O bagulho é doido, tá ligado?
Entre o crime e a indústria cultural, a viagem dos rappers do Facção Central ao coração do Brasil
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 10, Julho 2007
Carlos Eduardo Taddeo cria dois cachorros bravos, o mastim napolitano Lothar e o rotweiller Luthor, para dissuadir quem cogite bisbilhotar a garagem da sua casa, onde estaciona sua Blazer preta, modelo 1999. É uma casa pequena, em nada diferente das dezenas de outras que a cercam no Jardim Castro Alves, no bairro do Grajaú, na periferia paulistana. Taddeo mora com a mulher, Maria de Fátima, e as duas filhas, Gabriela e Maria Eduarda, de 9 e 11 anos. As meninas, que são boas alunas de uma escola pública das imediações, são criadas com afeto e severidade. Elas são proibidas de tomar refrigerante e não freqüentam McDonald’s e similares. Foram poucas vezes, mas quando as meninas dizem palavrões, o pai lhes dá palmadas.
“Não deixo nem que elas falem ‘bunda'”, diz Taddeo, que tem a cabeça raspada, bigode, pêra e cavanhaque ralos, calça tênis cano alto, impecavelmente alvos, veste calças jeans bem largas e uma camisa de manga comprida azul-marinho, com listras brancas e vermelhas. Como elas fazem, então, para cantar as letras que o pai compõe? “Na hora dos palavrões elas pulam”, ele responde, sério, quase casmurro. “O Eduardo é chato mesmo”, opina Maria de Fátima.
É uma sexta-feira fria, e o casal se prepara para ir ao Aeroporto de Congonhas, pegar um avião para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e de lá seguir de carro para Dourados, local do show. Taddeo, de 31 anos, é o letrista único e líder do grupo de rap Facção Central, o mais enfezado da cena brasileira do hip-hop, autor de versos como:
INFELIZMENTE O LIVRO
NÃO RESOLVE
O BRASIL SÓ ME RESPEITA
COM UM REVÓLVER
ou
DEITA, PORRA, QUERO DÓLAR,
BRILHANTE, GARGANTILHA
TÔ SEGUINDO OS CAPÍTULOS
DA SUA CARTILHA
O refrão “deita, porra” é da música “Cartilha do Ódio”, que também fala de uma granada explodindo “as coberturas de 5 milhões do Itaim Bibi”. Ela está no álbum O Espetáculo do Circo dos Horrores, o mais recente do Facção, lançado há um ano, que vendeu 35 mil cópias. É o sexto de uma carreira que começou há doze anos.
Enquanto aguarda a chegada da cunhada, que cuidará das filhas durante o fim de semana de show em Dourados, Eduardo Taddeo explica que o “circo dos horrores”, do título do álbum, é a situação produzida pela miséria brasileira. Suas letras, diz ele, descrevem e apontam responsáveis pela exploração social. É o caso do trecho que lamenta:
QUE PENA QUE NESSA CHURRASQUEIRA
TAMBÉM NÃO VIREM CINZAS
VEREADORES, DEPUTADOS, SENADORES
MINISTROS E PRESIDENTE
Taddeo escreveu cerca de 100 letras de rap. Os palavrões são usados com abundância (“filho-da-puta” aparece 27 vezes). A intenção deles não é fazer gracinha. É nomear os inimigos, que são ameaçados e agredidos. Como ocorre em “Assalto a banco”:
FILHO-DA-PUTA SE JOGA NO CHÃO
QUE O CHEIRO DO SANGUE TÁ NO AR
380, GLOCK 45, É HORA DE REZAR
O rap ─ abreviatura de rhythm and poetry ─ nasceu na Jamaica, nos anos 1960, de onde migrou para bairros negros das metrópoles dos Estados Unidos. É um canto falado, marcado por batidas rítmicas, mais ou menos uniformes, produzidas por equipamentos digitais, os samplers. Ele é um dos quatro elementos do hip-hop, a cultura de rua metropolitana que se espalhou pelo planeta a partir dos anos 1980. Os outros três são os grafites, a dança break e o DJ (de disc-jockey). Em sua expansão, o hip-hop se radicalizou e foi cooptado pela indústria cultural. Ao pregar o assassinato de policiais, ou ao tratar as mulheres como prostitutas, alguns rappers faturam dezenas de milhões de dólares em gravações, clipes e shows.
O gênero chegou ao Brasil no final dos anos 1980, com grupos de periferia que se reuniam na estação São Bento do metrô de São Paulo. O seu primeiro marco foi a apresentação do Public Enemy, na capital paulista, em 1991, aberta pelo grupo Racionais MC’s, um dos primeiros a fazer sucesso, e até hoje no topo do rap nacional.
“Mais do que a voz que canta, o rap tira a sua força da voz que fala”, explica o compositor e cantor Luiz Tatit, professor de lingüística da Universidade de São Paulo. Autor de vários livros sobre a música brasileira, Tatit diz que “o rap assumiu o lugar da canção de protesto e é, hoje, a única música de contestação. É um gênero que tem fôlego para crescer. Sua importância não está em revelar a realidade da periferia ─ já que toda música revela uma realidade ─, mas em ser uma forma de expressão, de convencimento e de persuasão para os seus ouvintes”. Tatit diz que a agressividade do gênero é um recurso retórico: “A narrativa do rap tem um aspecto de fábula porque coloca o bem contra o mal, um contra o outro, o que tende a acirrar os ânimos num país desigual como o Brasil. Mas aí o problema é mais social do que musical”.
Há rap e rappers para todos os gostos. Os mais conhecidos são os Racionais MC’s, MV Bill, do Rio de Janeiro, e GOG (iniciais de Genival Oliveira Gonçalves), de Brasília. Facção Central faz parte da vertente mais violenta, às vezes classificada de gangsta rap. Ela inclui grupos como Consciência Humana, Sistema Negro, Face da Morte, Realidade Cruel e Cirurgia Moral. Mesmo que à margem da televisão e das rádios (com exceções como MV Bill), o hip-hop nacional movimenta um mercado que tem grifes de confecção, empresas de distribuição e gente de todo o tipo organizando shows de fins de semana nas periferias.
É para um desses ─ em Dourados, no Mato Grosso do Sul ─ que Taddeo, Fátima e outros seis integrantes do Facção Central se preparavam, naquela sexta-feira, para viajar. A televisão exibe vídeos de shows do grupo. Eles se apresentam quase todos os fins de semana, para platéias de 1 000 a 4 000 pessoas. Quando a conversa baixa de tom, se ouve Eduardo cantar na TV:
DEVIA TER UM CONTROLE
INTERATIVO NA TELEVISÃO
PRA BOTAR FOGO NO PROJAC,
NA XUXA, NO FAUSTÃO
SE EU SEQÜESTRO O SILVIO
SANTOS, PEÇO DE RESGATE
O RATINHO, O GUGU,
NUM FOGUETE PRA MARTE
São versos de “A Bactéria FC” (ou seja: Facção Central), do último álbum. “Eu pesquiso muito para não cometer erro de informação”, explica Taddeo, no quarto do casal, algo dessarrumado devido à reforma da casa, herdada do sogro. Como ainda não há guarda-roupa, eles usam um armário improvisado. Os seis álbuns estão arrumados na cabeceira da cama. O rapper estima que tenha vendido, tudo somado, uns 80 000 discos.
“O Facção não é mais meu, nem do Dum-Dum. É de quem admira e acredita em nós”, ele diz, referindo-se ao seu parceiro e cunhado, que mora na vizinhança e ainda não chegou.
As letras, quilométricas e sulfúricas, se estendem por dezenas de páginas. Seus alvos principais são a Polícia Militar
SE NÃO EXISTE A PENA
DE MORTE NO BRASIL,
POR QUE A PM MATA TANTO
PRINCIPALMENTE A ROTA,
PUTA QUE O PARIU?
e jovens ricos, chamados de playboys:
AÍ, PLAYBOY, CONSTRÓI
SEU BUNKER
COM VIDRO BLINDADO,
PORTA DE AÇO BALÍSTICO
COM FECHADURA DE NOVE DENTES
PÕE NO SEU JARDIM SENSORES
DE MOVIMENTO
CÂMERAS, CÃO DE GUARDA
E UM VIGIA NA GUARITA
QUE O SHOW JÁ COMEÇOU
“As letras são violentas por traduzirem o dia-a-dia, as mazelas, as torturas da periferia, da favela”, diz Taddeo. “Os palavrões se tornam necessários em determinados trechos, para demonstrar o grau de revolta. Colocados de forma adequada, eles dão a dimensão da gravidade, e da seriedade do tema que está sendo abordado.”
O vôo da Gol saía de Congonhas às 23:30 horas. Já eram quase 9 horas, e nada de Dum-Dum. O primeiro a chegar foi Marcos Antônio Marinho, o Marquinhos, DJ assalariado do Facção Central. Ele ganhará 300 reais pelos quase três dias da viagem. Tem 29 anos. Ex-contínuo, ex-chocolateiro de fundo de quintal, está no grupo há quatro anos. Também se apresenta em baladas no Capão Redondo, onde mora.
O ambiente ficou mais agitado com a chegada de Edson Oliveira Santos, o Smith. “Ele é o que mais zoa”, apresenta Taddeo. De óculos pequenos e cabelo de trancinhas rastafári, Smith, de 26 anos, é um dos dois vocalistas de apoio. Branco, alto, tem uma sombra de barba e bigode finamente escanhoada. É confeiteiro de profissão, mas está desempregado. Canta desde 1999. Já integrou os grupos Realidade Urbana e Detentos do Rap. Ganhará 250 reais pelo show no Mato Grosso do Sul.
Dum-Dum chegou num Mazda 98. Cumprimentou a todos, menos Fátima e o marido, para os quais nem sequer olhou. O casal também o ignorou. Dum-Dum estava com o outro vocalista de apoio, José de Oliveira Arias. Aparentemente mudo ─ a não ser no palco, quando solta a voz e o corpo ─, Arias é de família classe média baixa. Seu último emprego, nos anos 1990, foi o de ajudante de cozinha do Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, durante a gestão de Mario Covas. Começou na música tocando cavaquinho, com uma turma do pagode. Em 1999 aderiu ao rap. Arias vai faturar 250 reais na viagem a Dourados.
No volante da Blazer, a caminho de Congonhas, Taddeo estima que o carro valha uns 35 000 reais. Comprou-o com os direitos autorais dos cinco primeiros CDs. O carro, a casa, os equipamentos musicais do grupo e algum dinheiro no banco são todo o patrimônio que tem, diz. O mais quieto da trupe é Carlos Alberto Bibiano, o Carlinhos, responsável pelo som. É a primeira vez que ele se mete com a turma do rap, numa substituição de última hora. Mas já cansou de fazer shows com duplas caipiras. Avesso às drogas, ficou traumatizado com artistas que usaram maconha dentro de vans em que ele também estava. “Banda que não fuma perto de mim já ganhou a minha simpatia”, diz, ainda sem saber qual será o comportamento do Facção Central.
O despacho das bagagens e das cases de som e de luz ficou a cargo de Fátima e de Edson Chagas dos Reis, o iluminador e faz-tudo do Facção Central. No aeroporto, Eduardo Taddeo foi parado quatro vezes por fãs. A trupe dois oito chama a atenção. Pelo conjunto, mas, principalmente, pelo andar gingadíssimo do estiloso Dum-Dum, e pelas trancinhas e roupas folgadas de Arias e Smith. Na passagem pela esteira da Polícia Federal, Smith deu azar com o alarme. Era o cinto ─ e ele teve de tirá-lo. Mais sem jeito do que irritado, deixou que as calças caíssem, não teve pressa em recompor-se, e desconcertou uma desconhecida que o olhava, pasma, ao perguntar, rindo, o que é que ela estava achando.
Faz duas horas que Taddeo e Dum-Dum se encontraram e estão próximos. Mas não trocaram frases nem olhares. No salão de embarque, cada um fica no seu canto. O resto do grupo se divide entre um e outro. Arias e Smith são os mais chegados a Dum-Dum. Mas não deixam de dar atenção ao casal. Fátima é quem cuida dos negócios, da agenda de shows ao pagamento dos cachês. Taddeo nem sequer atende os telefones.
Dum-Dum é Washington Roberto Santana. Tem 38 anos e 1,80 metro de altura num corpo musculoso e esguio. “Todo mundo acha que o meu apelido é por causa da bala, mas não tem nada a ver”, explica. “Foi a minha avó que colocou, por causa de um negrinho personagem de um gibi.” Filho de doméstica com pai que praticamente não conheceu, foi criado no bairro do Cambuci. Morou em cortiços, estudou até a quinta série e cedo pegou no pesado. Com 11 anos já tinha feito carreto, entregado jornal e trabalhado numa fábrica caseira de martelos, colocando os cabos. Passou a trabalhar em feira livre, limpando peixe. Pegou gosto e foi peixeiro, até os 17, sempre em feiras. Depois, se tornou ajudante numa empresa que produzia fotolitos, e faliu. “A única opção que vi foi vender drogas, entrar para o tráfico”, conta.
Dum-Dum virou traficante. Fumou e cheirou toda a maconha e cocaína que pôde. “Crack, nunca”, diz. Foi preso em 1996, passou três meses na cadeia pública de Pinheiros, período em que nasceu sua filha, sobrinha de Eduardo Taddeo. “Saí da cana com outra cabeça, voltado só para fazer o certo”, afirma. A Justiça o absolveu, por falta de provas. Parou de usar cocaína.
Ele caiu no rap de vez ao ver um show dos Racionais MC’s. “É isso que eu quero pra mim”, decidiu, na frente do palco. A primeira formação do Facção Central nasceu com ele, mas sem o cunhado, que entrou depois. “Se não fosse o rap eu não estaria vivo”, diz Dum-Dum. “É a minha vida e o meu sustento.” Ao contrário de Taddeo, sua cultura musical extrapola o mundo do rap. Ele gosta de Billie Holiday, Nina Simone e Aretha Flanklin. Dum-Dum tem uma Nossa Senhora Aparecida e uma escrava Anastácia tatuadas no braço direito, a palavra Facção no esquerdo, e o focinho de um pit-bull na perna direita.
No avião, Smith chama um passageiro que entra de chapéu de Crocodilo Dundee. O próprio não percebe, mas outros riem. Poucos depois, Smith pede um isqueiro para a aeromoça, explicando, na maior naturalidade, que quer fumar. Ela e os que ouvem o pedido se assustam um pouco. Smith diz para não se preocuparem, porque vai fumar no banheiro, sem incomodar ninguém. Mais risadas, até que uma senhora se irrita e pede que ele fale mais baixo. O vocalista a ignora. Meia hora depois da decolagem, Smith sossega.
Em Campo Grande, na madrugada, a van que os espera no aeroporto leva todos para jantar numa feira em fim de expediente. Carlinhos Bibiano registra, satisfeito, que, até então, ninguém fumara nada. O cansaço é evidente, mas, no restaurante simples, ainda há ânimo para protestar contra uma batata frita de 15 reais, afinal descartada, e para Smith pedir ao garçom, com fingida seriedade, uma cerveja de 4 litros. Dum-Dum e Taddeo estão em lados opostos da mesa. E assim seguem dentro da van, por mais três horas, até Dourados, onde chegam quase de manhã. O casal Taddeo hospeda-se num apartamento maior, de frente para a rua. Os outros seis se dividem em dois apartamentos de fundos.
Na tarde de sábado, a empresária Kelcilene Klein, uma jovem senhora vistosa, observava a arrumação do palco do ginásio onde o Facção Central irá se apresentar. O convite para o show partiu dela, dona de uma loja que vende, entre outras roupas, a moda hip-hop. Até aquela hora, quatro da tarde, 700 ingressos de 10 reais já estavam vendidos. “O rap é uma forma de protesto consciente contra o descaso do governo com a maioria da população”, diz a Kelcinele Klein. “Convidei o Facção porque a mensagem deles é a mais verdadeira e realista, e porque eles têm um público fiel.” Entre o cachê do grupo, de 5 000 reais, despesas de transporte, hospedagem e alimentação, os gastos chegam a 11 000 reais. “Prejuízo eu não vou ter, e ainda divulgo a loja”, diz a empresária.
Enquanto Fátima, Marquinhos, Carlinhos e Chagas estavam no palco, cuidando cada um da sua área ─ projeção de vídeo, equipamento do DJ, som e luz ─, os quatro vocalistas continuam no hotel, descansando. Não saíram nem para almoçar. Fátima trouxe as quentinhas do restaurante a quilo mais próximo, o Máximo’s, e eles comeram nos apartamentos.
Sozinho no quarto amplo, o líder do Facção faz exercícios de memorização das letras caudalosas. “Mesmo que o meu cérebro pare, eu quero que a boca continue a cantar”, ele diz. E canta:
513 DEPUTADOS, ESTOCADOS
COM VERGALHÃO
ESSE É O PLENÁRIO QUE EU SONHO
EM PRESIDIR A SESSÃO
No ombro direito, Taddeo tem tatuagens com o rosto da mulher e das filhas. No esquerdo, vê-se um feto cercado por todas as misérias imagináveis. É o retrato de uma das suas letras mais escaborsas, a de “Cortando o Mal pela Raiz”:
É BOM DAR NEGATIVO O TESTE DA
FARMÁCIA,
SENÃO ARRANCO O EMBRIÃO DO SEU
ÚTERO NA NAVALHA
Eduardo Taddeo é o filho de uma faxineira que teve quatro filhos em dois casamentos. Seu pai, descendente de italianos e empresário da noite, era casado com outra mulher oficial, mas dava assistência. Ele me mostrou meia dúzia de fotos da festa de seu primeiro aniversário. Houve bolo, mesa de doces e refrigerantes, servidos para pessoas alegres, que vestiam roupas de festa. O pai, de terno branco, o carrega no colo, ao lado da mãe. A casa alugada da foto era no Glicério, bairro antigo e popular do centro de São Paulo, conhecido pelos cortiços e pela pobreza. O rapper conta que as dificuldades se agravaram com o afastamento gradativo do pai. A mãe e os quatro filhos moraram em pensões, com banheiros coletivos. Aposentada por invalidez, com o mal de Chagas, conta o filho, “às vezes ela pedia esmola ou cesta básica na igreja”.
O líder do Facção estudou em escola pública até a quinta série do ensino fundamental. Era tímido e, míope, tinha vergonha de usar óculos. Usava tênis velhos e roupas surradas. Em casa, a comida era sempre menos do que ele queria. “Às vezes, só tinha arroz e o feijão era aquela água”, lembra. Ajudava a mãe pegando frutas e legumes nos fins de feira. Ganhava um troco tomando conta de carros. Na rua, assistia a cenas do crime: tráfico, furtos, roubos, prisões, violência. “Eu via os caras com tênis novos e queria ser criminoso”, conta. Começou aos 7, furtando um toca-fitas e roubando dólares de um japonês. Uma vez, foi parar na delegacia para averiguação de furto em um supermercado. Saiu sem maiores conseqüências. Com 9 anos, diz, já “andava com os caras”, levando e trazendo armas. Odiava álcool. Ia de benzina, maconha e cocaína. Experimentou crack. Com 16 anos, fez assaltos à mão armada.
“Foi um furto do Equipado que me salvou”, relembra Taddeo. Equipado vinha a ser um namorado de sua irmã, um pouco mais velho. Ganhou o apelido porque ia para a escola cheio das tralhas. O furto era um gravador com uma fita k-7 que trazia a música “Corpo Fechado”, dos rappers Thaíde e DJ Hum, que Taddeo escutou. “Aquilo me pegou”, ele conta. “Era uma coisa de falar rimando, que eu achei que podia fazer. Escrevi uma letra, mostrei para o Equipado, e ele disse que eu mandava bem. Daí não parei mais.” O primeiro grupo que ele formou, no fim dos anos 1980, chamava-se Esquadrão Menor. Era integrado por moleques de rua. Dum-Dum era um deles.
Como seus dois primeiros discos não venderam bem, Eduardo Taddeo aceitou o convite do sogro, maître do Hotel Hilton, na Avenida Ipiranga, hoje desativado, e passou dois anos lá, como ajudante de cozinha. Lavava louça, limpava o chão, carregava gelo. Já morava no Grajaú, e continuava a compor. Os primeiros quinze minutos de fama chegaram no ano 2000, quando a Justiça paulista censurou a exibição do vídeoclipe Isso Aqui é uma Guerra, na MTV, que acatou a censura. A música está no terceiro CD, Versos Sangrentos, de 1999. É a dos versos:
É UMA GUERRA ONDE SÓ SOBREVIVE
QUEM ATIRA
QUEM ENQUADRA A MANSÃO
QUEM TRAFICA
INFELIZMENTE O LIVRO NÃO RESOLVE
O BRASIL SÓ ME RESPEITA COM
UM REVÓLVER
No clipe, Eduardo Taddeo e Dum-Dum protagonizam dois bandidos que seqüestram e matam ─ mas ao final se dão mal, com a vitória da polícia. A censura foi registrada pela imprensa, inclusive a da televisão, e Taddeo e Dum-Dum aproveitaram a repercussão para divulgar suas músicas. Houve um inquérito, mas não deu em nada. No CD seguinte, A Marcha Fúnebre Prossegue, de 2001, Taddeo se referiu à censura com refrões de protesto, que até hoje ele repete nos shows, como:
PODE CENSURAR,
ME PRENDER, ME MATAR
NÃO É ASSIM, PROMOTOR
QUE A GUERRA VAI ACABAR
No mês passado, a antropóloga Alba Zaluar, especialista em violência e segurança pública, assistiu o videoclipe de Isso Aqui é uma Guerra, que está disponível na internet. “Fiquei horrorizada, paralisada”, comentou. “Não dá para construir uma saída para os destruídos com o ódio e a destruição daqueles que não podem ser responsabilizados pela destituição.”
Alba Zaluar, autora de Integração Perversa, livro sobre violência e tráfico de drogas, é professora no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Faz tempo que ela implica com o rap. Mais precisamente desde os anos 1990 quando ouvia, em rádios de ônibus que a levavam para o campus de Stanford, na Califórnia, os ofensivos palavrões do rap americano.
“Devido ao poderio americano, o hip-hop é um fenômeno mundial”, ela diz. “Os rappers levam problemas que são de lá, de relações raciais de lá, relações de classe de lá, dos Estados Unidos, para o resto do mundo.” Ela diz que as letras dos rappers estão em franca contradição com o estilo de vida deles: “Eles ganham muita grana, são considerados uns coitadinhos, mas não são. Coitadinhos são os que ouvem, e que querem ter a mesma roupa, os mesmos tênis.” Alba Zaluar considera que, para a formação de uma sociedade democrática, a violência verbal do rap é perniciosa, “porque vai no sentido oposto da civilidade”.
As letras do Facção Central e de outros grupos de rap tratam as mulheres com hostilidade. Afora as mães sofredoras de filhos criminosos, que são quase santificadas, sobra para as outras a acusação de serem “vadias”, “putas” ou “madames” ricas, que merecem sofrer:
VOU DERRETER COM COCAÍNA
O FILHO DA MADAME
MORTE PRA PUTA OSTENTANDO
NA CARA SUA GARGANTILHA
SEU SORRISO CLAREADO A LASER
PELO DENTISTA
PRA VACA ESTRESSADA
É SEMANA NO SPA
Taddeo explica que não é ele quem fala na música, mas os personagens que cria, com cenários e narrativas ficcionais. Se o narrador é um assaltante de banco, falará como um. Se é uma vítima de seqüestro, fará esse discurso. Se é um bandido arrependido pedindo perdão à mãe, o melodrama cresce.
Dum-Dum e Taddeo continuam distantes entre si, e não trocam uma única palavra mesmo diante dos fãs, a quem recebem, sem nenhuma pressa, nos finais dos shows. “Eu quero que os manos ouçam a Facção e saiam da trilha do crime, que não compensa”, diz Taddeo. “Eu quero que eles se afastem das drogas”, fala Dum-Dum. Ele é daqueles manos sossegados, sangue bom, de várias fitas e firmas, que cultiva a idéia de que a maconha não é exatamente uma droga do mal, como a cocaína e o crack.
Na dissertação de mestrado As Mensagens sobre Drogas no Rap: Como Sobreviver na Periferia, defendida na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Vinicius Gonçalves Bento da Silva analisou onze letras de nove grupos de rap, entre eles o Facção Central. Ele concluiu que os rappers são mais tolerantes com a maconha, comparativamente ao crack e à cocaína. Dum-Dum pertence a essa categoria.
São quase duas horas da madrugada de domingo. Está mais do que claro que Taddeo e Dum-Dum, a dupla que dá forma ao Facção Central, têm uma relação pessoal de aversão controlada. Eles nem sequer se aproximam. Foi assim em Dourados, para cerca de 1 000 pessoas, e foi assim na cidade-satélite de Samambaia, no Distrito Federal, uma semana depois. A hostilidade envolve questões familiares, contrariedades de Taddeo e Fátima (que não usam drogas nem bebem álcool) com a turma da maconha, e divergências sobre a partilha do dinheiro. Grosso modo, de 5 000 reais que entram, limpos, por show, 1 500 reais são divididos entre os seis auxiliares. A parte do leão é repartida ao meio entre Taddeo e Dum-Dum. Mas o primeiro acaba ganhando mais, pelos direitos autorais sobre as canções que escreve. Se Dum-Dum reclama disso, o cunhado que reclama que sola mais músicas durante os shows, e que, por isso, deveria levar mais algum. A tensão envolve as famílias de ambos. As mulheres de um e outro também não se falam. Dum-Dum não comenta o assunto. Taddeo limita-se a dizer que “o que importa é a convivência profissional, e essa nós levamos a sério”.
“No rap sangrento, o Facção é o melhor grupo do Brasil”, avalia o DJ Erick 12. Ele opina na condição de ter integrado a banda, de ser o autor dos samplers na maior parte das letras de Taddeo, e em ser um dos mais ativos produtores do rap paulista. Em seu estúdio, na Vila Mariana, pequeno, mas dotado de um equipamento de som atualizado, Erick Cohen, paulistano da Mooca, 28 anos, branco e de trancinhas rastafári, grava boa parte dos novos grupos de rap, que se multiplicam com velocidade.
Cohen saiu do Facção por questões particulares e por divergir do extremismo das letras de Taddeo. “Sou contra fazer a revolução matando os playboys”, diz. Já Eduardo Taddeo diz que ele se afastou por não ter tempo de se dedicar ao grupo. Cohen continua a ser o produtor musical do Facção Central. Seu nome aparece nas capas menos do que deveria ─ já que quase todas as bases rítmicas são criadas e recriadas por ele ─, mas, no rap, parece ser unânime que todos aceitem que o mais importante é o que se diz. “O Eduardo não arreda pé dessa ideologia sangrenta, porque acha que é ela que faz o diferencial e que traz o sucesso”, analisa. “Se é positivo ou não, vai do ponto de vista de cada um.”
Por ser bem-humorado, e não fazer cara de mau, Cohen é uma raridade quase que absoluta na cena hip-hop de São Paulo. Ele acredita que o movimento só tem sentido se afastar os jovens do crime e da droga. E faz piada com o estereótipo de uma parte dos manos, que descreve assim: “bicão, cenho fechado, cara de mau e gingado no andar”. Não tem essas características e, por não tê-las, já perdeu um cliente rapper que veio da Bahia. “Você é um tipo muito normal”, reclamou o mano baiano, antes de ir embora.
Frederico Oliveira Coelho, pesquisador de música nacional e DJ nas horas vagas, acha que letras como as de Taddeo trazem o “excesso de realidade”. Ele diz: “Suas representações são violentas, transgressoras, precárias e confusas porque seu cotidiano é violento, transgressor, precário e confuso”. Estudioso do funk e do hip-hop carioca, Fred, como é mais conhecido, é doutorando em Letras na PUC do Rio. Pode ser encontrado, alta madrugada, discotecando em baladas na Lapa. Ou em casa, navegando nos gigabytes de um acervo colossal de músicas. Ele prossegue: “Esse tipo de proposta musical e cultural ─ principalmente um rap engajado e pesado como o da Facção Central ─ redimensiona a forma como a população da periferia trabalha com a sua auto-estima. É o primeiro gênero musical de massa em que grupos excluídos rompem uma barreira cultural a partir de uma produção própria, e não de uma concessão que vem de fora”.
Essa “produção própria” muitas vezes promove misturas estranhas, como a de guerrilha com beisebol. Às voltas com a gravação independente de seu primeiro álbum ─ que se chamará Teremos Mais a Miséria que a Morte, um verso de Bertolt Brecht ─ o rapper estreante Gas-PA, do Rio, integra o Movimento Hip Hop Luta Armada, “um coletivo com recorte classista”, com estimada dúzia e meia de militantes, que se reúnem numa favela da Zona Norte. Sua camiseta tem a imagem de um fuzil com mira a laser, e traz uma mensagem contra as armas. O boné, vermelho, combinando com os tênis, tem as letras L e A à testa. “São as iniciais de luta armada”, brinca. Na verdade, o boné é do time de beisebol americano Los Angeles Dodgers.
O rapper traz, no ombro direito, uma tatuagem de Carlos Lamarca, com o lema do capitão: “Ousar lutar, ousar vencer”. No braço esquerdo, tem a imagem de Angela Davis, militante dos Panteras Negros americanos, nos anos 1960. Coerentemente com tudo isso, ele não gosta de declinar seu nome verdadeiro, que, diz, estão nas iniciais PA. Passou dificuldades na infância e na adolescência, esteve a um passo do crime, mas conta que foi salvo quando assistiu ao show do Public Enemy, com os Racionais, em 1991. “Mudou completamente a minha cabeça”, diz Gas-PA. O primeiro rap que compôs chama-se “Abalando as Estruturas Globais”. O que faz mais sucesso é “Cotidiano do Desemprego”, que, conta, “já fiz muito maluco chorar”. Gas-PA, que é negro e tem 1,90 metro de altura, trabalha numa ONG educacional, e mora em Costa Barros, na Zona Norte do Rio. Ele diz que o tempo que leva para fazer uma letra “depende da carga de ódio que esteja acumulada no meu coração”. Ele é fã do Facção Central, “porque eles aprofundaram a questão da luta de classes e delimitam uma fronteira clara entre oprimidos e opressores”.
Mandrake tem esse apelido porque é mágico amador e coleciona, além de bonés e bolas de bilhar, dados e baralhos. Rapper e editor do site Rap Nacional, ele se chama William Domingues, tem 25 anos e mora na periferia de Osasco, num quarto, sala e cozinha no fundo da casa dos pais. Ele calcula que existam 200 grupos de rap só na cidade de São Paulo. “O que mais tem no rap é pilantra querendo fazer dinheiro e arrancar dinheiro”, diz. Branco, olhos verdes, forte e careca, Mandrake se veste com o figurino do movimento: tênis bem conservados, bermudas-balão, tatuagem (“rap nacional”) no braço direito, camiseta larga. “Eu defino o rap como Revolução Através das Palavras”, diz. “A revolução é afastar os jovens do crime, mostrando que esse caminho leva a um fim trágico.”
Um coro de uns 2 000 manos e minas, parte careta e parte movida à maconha e/ou cocaína e/ou álcool, esquenta a madrugada fria num ginásio de Samambaia, no Distrito Federal:
A ARMA É UM ENGENHO MECÂNICO,
DEPENDE DA AÇÃO HUMANA
SÓ NO BRASIL TEM DISPARO ACIDENTAL
TODA SEMANA.
A VIDA É RINHA DE PIT BULL,
ONDE POODLE NÃO SAI VIVO
FOCO DE INCÊNDIO ONDE NÃO CHEGA
A ESCADA MAGIRUS
No palco, com um telão central e dois laterais, Eduardo Taddeo, Dum-Dum, Smith e Arias cantam, dançam, movimentam-se a toda. Na hora do refrão iracundo de “Cartilha do Ódio” ─ “Deita, porra, quero dólar brilhante gargantilha…” ─, o coro sobe de tom. Nas caras e bocas das centenas de fãs que se aglomeram perto do palco ─ onde seis seguranças de terno estão postados, atentos ─ a poesia de Taddeo adquire poderes catárticos. Alguns e algumas, em esgares, ritos e olhares bandidos parecem, realmente, estar assaltando e matando o milionário que as rimas execram.
O Facção toca doze músicas no maior pique, sem parada e sem bis. Nunca há aplausos como num show comum. Apenas gritos e, às vezes, urros. Meninas se esticam para tentar tocar nos quatro. Smith é quem provoca mais gritinhos. Dum-Dum, de longe, é o que dança com maior expressividade, traduzindo as letras num gestual felino. Seus braços e mãos viram armas, tiros, drogas. Suas pernas simulam chutes de policiais e de bandidos. Eduardo Taddeo canaliza toda a sua energia para a emissão dos versos que ele escreveu. A música que fez mais sucesso ─ cantada com vontade pela grande maioria da platéia ─ foi “Desculpa, Mãe”, do CD A Marcha Fúnebre Prossegue, de 2001. Sua execução foi antecedida por imagens que Fátima projetou nos telões: as de um filme em que um filho espanca a mãe quando constata que ela encontrou a droga que escondia em casa:
TODO NATAL VOCÊ SOZINHA
E EU NA BALADA
BANCANDO VINHO, FARINHA
PRAS MINA DA QUEBRADA
DESCULPA MÃE PELA DOR
PELA GLOCK NA GAVETA,
PELO GAMBÉ PULANDO A JANELA
As minas e os manos deliram: idéia de mil grau, o bagulho é maluco, várias fita, firmeza no proceder, iiisshhh, tá pampa!