A iguaria criada por Delligatti trazia uma terceira fatia de pão, entre as carnes, para acomodar o queijo, a cebola, os picles e o molho especial FOTO: MCDONALD'S
O rei do lanche
Glória sem pecúnia para o inventor do Big Mac
Roberto Kaz | Edição 124, Janeiro 2017
No último dia 28 de novembro, quando completou 63 anos, Don Gorske recebeu uma carta celebratória do Guinness Book. Em vez de cumprimentá-lo pelo aniversário, a publicação celebrava o fato de o americano aposentado continuar sendo o Homo sapiens que mais devorou Big Macs no mundo – um recorde que não para de ser quebrado uma vez que Gorske segue devoto do famoso sanduíche (já comeu cerca de 29 mil deles). Por ironia do destino ou do acaso, aquela segunda-feira também acabaria marcada pela morte, aos 98 anos de idade, de Michael James Delligatti, justamente o inventor do Big Mac.
Nascido na Pensilvânia, Delligatti se rendeu à baixa gastronomia após lutar na Segunda Guerra Mundial e ir para reserva como sargento. Inaugurou seu primeiro restaurante, o drive-in Delney’s, em 1953, na cidade de Pittsburgh, uma das maiores de seu estado natal. Quatro anos mais tarde, presenteou a população de lá com uma franquia do McDonald’s, lanchonete que surgira na Califórnia durante a década de 40.
Embora a empreitada tenha dado certo, Delligatti logo percebeu que faltava à rede uma pièce de résistance. Se o objetivo era destronar o concorrente Burger King, cujo sanduíche Whopper exercia fascínio indiscutível sobre as papilas gustativas norte-americanas, estava na hora de criar uma bomba calórica com igual poder de fogo. Em 1965, quando já comandava mais de dez filiais, Delligatti pediu à matriz que o autorizasse a pespegar uma segunda fatia de carne nos sanduíches. A ideia – destemida, aventureira, ousada (quanto mais carne, maior o preço) – amargaria dois anos no limbo até ser aprovada.
O Big Mac acabaria estreando em caráter experimental no dia 22 de abril de 1967, um sábado, numa única lanchonete de Pittsburgh. Além do hambúrguer duplo, a iguaria trazia uma terceira fatia de pão, entre as carnes, de maneira a criar um eixo gravitacional entre o queijo, a cebola, os picles e o molho especial (sem o pão extra a gororoba escorria para todos os lados feito barranco depois da chuvarada). “Não é que eu tenha descoberto a lâmpada”, diria Delligatti anos depois, no livro McDonald’s: A Verdadeira História do Sucesso, escrito por John F. Love. “A lâmpada já estava lá. Tudo o que fiz foi enroscá-la no soquete.” Em 1968, sua invenção chegaria a todas as filiais da rede.
A partir daí, por coincidência ou não, o McDonald’s voou em céu de brigadeiro e passou a ser um termômetro fiel da geopolítica dos Estados Unidos. Para onde se expandissem os interesses do país, lá também haveria uma embaixada calórica encimada por um M amarelo sobre fundo vermelho. O Big Mac começou a ser vendido na América Latina, na Oceania, na Europa, na África e na Ásia (na Índia, onde a vaca é sagrada, disfarçou-se com carne de frango e legumes). Em 1986, virou indicador financeiro: a revista inglesa The Economist o adotou como parâmetro para comparar o custo de vida ao redor do planeta (Big Mac mais caro: Suíça; Big Mac mais barato: Ucrânia; posição do Brasil: 4º na lista dos mais caros). E em 1990, meses após a queda do Muro de Berlim, o sanduíche selou a debacle do comunismo quando um McDonald’s abriu as portas em Moscou.
Delligatti, porém, não recebeu um centavo pela autoria da obra. A matriz o honrou com uma placa e nada mais. Ele permaneceu na Pensilvânia, inaugurando novos McDonald’s, enquanto sua cria alcançava cifras astronômicas mundo afora (são 900 milhões de Big Macs vendidos por ano, ou 29 por segundo). Em 2007, a invenção chegou ao quarto decênio e Delligatti achou por bem homenageá-la. Construiu em Pittsburgh o Big Mac Museum Restaurant, curiosa mistura de museu com fast-food, onde o comensal pode se empanturrar enquanto aprecia a escultura em resina de um sanduíche gigante.
Don Gorske, o recordista, fez apenas uma visita ao museu-restaurante. Comeu, por óbvio, um Big Mac – hábito que cultiva desde 17 de maio de 1972, quando seu palato descobriu a cria de Delligatti. Daí em diante, Gorske passou a ingerir religiosamente dois sanduíches por dia, no almoço e no jantar. “O Big Mac era e continua sendo a melhor comida do mundo”, afirmou à piauí, por telefone. “Na infância, eu já gostava de hambúrguer. Ao me deparar com o hambúrguer duplo, foi perfeito. Noventa por cento da minha dieta sólida se baseia nisso.” Nos últimos 45 anos, o aposentado – que é magro e não apresenta problema de colesterol – só deixou de comer o sanduíche oito vezes.
Ele nunca chegou a conhecer Delligatti, embora os dois tenham conversado por telefone. “Certa ocasião, uma rádio fez uma entrevista conosco. Pareceu um cara legal.” Gorske soube de sua morte na quarta-feira, 30 de novembro. “Normalmente, vou ao McDonald’s na segunda e compro seis Big Macs. Depois, volto na quinta e compro mais oito”, explicou. “Guardo no congelador e aqueço no micro-ondas antes de cada refeição.”
Era o que teria feito naquela triste quarta-feira, não exigisse a data certa solenidade. Ao abrir a geladeira, viu-se dividido entre a lealdade que devia ao Big Mac guardado e o desejo de ir ao McDonald’s preferido, um dos três de Font du Lac, a pequena cidade onde mora, no estado de Wisconsin. Imprimiu uma notícia sobre a morte de Delligatti e acabou tomando o rumo da lanchonete. Lá chegando, encomendou dois Big Macs – o 28 983º e o 28 984º de sua peculiar dieta – e os levou até sua mesa cativa, localizada à sombra de um retrato em que ele, Gorske, veste uma camisa com a imagem do sanduíche de estimação.
Sentou-se. Com uma das mãos, segurou a notícia que exibia uma foto de Delligatti. Com a outra, empunhou um dos Big Macs recém-tirados da chapa. Pediu, então, que alguém o fotografasse. “Graças a esse cara adquiri um hábito que adoro”, explicou, dias depois. “Se não existisse o Big Mac, o que eu estaria comendo?” Pretende enquadrar a foto e colocá-la em seu escritório.
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