ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Em nome do plástico
Um lobista no Vaticano
Paula Sperb | Edição 127, Abril 2017
“O que você achou dessa resposta?”, perguntou o empresário Jaime Lorandi, sentado num café do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, algumas horas antes de viajar para o Vaticano. Ele vinha repetindo a indagação a diversos interlocutores desde que recebeu uma carta improvável, assinada por ninguém menos que o papa Francisco. Cerca de 6 mil correspondências chegam semanalmente ao Sumo Pontífice. Por isso, Lorandi – um católico praticante de 56 anos – encarou o retorno papal como um pequeno milagre, ainda que as palavras do Santo Padre não lhe tenham agradado. O milagre, importante frisar, só se concretizou após muita persistência. Foram onze cartas enviadas à Cúria Romana pelo correio, sem nenhum feedback. O empresário decidiu, então, reclamar para o bispo. Deu certo.
Nascido em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, Lorandi é amigo do bispo da cidade, o italiano Alessandro Ruffinoni. Como ministro da eucaristia, ajuda o sacerdote nas missas dominicais da catedral, entregando a hóstia aos fiéis durante a comunhão. Depois de ouvir os argumentos do empresário sobre o assunto que pretendia levar ao papa, Ruffinoni os considerou “lógicos e teológicos”. Mandou, assim, uma correspondência de próprio punho a Francisco, com a reivindicação do ajudante em anexo.
A resposta veio em maio de 2016. “Mas ficou muito vaga…”, reclamou Lorandi naquele sábado de novembro, enquanto aguardava seu voo. Ele iria tentar um encontro com o Santo Padre para botar tudo em pratos limpos.
Estudioso do catolicismo, o empresário conhece profundamente as encíclicas, documentos em que o papa expõe a opinião da Igreja sobre os mais variados assuntos: da fé à ciência, dos costumes à economia. Em 2015, Francisco lançou a Laudato Si’, que ataca o consumismo e defende a preservação do meio ambiente. “É uma encíclica maravilhosa, excelente, coerente”, elogiou Lorandi, antes de revelar que “uma frasezinha” do texto o aborreceu. Encontra-se no parágrafo 211 – ao todo, são 246. O trecho incentiva comportamentos ecologicamente corretos, como “evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias…”.
“Epa!”, exclamou o empresário no aeroporto, tão logo mencionou a primeira das recomendações papais. “Evitar?! Não é uma boa palavra.” Presidente reeleito do Simplás – Sindicato das Indústrias de Material Plástico do Nordeste Gaúcho –, Lorandi tem motivos óbvios para se incomodar com o verbo. “Evitar significa negar, afastar-se de algo que é mau. Tipo ‘Evite o fumo’, ‘Evite fumar’. Dá a entender que o plástico é ruim.” Para ele, ruins são as pessoas que utilizam erroneamente o material. “Plástico polui? Não! Quem polui somos nós, seres humanos! Quando vejo toneladas de garrafas PET descartadas no mar, penso que poderíamos reciclar toda aquela matéria-prima. Se o fizéssemos, não precisaríamos extrair tanto petróleo, por exemplo.”
Com a repercussão negativa da encíclica no Simplás, o empresário resolveu redigir um artigo explicando que o plástico beneficia especialmente as classes mais baixas porque barateia a embalagem de inúmeros produtos. Ele chegou a afirmar que a “sacolinha plástica” é o “símbolo dos pobres” enquanto o ouro representa os ricos.
O texto provocou certo burburinho entre os associados do sindicato, o que motivou Lorandi a escrever ao pontífice. Na carta em português, ousou questionar um dogma da Igreja, a infalibilidade papal: “Santo Padre, sei que, na confecção de uma encíclica, Vossa Santidade cerca-se de muitas pessoas altamente qualificadas sobre o assunto a ser abordado. Porém, ao cercar-se de muitas pessoas de diferentes especialidades, é humanamente compreensível reconhecer que algumas expressões podem gerar diferentes entendimentos, incompreensões ou até divergências.” Num segundo momento de audácia, o missivista propôs que Francisco modificasse a Laudato Si’, fato sem precedentes na história. “Uma sugestão que faço respeitosamente como contribuição, a qual julgo ser coerente com o humanismo […] contido na Encíclica, é: no lugar de ‘evitar o uso de material plástico e papel’, colocar ‘reduzir o consumo de todos os materiais e dar destino correto aos materiais descartados, para serem reciclados e reutilizados’.”
Nove meses depois de remeter a primeira das cartas ao Vaticano, o empresário recebeu um telefonema do bispo Ruffinoni: “Vem aqui. Tenho uma surpresa para ti.” O papa finalmente dera sinal de vida. Na breve réplica, Francisco afirmava que o parágrafo 211 “tem de ser interpretado como um exemplo de comportamento responsável e aplicado com bom senso”. O Santo Padre também mandava uma “bênção apostólica” para o gaúcho. “O que você achou dessa resposta?”, indagou o destinatário ao bispo, sem imaginar que ainda repetiria a pergunta infinitas vezes. “É… Está um tanto subjetiva”, avaliou Ruffinoni.
Quando já pensava em entregar os pontos, Lorandi vislumbrou a oportunidade de encontrar o pontífice. No dia 17 de novembro de 2016, o papa falaria em Roma com 468 empresários cristãos do mundo inteiro, entre eles vinte brasileiros. O gaúcho mexeu os pauzinhos e arranjou uma vaga na audiência.
Mal retornou ao Brasil, Jaime Lorandi contou, na sede do Simplás, que conseguiu ficar a 15 metros de Francisco durante a reunião. Aos presentes, o Santo Padre enfatizou que deveriam se esforçar para “tornar os bens deste mundo mais acessíveis a todos”. “Bingo!”, pensou o presidente do sindicato. “O plástico ajuda muitíssimo a tornar os bens mais acessíveis, já que os barateia.” Parecia um sinal de que o gaúcho atingiria seu objetivo.
Só que não. Ele e o papa nem sequer trocaram um boa-tarde. Quem atendeu Lorandi foi um monsenhor, responsável por “assuntos civis” no Vaticano. Após conversarem, o empresário concluiu que havia recebido outra missão. “Apesar de ter lógica, minha carta expressa uma posição pessoal. Preciso atrair mais gente para a causa e alcançar um consenso mundial.” Sem perder a fé, já iniciou contatos com entidades brasileiras e latino-americanas que se ocupam do plástico. “É uma tarefa hercúlea, mas…”