Planalto, é o que está há mais tempo na ativa, depois que Gervásio Baptista, uma referência no fotojornalismo político brasileiro, parou de fotografar em 2015, com mais de 90 anos. “Só pelo fato de estar aqui há muito tempo, de ser um cara tranquilo, não dar bola fora, tem muita gente que vem me contar coisa”, diz. Costuma ser mais bem informado do que muitos repórteres do Salão Verde da Câmara. Vira e mexe cochicha alguma boa no ouvido de um escolhido. Como um repórter, liga para suas fontes antes de sair de casa. Quer saber que acesso terá às autoridades em determinado evento, onde ficará o praticável para os fotógrafos se posicionarem, a qual distância estará do palco da presidente.
O pai foi prefeito na pequena cidade mineira de Janaúba e aliado de Juscelino Kubitschek. Quando JK anunciou a construção de Brasília, a prefeitada mineira seguiu o líder. Para lá foi Brito-pai, levando consigo um único dos sete filhos, Orlando. Os dois chegaram em 1957. Brito, que iria ver a mãe apenas um ano e meio depois, ajudava o pai a vender tijolos e cimento. Aos 7 anos, já se considerava um veterano de Brasília. “Conhecia os caminhos de terra que traziam cimento, tijolo e areia para os palácios. Eu ia na boleia dizendo ‘à direita, à esquerda’. No Alvorada, cansei de descarregar tijolos com minhas mãos.” O negócio do pai rendeu certo dinheiro à família, a ponto de Brito estudar num dos colégios da elite brasiliense, o Dom Bosco, por onde passou, entre outros, Fernando Collor de Mello.
Quando Brito tinha 15 anos, uma tia apareceu em sua casa com o marido, o fotógrafo Roberto Stuckert – pai de Ricardo e Roberto, hoje os fotógrafos oficiais de Lula e Dilma, respectivamente. O jovem passou a auxiliar o parente, carregando a bolsa com o equipamento fotográfico. Conseguiu um emprego no Última Hora, onde começou servindo cafezinho, até que o deixaram trabalhar no laboratório de imagens. Um dia faltou fotógrafo para uma pauta, e a missão caiu em suas mãos. Sua primeira foto, um prenúncio do que viria pela frente na sua carreira, foi do general Castello Branco, o primeiro dos presidentes da ditadura militar. Não saiu na capa, mas foi publicada no corpo do jornal. Era um começo.
Brito passou pelo jornal O Globo e se consolidou como um dos grandes da área na revista Veja, onde permaneceu por dezesseis anos. Ajudou a fundar a revista Caras, criou sua própria agência nos anos 90 e passou a fazer campanhas políticas. Atuou em todas as presidenciais do PSDB desde 1994. Hoje, mantém com quatro outros jornalistas um site de notícias chamado Os Divergentes.
De todos os poderosos que fotografou, tem um predileto. “Nada foi maior que conviver com doutor Ulysses no auge”, disse, lembrando ter sido “muito amigo” de Ulysses Guimarães. É do presidente da Constituinte uma de suas grandes fotos. Brito estava indo embora do Congresso, num dia de 1992, quando o viu chegar. Era outubro e o sol do final da tarde de Brasília estava forte. Achou bonita a imagem do líder do PMDB contra a luz e disparou sua câmera. Seis dias depois, Ulysses desapareceria num acidente de helicóptero no litoral fluminense. A foto, um perfil escuro de Ulysses na contraluz, da qual se destaca um halo, ilustrou a capa da revista Veja com o título “Por quem os sinos dobram”.
Hoje, Brito se ressente da falta de acesso ao poder. “Na ditadura era mais fácil ou difícil? Era mais fácil. Os censores ficavam nas redações, mas você poderia colher o material. Hoje, você não tem mais acesso.” Presos nos “chiqueirinhos” (apelido dos espaços em que a imprensa é confinada nas cerimônias palacianas), fotógrafos voltam suas lentes para um cenário produzido e insípido: uma autoridade sentada numa cadeira, na frente de um banner com uma propaganda institucional. Conseguir flagrar nesse ambiente um olhar, um balançar de cabeça ou uma expressão que diga algo sobre a conjuntura política é como achar ouro.
A despeito da cabeleira cacheada e grisalha e dos óculos de aros vermelhos, Brito é discreto. Seu tom de voz é baixo e sua fala é articulada. As duas pequenas Leicas penduradas nos ombros compõem um perfil que destoa da parafernália exibida por colegas de jornais e revistas. Ele gosta de dizer que existe algo de premonitório no fotojornalismo político. “Eu sempre digo que fotografia de política tem muito mais de futuro do que de passado. Um dia, passando por uma comissão na Câmara, vi o doutor Tancredo sozinho, com a mãozinha aqui”, contou, colocando a mão no baixo-ventre. “Achei aquilo estranho.” Um ano depois, Tancredo foi hospitalizado – morreria de uma diverticulite aguda que se tornou pública só depois da sua internação, em 1985.
Nos últimos meses, Brito passou a acompanhar Dilma com esse olhar premonitório. Observa a impaciência da presidente na maneira como ela raspa a sola do seu sapato pelo chão, nas piscadas mais lentas, acompanhadas de bufadas de ar. Repara na tensão corporal, na fisionomia triste e exausta. Registra com suas câmeras, não com muita simpatia pela personagem, mas com certa compaixão. “Não é só uma presidente com problema. É um ser humano passando por problemas.”
Num dos cliques mais reveladores da crise, Dilma parece velar o próprio governo, numa expressão de desamparo e resignação, sentada ao lado dos ministros Aloizio Mercadante e Celso Pansera (este último já fora do governo), como se fossem os parentes – um do PT, outro do PMDB – que lhe restaram.
Há, além dessa cena, imagens premonitórias da presidente com o vice. Muito antes do rompimento oficial entre Dilma e Temer, as fotos já mostravam que ali nunca houve sintonia, no máximo tolerância. Apesar do protocolo ditado pelos chefes de cerimonial, o registro que fica para as lentes de Brito é o mal-estar e o distanciamento incontornável entre os dois. Ao lado de Dilma, Temer não aparece como um “vice decorativo”. Ele não decora nada, antes rivaliza com ela. Há um antagonismo latente e às vezes explícito entre os personagens.
A foto da posse de Dilma, em 2011, incluída nesta edição, já anunciava a natureza dessa relação. Nela, Lula suspende o braço esquerdo de Dilma após lhe passar a faixa presidencial. Os dois se olham com cumplicidade. Foi esse o registro feito na ocasião pela maioria dos fotógrafos. No corte de Brito, porém, há um terceiro elemento que perturba a harmonia do momento e confere à cena outro sentido. É Michel Temer. Em pé, ao mesmo tempo próximo e distante de tudo, o vice aplaude o casal. As mãos rígidas e a posição dos braços sugerem um aplauso contido, em sintonia com o sorriso à meia-boca e o olhar fulminante. O conjunto fala por si. Orlando Brito não precisaria de mais nada para provar sua tese: “Fotografia de política tem muito mais de futuro do que de passado.”
Após deixar a Presidência com aprovação recorde, Lula passou a faixa à sucessora em janeiro de 2011. A vitória de Dilma levou Michel Temer ao Palácio do Planalto e consumou o casamento de conveniência entre PT e PMDB, que durou seis anos. Em março de 2016, depois de uma relação tensa, marcada por crises, desprezo mútuo e traições, o partido aliado finalmente rompeu o matrimônio
A relação entre a presidente e o vice sempre foi fria e formal, pontuada por desconforto. Temer ressentia-se de não participar da gestão, enquanto Dilma via nele e seu entorno um elemento de perturbação do governo. A crise escancarou a distância entre os dois e levou Temer a vazar uma carta à presidente, na qual reclamava das coisas comezinhas e dizia ser tratado como peça decorativa
À medida que o quadro político se deteriorou, a cabeça baixa de Dilma foi se tornando uma constante. Às vésperas da votação do impeachment, durante cerimônia no Planalto ela parecia velar o próprio governo, ao lado de Aloizio Mercadante, que havia deixado a Casa Civil para assumir a Educação após pressão de Lula e do PMDB, e do ex-titular da Ciência e Tecnologia, Celso Pantera
Orlando Brito, fotógrafo independente, é editor do site de notícias Os Divergentes
Julia Duailibi trabalhou na piauí, na TV Bandeirantes, na Folha de S.Paulo, na Veja e n’O Estado de S. Paulo
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