“Tenho cliente de Volta Redonda, Barra Mansa, Teresópolis. É negra, branca, morena, tudo que é cor aqui na minha laje. No mês que vem, tem uma excursão de vinte pessoas do Espírito Santo”, diz a esteticista Erika Martins FOTO: BRUNO POPPE_2016
À procura da marquinha perfeita
A laje de Realengo que fabrica bronzeadas em série
Roberto Kaz | Edição 122, Novembro 2016
“Traz mais um bumbum aqui”, ordena a esteticista Erika Martins – a Erika Bronze – na primeira semana do horário de verão. São dez da manhã de uma terça-feira ensolarada, e sua laje, no subúrbio carioca de Realengo, já está apinhada de mulheres seminuas, besuntadas em óleo. Metade frita com as ancas pra cima, metade frita com as ancas pra baixo. O novo bumbum – o 31º do dia – se apresenta. Pertence a uma loura na faixa dos 40 anos, moradora da Barra da Tijuca, que lá chegou por indicação de sua secretária.
“Asa-delta ou fio dental?”, pergunta Martins, enquanto a loura se despe atrás de um biombo. A opção pelo formato menos recatado faz com que a esteticista seja tomada pela verve dos grandes alfaiates. Ela agarra um rolo de fita isolante preta e passa a colar tiras no quadril, na virilha, nas costas e nos seios da loura, formando, em cinco minutos, o desejado biquíni fio dental. “Andressa, ela vai queimar mais de bumbum, tá? A frente tem que ser com protetor solar”, explica a uma assistente, antes de se voltar ao grupo que a aguarda: “Próxima!”
Erika Martins é pequena, igualmente loura e dona de uma voz estridente. Mora com o marido e três filhos logo abaixo da laje onde trabalha. Ingressou no ofício do bronzeamento aos 15 anos, quando vivia com a bisavó na comunidade de Vila Aliança, em Bangu, Zona Oeste do Rio. “A praia mais próxima, Barra de Guaratiba, fica bem longe. As amigas iam, mas, como eu não tinha dinheiro, acabava tomando sol na laje de casa”, relembrou. Enquanto torrava, refletia sobre o sentido capital de ir à praia, chegando à conclusão irrefutável: a praia em si importa pouco; o que realmente interessa é a marquinha de sol que resulta da praia. Se a batalha era essa, que a enfrentasse com a melhor arma disponível no mercado – a fita isolante preta, que bloqueia a luz. “O esparadrapo é cultura de favela”, explicou. “Meu diferencial é que sei desenhar a marquinha perfeita.” Passou a oferecer o serviço a 30 reais. Sete anos depois, deixou a casa da bisavó e, ainda em Bangu, realizou o sonho da laje própria.
O divisor de águas, no entanto, ocorreu em 2013. Foi quando Martins comprou o imóvel atual, em Realengo, que se localiza perto de uma estação ferroviária. “Aqui não tem comunidade, então veio mais gente de outros bairros”, contou. “Até porque, na época, tinha voltado esse negócio de arrastão na praia.” Com a demanda crescente, cunhou o nome artístico – Erika Bronze – e passou a publicar fotos da clientela para os milhares de pessoas que a seguem nas redes sociais. Sua imagem de capa no Facebook mostra seis bundas anônimas, alinhadas em simetria militar. A do Twitter mostra doze.
Pouco tardou para que viessem as celebridades (Mulher Melancia, Mulher Filé, Gari Gata, Jady Bolt, Tati Quebra Barraco) e as reportagens na mídia popular (Extra, O Dia, Ego, TV Fama). Prestigiada, a laje começou a receber mulheres e transexuais de toda parte, que peregrinavam à Meca do Bronzeamento em busca da marca prometida. “Tenho cliente de Volta Redonda, Barra Mansa, Teresópolis. É negra, branca, morena, tudo que é cor aqui na minha laje. No mês que vem, tem uma excursão de vinte pessoas do Espírito Santo. Devem sair de lá à meia noite, chegar às sete da manhã e ficar até quatro da tarde”, jactou-se, para horror da Sociedade Brasileira de Dermatologia, que não recomenda exposição entre 10 e 16 horas.
Ela trabalha de segunda a segunda, das seis e meia da manhã à uma da tarde, contanto que haja sol. Cobra 70 reais nas duas primeiras sessões e 50 pelas subsequentes, que podem ser semanais ou mensais. O valor, depositado com antecedência, dá direito a biquíni de fita, bronzeador, protetor solar, hidratante e água. “Se quiser, a cliente também pode dourar os pelos.” Como em casa de ferreiro o espeto é de pau, Martins acabou perdendo a própria marquinha. “Não tenho tempo de fazer”, justificou. Em compensação, diz ter embolsado 55 mil reais só no último inverno. “No verão deve dar mais.”
A laje de Erika Bronze é um misto de Piscinão de Ramos, quadro de Di Cavalcanti e linha de montagem da Ford. O espaço, de uns 40 metros quadrados, abriga catorze espreguiçadeiras, doze cadeiras de praia e outras quatro de madeira. Cada tipo de móvel atende a um gênero específico de bronzeamento. Há suco para quem é de suco e cerveja com canudinho para quem é de cerveja com canudinho. Há também um pequeno chuveiro, um rádio que toca pagode e uma caixa d’água semiaberta, onde três assistentes uniformizados mergulham um regador, de hora em hora, para irrigar a clientela. “São minhas flores”, resumiu Martins.
Ela atribui o sucesso do negócio a seu tino profissional. “Não é só largar as clientes no sol”, disse. “Tem que olhar o tempo todo, molhar, dar água, fazer a manutenção do biquíni.” De fita isolante, são cinquenta rolos por dia. A confecção do vestuário também exige gaze (colocada sob o biquíni, para proteger as intimidades) e papel higiênico umedecido (colocado sobre o biquíni, para evitar que a fita isolante esquente e acabe queimando as intimidades).
O controle da linha de produção cabe à assistente Clebiana Fagundes, a Bibi, que anota o tempo de exposição ao sol recomendado para cada cliente. O protocolo da casa aconselha uma hora e vinte tostando de frente, uma hora e vinte de costas. Também é tarefa de Bibi renovar a demão do hidratante e do bronzeador – um creme roxo com betacaroteno, manteiga de pêssego, manga, cenoura e licopeno, fabricado por uma empresa chamada Max Cosméticos. “Esse bronzeador já uso há mais de oito anos”, afirmou Martins. “É aprovado pela Anvisa. E agora vai levar o meu nome. Tô abusada, vou virar marca.”
A esteticista permanece o tempo todo num espaço coberto, de 2 metros por 2, de onde rege sua orquestra de nádegas. “Fica mais reta, amor, senão vai estragar a marquinha”, grita de longe, para uma moça com a postura curvada. “Agora você vai mudar de cadeira pra trabalhar só o lado direito do corpo”, instrui outra. Às vezes, convoca algumas para um pit-stop. É quando avalia a cor da pele e reforça a fita isolante, que costuma afrouxar em função do suor. “Chama aquela que tem um pouco már de bumbum”, comanda, no carioquês selvagem que transforma “s” em “r”. “Acha que queimou bem, Maria? Deu pra dar uma acendida? Praia agora é só pra passear, né?” Maria concorda: “Praia agora é figuração.”
O relógio marca uma da tarde. Ainda há vinte mulheres na laje, quase todas tatuadas com nomes de filhos (Robert, Lorenzo, Stefany, Caio, Julia, Luciana) ou mensagens religiosas (“Livrai-me de todo mal, amém”). Uma moça de pele morena troca o biquíni de fita por um top branco, que faz transparecer a marquinha recém-conquistada. “Se o cartão de crédito dele tá sem limite por causa de tu, imagina agora!”, festeja a esteticista, satisfeita com o resultado do serviço. Outra moça, de pele mais clara, debutante na casa, se aproxima de Martins e ouve uma reprimenda: “Não pode passar do tempo na primeira sessão, pra eu conhecer a pele. Tuas costas ficaram um pouco vermelhas, né? Vai ter que botar hidratante gelado em casa.” Em seguida, a esteticista começa a tirar a fita da jovem, como um mágico a sacar um coelho da cartola. Maravilhada, exclama à plateia bronzeada: “Chegou branquela e olha a marquinha que ela tá levando hoje!”
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