A Grande Barreira de Corais da Austrália abriga uma fabulosa variedade de vida. Tem biodiversidade maior do que a de toda a Europa FOTO: CASSANDRA THOMPSON_CORTESIA DE ARC, CENTRO DE EXCELÊNCIA PARA ESTUDOS DE RECIFES DE CORAIS
O fim antes do fim
A maior barreira de corais do mundo vai mal ─ e já há quem a declare morta
Bernardo Esteves | Edição 122, Novembro 2016
“A Grande Barreira de Corais da Austrália faleceu em 2016 após longa enfermidade, aos 25 milhões de anos.” A notícia abria um artigo publicado em meados de outubro pela revista norte-americana Outside e provocou imensa comoção mundo afora. O obituário lamentava a morte do maior complexo de recifes da Terra – um magnífico ecossistema que se estende por 2 300 quilômetros no nordeste australiano e ocupa uma área semelhante à de Goiás. O aquecimento global e a acidificação dos oceanos seriam os causadores da tragédia.
No começo do ano, a Grande Barreira passou pelo mais desastroso processo de degradação já documentado. O fenômeno, conhecido como branqueamento, teria lhe desferido o tiro de misericórdia. Cientistas usaram helicópteros, aviões e mergulhadores para avaliar o tamanho do dano. Constataram que 93% dos recifes examinados haviam sofrido algum prejuízo. O ecólogo Terry Hughes, diretor de um instituto australiano que pesquisa os corais, notou que os trechos mais críticos pareciam ter enfrentado dez ciclones. “Foi a viagem de campo mais triste da minha carreira”, declarou na ocasião.
A nota fúnebre da Outside, assinada por Rowan Jacobsen, enfatizou que, ao norte da Grande Barreira, o branqueamento resultou na morte de metade dos corais. O jornalista não apresentou, porém, a parte cheia do copo: levando-se em conta o complexo inteiro de recifes, a mortalidade observada foi de 22%. Assim, a maior parte dos corais (78%) permanece viva, ainda que em condições precárias.
Compartilhado 1,42 milhão de vezes, o obituário acabou colocando a Grande Barreira entre os assuntos mais discutidos nas redes sociais. A publicidade súbita despertou sentimentos ambíguos nos biólogos e ambientalistas. Para alguns, o texto passava a mensagem de que não havia mais o que fazer pelo ecossistema. Já a autoridade australiana encarregada de preservar o complexo declarou que as notícias de sua morte eram “falsas e irresponsáveis”.
A editora-executiva da Outside, Axie Navas, explicou que ninguém deveria ler o necrológio como uma reportagem, e sim como uma peça satírica – embora não haja no artigo nenhum rastro da ironia que caracteriza o gênero. “Queríamos mostrar o quanto a situação da Grande Barreira é terrível”, escreveu num e-mail. “Ficamos contentes que a matéria esteja dando o que falar.”
Muitos compraram a nota de falecimento pelo valor de face. Usuários do Twitter lamentaram que nunca poderão mergulhar nos famosos recifes. Em mensagens trocadas por pesquisadores de corais, um professor contou que nenhum de seus alunos que leram o obituário percebeu estar diante de uma sátira.
A Grande Barreira abriga uma fabulosa variedade de vida. Segundo o artigo de Jacobsen, encontram-se ali nada menos que 1 625 espécies de peixes, 3 mil de moluscos, 450 de corais e 30 de cetáceos – uma biodiversidade maior que a de toda a Europa.
O ecossistema é um amálgama dos reinos animal, vegetal e mineral. Os próprios corais construíram a estrutura calcária que dá suporte ao complexo. Esses animais vivem em associação com algas microscópicas, que não só produzem energia para a subsistência de ambos como lhes conferem as cores exuberantes. Sozinhos, os corais são transparentes.
Mas as algas têm um metabolismo muito sensível à temperatura. Quando a água esquenta, começam a produzir compostos tóxicos para os corais e são expulsas por eles, que empalidecem em consequência disso (daí o processo chamar-se branqueamento). Caso a temperatura baixe e os corais se associem a outras algas, talvez sobrevivam; do contrário, estão condenados. Um aumento de 1ºC na temperatura aquática basta para desencadear o estrago.
Três branqueamentos já acometeram a Grande Barreira desde o final do século XX. O aumento da frequência de eventos como esse é exatamente o que se espera num cenário de aquecimento global. Em 2016, o risco cresceu por causa do fenômeno El Niño, que aqueceu ainda mais os oceanos tropicais.
Um relatório lançado em setembro pela União Internacional para a Conservação da Natureza, a IUCN, revelou um dado alarmante: os mares estão concentrando a maior parte da energia extra que o planeta acumula em razão do efeito estufa. Se a mesma quantidade de calor que foi parar nos oceanos tivesse permanecido na parte baixa da atmosfera, especularam os autores, a temperatura média da Terra teria subido inacreditáveis 36ºC.
O biólogo marinho sueco Carl Gustaf Lundin, diretor da IUCN, ressaltou que os corais estão à beira do colapso. “Eles poderiam se adaptar e sobreviver em águas mais quentes caso a evolução tivesse tempo o bastante para agir. Mas a velocidade com que tudo vem acontecendo torna a mudança bem difícil”, disse o cientista à piauí no lançamento do relatório.
Não espanta que tanta gente tenha levado o obituário a sério: a sátira é plausível demais. “Claro que os corais estão em declínio, só que não é hora de escrever epitáfios”, afirmou o oceanólogo Rodrigo Leão de Moura, que estuda recifes na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Se não morreu, a Grande Barreira estaria na UTI? “Ela é como um paciente com câncer. Existe a chance de metástase, mas a doença ainda pode ser tratada”, comparou. O especialista sublinhou a importância das ações de conservação. “Estudos mostram que recifes explorados de maneira sustentável são mais resistentes ao estresse climático.”
Também está ao nosso alcance diminuir a emissão na atmosfera dos gases que provocam o efeito estufa. Em 2015, representantes de 195 países saíram da inércia e deram um passo importante nesse sentido graças à assinatura do Acordo de Paris, que entra em vigor no dia 4 de novembro com a adesão dos principais emissores mundiais.
Ocorre que as ações anunciadas contra o aquecimento global ainda estão longe de manter o aumento da temperatura média abaixo de 2ºC em relação ao fim do século XIX, objetivo do pacto. Com as promessas colocadas na mesa, os oceanos devem ser profundamente afetados nas próximas décadas. Se a ambição das metas não aumentar, o último suspiro da Grande Barreira de Corais será apenas uma questão de tempo.
Leia Mais