ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Fim do revezamento
Um aplicativo para contratar goleiros
Paula Scarpin | Edição 125, Fevereiro 2017
Felipe Souza chegou suado e orgulhoso em casa. Mal abriu a porta, escutou a mulher dizer do sofá: “Que tal parar de gastar dinheiro com futebol e começar a ganhar?” O paulistano tremeu. Até aquele momento, nunca cogitara que as extravagâncias bissextas de sua persona de goleiro, como luvas e joelheiras, pudessem comprometer o orçamento doméstico. Acuado, esboçou uma justificativa: aos 36 anos e com uma barriguinha de marido, nenhum time profissional se interessaria por ele. Nem teve tempo de terminar o argumento, e a mulher o interrompeu: havia visto na internet o anúncio do aplicativo Goleiro de Aluguel, que, pelo jeito, era uma espécie de Uber futebolístico.
O serviço se baseia na premissa – consenso entre peladeiros – de que o arqueiro é o patinho feio do escrete. Souza está aí para provar: quando joga, não divide os gastos com a reserva da quadra nem precisa pagar a cervejinha. Ser goleiro já é ônus suficiente. Ele frisa que, em outras equipes amadoras, os jogadores chegam a se revezar na posição inglória, já que ninguém quer ocupá-la definitivamente. Com certeza, tais mártires não hesitariam em desembolsar um trocado para se livrar do sacrifício. A ideia do aplicativo é justamente unir as pontas de oferta e demanda. Definidos os horários e os locais das partidas, os times cadastrados podem publicar anúncios requisitando goleiros ou convocar usuários específicos. Como o desempenho de cada atleta é avaliado após os jogos, os que recebem nota mais alta costumam ser mais requisitados.
Quando ouviu a mulher discorrer sobre as vantagens do aplicativo, em outubro passado, Souza reagiu com ceticismo. Ao longo da vida, penara um bocado para tirar o futebol do escaninho “motivos de frustração” e botá-lo no arquivo “fontes de prazer”. Amargou a primeira ducha de água fria na infância, uma vez que o gol não era sua opção preferencial. “Todo menino sonha em virar atacante, né? Caso não tenha destaque, se vê obrigado a recuar para o meio de campo e depois para a zaga, até parar embaixo da trave”, explica.
Contrariando suas próprias expectativas, Souza se deu tão bem na posição execrada que, aos 9 anos, passou a ser disputado nas escalações do colégio. “O bom goleiro fica popular porque faz um trabalho que ninguém quer”, sentencia. O prestígio acabou alimentando seu desejo de jogar profissionalmente. Veio, então, o segundo baque. Como tantos meninos bons de bola, ele viveu o trauma de perceber que seu talento não bastava para driblar a concorrência. Chegou a integrar o juvenil do Corinthians e convenceu os pais a bancá-lo por cinco meses em Belo Horizonte, treinando no sub-20 do Cruzeiro. Aos 16 anos e sem nenhum tostão proporcionado pelo esporte, desistiu. “A gente tem que saber a hora de parar”, sentencia novamente, agora com um suspiro.
Ele, porém, nunca abandonaria o futebol. Os jogos aos domingos com os amigos viraram lei e o converteram num verdadeiro militante do “goleirismo”. Educador num orfanato, confessa fazer o que pode para aliciar meninos. Sempre que garimpa um interessado em trajar as odiadas luvas, trata de treiná-lo com afinco.
A remuneração proporcionada pelo Goleiro de Aluguel ainda não transformou Souza num Rogério Ceni: dos 30 reais que os contratantes desembolsam por hora de bola rolando, apenas 18 são dele. O resto vai para o aplicativo, que, além de reinvestir no negócio, promove ações filantrópicas. Mas o valor não parece importar. “Nunca pensei que, a essa altura da vida, pudesse ser pago para jogar”, comentou, numa quinta-feira de janeiro, pouco antes de encarar uma partida na Vila Guilherme, zona norte de São Paulo.
Souza é o goleiro de aluguel mais bem avaliado da capital paulista e, portanto, o campeão de convocações na cidade. Competitivo, pretende atingir o topo do ranking brasileiro, o que significa desbancar três curitibanos. Concebido no Paraná, o aplicativo é mais popular por lá. A ideia partiu de Samuel Toaldo, técnico de informática e goleiro amador, que criou uma página no Facebook para oferecer seus serviços defensivos. “Quando comecei a não dar conta de todos os jogos, cadastrei outros conhecidos. Só que agendava as partidas de maneira muito artesanal”, reconhece. Ele não esconde se espelhar bem mais no arqueiro espanhol Casillas do que em Mark Zuckerberg.
Como a demanda não parava de crescer, um dos cadastrados, o administrador Eugen Braun – que também passa longe do perfil de jovem empreendedor do Vale do Silício – enxergou futuro na iniciativa e propôs parceria. Em pouco tempo, a dupla precisou contratar dois programadores para desenvolver um aplicativo que facilitasse a distribuição dos atletas. Hoje, são mais de 5 mil goleiros e quase 2 mil contratantes inscritos no país inteiro, que se combinam em uma média de 213 partidas por noite.
Naquela quinta-feira de janeiro, um grupo de amigos da Vila Guilherme retomou as peladas semanais após o recesso de fim de ano. O empresário Eduardo Pires ouviu falar do Goleiro de Aluguel em meados de 2016 e logo espalhou a novidade pelo WhatsApp. “Galera, acabou o revezamento no gol!”, comemorou. Para cada pelada, os amigos convocam dois goleiros. Naquela noite, além de Felipe Souza, chamaram Ivan Dantas, que, apesar de ocupar o décimo primeiro posto no ranking nacional, foi o primeiro arqueiro que arregimentaram pelo aplicativo. “É um frangueiro, mas a gente gosta dele”, afirmou Pires, antes da partida.
Tão logo o embate começou, Souza percebeu que estava em maus lençóis. A equipe adversária não cessava de atacar. Enquanto Dantas se entediava na baliza oposta, o melhor goleiro da cidade desdobrava-se para neutralizar inúmeros lances perigosos. Quando viu a rede balançar pela terceira vez em apenas sete minutos, desabafou: “Queria trocar com o Ivan. Não vai uma bola ali…”
Pouco antes de os 90 minutos expirarem, Souza defendeu uma bomba. O contratante, que se hidratava com cerveja fora do campo, arregalou os olhos e festejou: “Boa, Felipe! Já valeu o cachê.”