ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O passado tem futuro
Como atua um corretor de imóveis do tempo da onça
Consuelo Dieguez | Edição 51, Dezembro 2010
O economista Carlos Lessa apontou a bengala chinesa para o conjunto de casas do século XIX, todas tinindo de novas, traçou uma linha imaginária de uma ponta a outra do quarteirão e exclamou sem modéstia: “Eu sou o rei daqui!” Impecável numa calça bege, blazer quase do mesmo tom, camisa azul e suspensórios vermelhos, Lessa, carioca de 74 anos, cabeça inteiramente branca e modos cavalheirescos, parecia vir do mesmo século do casario da Rua do Rosário, no Centro do Rio.
Com o andar compassado, seguiu pela estreita calçada de pedra contando a história de cada sobrado. “Aqui, entre a Primeira e a Segunda Guerra, funcionou um dos prostíbulos mais famosos da cidade”, disse com ar maroto, indicando a casa azulada onde hoje há uma pizzaria. “Pertencia a uma tal Madame Lili, uma cafetina de alto nível, e era frequentado por políticos e homens de negócios.” Lessa tomou conhecimento do histórico libidinoso do prédio ao comprá-lo, há alguns anos, das herdeiras, duas velhas senhoras paulistas que ficaram chocadas ao saber do interesse dele: “Mas o senhor quer comprar aquele puteiro?”, perguntaram-lhe, como se o problema não fosse o fato de o casarão estar perfeitamente esbodegado.
Quando adquiriu o prédio, Lessa tinha um projeto em mente: restaurar todo o quarteirão da Rua do Rosário e dar uso comercial aos imóveis. “Era uma tristeza ver esses belos sobrados caindo aos pedaços.” O gosto pela restauração começou quase por necessidade. Por um problema alérgico de sua mulher, ele precisou de um local onde abrigar sua biblioteca de mais de 20 mil livros, então instalada no terceiro andar do casarão deles no bairro do Cosme Velho. “Tinha de ser perto de casa”, disse. “Eu não queria ficar longe dos meus livros.” Lessa descobriu dois imóveis aos cacos no topo de uma ladeira, com uma vista estupenda do Cristo Redentor, e os restaurou. Um deles recebeu a biblioteca. No outro mora um filho do casal.
Ele tomou gosto pela coisa. Feito um arqueólogo, saiu à cata de novas ruínas. Não precisou ir muito longe. Um sobrado do século XIX numa vila na Praia do Flamengo, propriedade da família, foi o primeiro a passar por reforma. Lessa comprou a casa do lado e a reconstruiu. Transformou-as em apartamentos duplex. Num deles mora seu irmão com a família. O outro ele aluga. “Queria comprar a vila inteira para restaurar, mas ninguém quer vender”, diz ele, contrariado com a fachada desfigurada das casas vizinhas.
Lessa voltou o ímpeto restaurador para a Rua do Rosário. Ali, sua família também era dona de um sobrado em petição de miséria. Como só restava a fachada, ele teve a ideia de rechear o imóvel com mezaninos em ferro e madeira. No teto, abriu uma gigantesca claraboia para permitir a iluminação de todo o prédio. Logo apareceu um comerciante, amigo de longos anos, interessado em alugá-lo. O espaço foi ocupado por um sebo e um restaurante árabe.
Animado com o sucesso do empreendimento, Lessa comprou o casarão do lado, fez uma obra parecida e hoje o local hospeda um bistrô e uma padaria que fabrica pães especiais. No final de 2005 ele já arrematara todos os prédios da rua, isto é: todos menos um, pertencente à Beneficência Portuguesa, que, impávido na sua decadência, continua a atrapalhar a harmonia do conjunto. Na esquina, um sobrado rosa abriga um restaurante português; os dois andares de cima foram alugados para um escritório de advocacia.
O capital inicial para o negócio veio da venda de uma casa da família na Lagoa. O aluguel dos imóveis restaurados viabiliza a aquisição de novos prédios. O preço de um imóvel desses, em estado terminal, gira em torno de 70 mil reais, mas os gastos com a restauração podem ser dez vezes maiores, dependendo do tamanho. O aluguel dos casarões, garante o economista, torna o negócio rentável. O problema é que, quando começa a restauração, os imóveis em volta se valorizam, dificultando novas aquisições.
A passo mais célere, Lessa caminhou pelo entorno do seu reino brandindo a bengala para as melhorias que vêm sendo feitas na região. Nas estreitas ruelas ao redor, empresários também investiram na recuperação de sobrados. A área se transformou num pequeno polo gastronômico.
Seu projeto ganhou fôlego quando a prefeitura, no final dos anos 90, baixou uma lei que vetava a demolição do casario do século XIX no centro da cidade. Do século XVIII, sobrara tão pouco que ele nem levou em conta. “Quando dom João VI e a família real chegaram aqui, em 1808, o Rio tinha apenas 25 mil habitantes. Só então a cidade se desenvolveu, e por isso a maior parte das construções é do século XIX. As do século anterior, além de poucas, já haviam sido praticamente dizimadas.” Lessa acabou liderando um movimento para que esses imóveis ficassem isentos de IPTU. Conseguiu. “A restauração é muito cara. É preciso dar um incentivo a quem se disponha a recuperá-los.”
Desde que se aposentou da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Lessa, nacionalista ferrenho, identificado com o pensamento de esquerda dos anos 50 e 60, tem tido mais tempo para se dedicar à nova atividade. “Estou me divertindo muito”, ele diz. Mais recentemente, comprou três casarões no Catete e agora termina as restaurações. Um deles, de dois andares, já está com o aluguel fechado. No térreo funcionará um restaurante de frutos do mar. O andar de cima será a filial de um famoso botequim carioca, com pista de dança e palco para shows.
O outro prédio vai se tornar um salão de bilhar. “A sinuca é um dos passatempos mais tradicionais do carioca. O salão onde eu jogava na adolescência funciona até hoje”, conta. É ele quem geralmente escolhe os inquilinos. Faz uma seleção dos projetos mais interessantes e aluga a quem proponha a atividade mais atraente para o local. Para o bilhar, ainda não há candidatos, mas Lessa tem certeza de que logo aparece a pessoa certa. O próximo passo será comprar um prédio para instalar um boliche. Sem possibilidade de erro, a bengala se ergue: “O Catete vai ficar espetacular!”