O volume de rejeitos armazenado na barragem de Fundão correspondia a quase dez vezes o volume da Lagoa Rodrigo de Freitas; veio tudo abaixo
A terra devastada
As marcas da tragédia sete meses depois
Cristiano Mascaro e Pedro Mascaro | Edição 118, Julho 2016
“Vamos viver uma triste aventura”, comentei com meu filho Pedro, que me acompanharia para fazer fotos com drone. Nossa missão seria registrar a paisagem, as águas dos rios, o mar e as pessoas, sete meses depois de terem sido varridos por toneladas de lama. Por mais que imaginássemos a desgraça, nada se comparou à devastação que encontramos nos mais de mil quilômetros percorridos de Mariana, em Minas, até Regência, no Espírito Santo, onde o rio Doce deságua no mar.
Assim que chegamos a Mariana, no final de maio, pensávamos em ir imediatamente a Bento Rodrigues, o retrato mais dramático do rompimento da barragem de Fundão. Como já tínhamos visto centenas de imagens do desastre, imaginamos que seria fácil fotografar. Não foi bem assim. Depois de percorrer algumas burocracias, descobrimos que as visitas a Bento, hoje parte de roteiro turístico, passaram a ser controladas pela Defesa Civil e deveriam ser agendadas. A próxima saída só ocorreria na semana seguinte. A espera acabou se revelando produtiva, pois pudemos esquadrinhar os detalhes da tragédia.
O primeiro desafio foi fotografar o que sobrou da barragem de Fundão e da vizinha Germano, que segundo rumores também corria o risco de se romper. Como certamente teríamos dificuldades para entrar no território da Samarco, a alternativa foi explorar, a partir da rodovia que margeia suas instalações (a MG-129), um ponto estratégico para lançar o drone que sobrevoaria as barragens. Depois de uma série de tentativas de burlar o sistema de segurança da empresa (que queria impedir nosso trabalho), lançamos o drone de um acostamento da pista e fotografamos os rejeitos da exploração de minério.
Com a sensação de dever cumprido, rumamos em direção ao rio Gualaxo, vítima e algoz desta história. Atingido pela lama de Fundão, o rio, antes de envenenar o Doce, soterrou Paracatu de Baixo e Gestera. Ao longo do caminho, seguindo o leito fluvial que percorre uma bela paisagem montanhosa, percebe-se a magnitude da catástrofe. Como se não bastasse a destruição de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira, a lama quase alcançou as copas das árvores, transbordou do leito e soterrou toda a vegetação às margens do rio. No fundo do vale, barro, galhos de árvores, pedras, restos de construções, um entulho monstruoso que dificilmente poderá ser removido.
Embora não tenha sido atingida pela onda de lama, Mariana carrega a tristeza das famílias do povoado vizinho, à espera de nova moradia. Fomos conhecer algumas dessas pessoas que deixaram para trás tudo o que haviam vivido. Alojados em instalações que nada têm a ver com suas casas, distantes de seus quintais e dos amigos, os sobreviventes flutuam na estranheza dos espaços que lhe foram reservados. Alguns se apegam a seus animais, como dona Maria de Souza Santos, sempre abraçada à cadela Ágata, recuperada dias depois do acidente, a 30 quilômetros de casa. José Barbosa lamenta a perda de sua fonte de renda, um empório, e dos 60 mil reais guardados numa gaveta, destinados a comprar um caminhão – desde o Plano Collor não punha mais dinheiro em banco. Talvez o único ponto fora da curva em meio à desolação, Paula Alves impressiona pela energia. Foi ela que, ao ouvir um ruído estranho e os berros avisando sobre o rompimento da barragem, saiu montada em sua pequena motocicleta, ordenando a todos que corressem morro acima. Enquanto conversávamos, Paula nos revelou, sem nenhum abalo, que a Samarco acabara de demiti-la.
No dia da visita a Bento Rodrigues, chegamos com muita antecedência ao escritório da Defesa Civil, onde soubemos que nós e mais quatro visitantes seguiríamos em carros oficiais e deveríamos permanecer juntos. A visita duraria uma hora. Desanimados com as restrições, partimos. De repente, do alto de uma elevação, pudemos avistar o que sobrou do pequeno vilarejo. As fotografias de Canudos e a descrição de Euclides da Cunha logo me vieram à mente. De perto, o cenário se mostrou em sua real dimensão. Aproveitando a tolerância da Defesa Civil, caminhamos por um labirinto de casas destroçadas, restos de construções que mal puderam suportar o peso da avalanche de lama. Paredes inclinadas prestes a tombar, fragmentos de lajes despencando pelos vãos das ruínas, telhados quase intactos pousados no chão. Misturados ao barro, móveis, geladeiras, televisores, colchões, tubos de pasta de dente, garfos, copos, roupas de todo tipo, livros, CDs, panelas.
Vencida essa etapa, fomos verificar como estava o rio Doce entre Governador Valadares e sua foz, em Regência, no litoral capixaba – um trecho de mais de 600 quilômetros. Nenhuma providência foi tomada. Na região não se diz coisa com coisa. Em quanto tempo a água do rio voltará à normalidade? Está envenenada ou pode ser bebida? Faz mal comer os peixes? Banhar-se no rio provoca coceira? Ninguém sabe ao certo. Em Governador Valadares, só alguns corajosos como Paulo Guido se atrevem a embarcar em seus caiaques e remar nas águas barrentas do rio. Outros observam a distância, do alto dos parapentes que partem do pico do Ibituruna.
Mais ao sul, a outrora turística cidade de Resplendor sofre com a ausência de visitantes. A poucos quilômetros dali, na terra dos krenaks, o cacique Rondon lamenta não poder pescar nem ver seus filhos brincando nas águas, além da suspensão das festas religiosas que celebram o rio. Em Regência, ponto final do percurso, o drama de Resplendor se repete. Vilarejo frequentado por surfistas, hoje anda vazio e os pescadores se viram como podem. É perigoso comer peixe do rio? Ninguém sabe. É proibido pescar? Mais ou menos. No rio não é recomendado, e no mar é proibido – é o que dizem os órgãos competentes. A única certeza é o barro vermelho que repousa sob as águas do rio.
Não há, ao longo do trajeto entre Mariana e Regência, quem diga o que, de fato, está sendo feito e quanto tempo levará para que voltem ao normal a natureza e a vida das pessoas que perderam o passado, o presente e o futuro.
Das casas, da escola, do centro de saúde restou apenas a saudade, registrada nas palavras de um morador que voltou para ver o estrago
Cerca de 300 pessoas estavam no povoado de Bento Rodrigues quando a barragem de Fundão se rompeu. Sete meses depois da tragédia, a cidade fantasma ainda lembra um cenário de guerra, como se tivesse sido atingida por um bombardeio. O acesso ao local agora é limitado; nas primeiras semanas saqueadores levaram o que ainda podia ser aproveitado, como portas, telhas e esquadrias
Visto do alto, Bento Rodrigues é apenas um monte de entulho. Conforme a câmera se aproxima, brotam, aos poucos, objetos que compuseram as histórias de vida desbaratadas pela lama da Samarco; um sofá, uma antena de tevê, um filtro, a parede de azulejos, uma caixa d’água. Os restos de telhados pendentes indicam a força com que os rejeitos entraram na vila, arrasando tudo
Visto de cima, o rio Gualaxo do Norte parece ter sido pintado com uma caneta marrom. Tomado pela lama, transbordou pelas margens, provocando enorme destruição ao longo de seu curso
A cerca de 70 quilômetros de Bento Rodrigues, o povoado de Paracatu de Baixo foi atingido pela lama duas horas e meia depois do estouro da barragem. A maioria das casas foi soterrada
A torrente de lama tingiu de vermelho as paredes verdes do Bar do Jairo, em Paracatu de Baixo, quase alcançando o topo do telhado e deixando sua marca em linha reta, como se tivesse sido traçada por um caprichoso pintor. Depois de derrubar paredes, toneladas de terra ficaram acumuladas dentro das casas, às vezes até a altura das fechaduras das portas (terceira imagem)
Em Gesteira, a 72 quilômetros da barragem, a lama continuou sua rota de destruição e invadiu o que foi um jardim e uma horta. A cerca que protegia a pequena plantação sobreviveu a sua fúria, mas a natureza levará décadas para se recompor
Depois de destruir cidades, matar pessoas e animais e comprometer a fauna e a flora ao longo de 650 quilômetros, o rejeito vermelho que contaminou o rio Doce desembocou no mar de Regência, no Espírito Santo. Era o ponto final de uma tragédia sem fim
É fotógrafo e doutor em comunicação visual pela USP. Publicou, entre outros livros, Cidades Reveladas e Portugal
Pedro Mascaro formou-se em engenharia na Universidade Mackenzie e trabalhou na área por oito anos. Atualmente é fotógrafo dedicado a imagens aéreas
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