Poemas
Eucanaã Ferraz | Edição 13, Outubro 2007
VALSA PARA GRAÇA
Abra-se tudo
em grande-angular:
alas a ela, abra-se tudo
em salas que se abram
em salas abertas, salões,
e o que se fechara
antes desabroche
numa sucessão de estrelas
em pleno dia claro.
Abra-se o teto
do planetário, abra-se
o coração de fogo
e nele toda dor
torne a nada e
nada lhe resista e
por onde passe alastre
sua leveza. Alas a ela,
e que ela me leve.
Porque nela tudo parece
mover-se sobre salto
alto, sobretudo a alma,
a alma que parece calçar
a mesma sandália que
as palavras e os gestos
dela, alas
a ela, que assim
alta,
como que vai
descalça e dançasse
sobre-além dos alarmes
e do medo, largando
na sua valsa
um rasto só de beleza.
Alas a ela.
PEDIDO
Houvesse Deus e os deuses
A fim de que lhes pedisse:
o coração em que penso, por
mais frases e bocas que beije
todas ache feias e frias, e que,
amanhã, ao despertar, ou à saída
da boate, pense em mim quando
a luz do dia sobre ele se desate.
TERCETO
Não há matéria para se fazer a tristeza
nessa manhã, manhã perfeita
se a mão que me deu maio fosse a tua.
VINHETA
Ame-se o que é, como nós,
efêmero. Todo o universo
podia chamar-se: gérbera.
Tudo, como a flor, pulsa
e arde e apodrece. Sei,
repito ensinamento já sabido
e lições não dizem mais
que margaridas e junquilhos.
Lições, há quem diga,
são inúteis, por mais belas.
Melhor, porém, acrescento,
se azuis, vermelhas, amarelas.
A BELA E A FERA I
Em cruzar
a sala zumbindo
sua navalha o besouro-ébano espanta
o piano que se ergue atrapalhado,
plantado na ponta das
patas
sem poder,
do chão, tocar o ouro
absoluto da negra couraça que inseta
o ar ali com sua canção. E o pobre
Steinway supõe ser
a nave
um
sinal, um
seu semelhante, um filho talvez.
A BELA E A FERA II
Em cruzar a sala zumbindo o ouro negro
de sua couraça
o besouro
absoluto
ébano espanta
o piano que, plantado no chão, ergue-se
atrapalhado na ponta das patas sem poder
tocar a nave que
navalha
o ar
com sua canção-verniz. E
o pobre Steinway supõe ser o inseto
ali um sinal, um seu semelhante,
talvez um
filho.
INTERVALO
É o que lhe digo: a medida.
Quantos de nós entre nós
se tantos os vazios a preencher
entre querermos e a distância?
A delicadeza dá dois passos.
A vontade avança. A dúvida
recua. Quantos de você entre
você e Camus, entre você
e a casa, entre você e quase,
entre você e o nó que lentamente
vai desatando entre você
e nós? Há muitos entre nós:
que somos, que não somos,
que seríamos, entre a sua voz
e ouvi-la entre a vertigem
de tocar, por sobre o Saara,
as mãos e o jardim que nelas
se abre, agora que não há
senão um sim e um sim,
e temos sede, e rimos alto
entre livros, arrebatamentos,
amendoeiras e a impressão
de que, sem deixar traço,
todos desapareceram.
O MÁGICO
De mim o que trará em sua capa
enigmática o mágico? De mim
o que haverá em sua urna aguda
e bem guardada? O que se mudará
de mim para o fundo falso e fundo
de seus olhos sem que eu perceba
nem queira dar por isso? Depois
do espanto, depois do óbvio
sob o fingimento das mangas e de
quantas ciências ocultas em suas
mãos abertas (hora de ir embora)
o que seremos? O que serei de
mim quando sair de cena o mágico?
Que restará do encanto? Há de ficar
comigo a música de agora? Algum
espinho? Um ás? O espanto?
O SÓ
Na longa alameda a luz aos pedaços cai
mole do alto dos postes. Ele olha.
Para que não doa, apenas olha.
E não dói.