O ex-ministro José Dirceu (acima) é um dos cerca de 20 mil brasileiros a ostentar o aparelho. Segundo o site Poder 360, só da Lava Jato são ao menos 26 monitorados. FOTO: FABIO RODRIGUES POZZEBOM_AGÊNCIA BRASIL
“A minha se chama Totó”
Relatos de quem tem no calcanhar as agora populares tornozeleiras eletrônicas - resistentes a banhos de rio e com bateria melhor do que a do iPhone 7
Dias depois de ganhar o benefício da prisão domiciliar, no início de maio, o ex-ministro José Dirceu passou a receber visitas em sua casa em Brasília. Em uma tarde recente, ele conversava com um amigo quando empurrou a cadeira na qual estava sentado para junto da parede e, sem interromper o papo, plugou um fio de tomada numa caixinha preta do tamanho de uma caixa de fósforo, presa logo acima de seu calcanhar. Era preciso dar uma carga na sua tornozeleira eletrônica.
Desde junho de 2010, quando foi autorizado em âmbito nacional pela Lei 12.258, o apetrecho se tornou acessório inseparável de condenados ao regime semiaberto e aberto. A tornozeleira está apensada sobretudo na canelas dos infratores que cumprem pena em casa por causa da superlotação das prisões, mas os garotos-propaganda mais famosos são as estrelas da Lava Jato. Com esse marketing gratuito, as empresas do setor afirmam que seus produtos passaram pelas pernas de 300 mil pessoas entre 2010 e 2016.
Atualmente, cerca de 20 mil brasileiros são monitorados pelo aparelho, de acordo com o Departamento Nacional Penitenciário. Apenas no âmbito dos condenados na Operação Lava Jato há pelo menos 26 empresários, políticos e executivos de alta patente ostentando a tornozeleira por aí, segundo levantamento feito pelo site Poder360.
As tornozeleiras são alimentadas por uma bateria de lítio que aguenta mil cargas. A autonomia depende da configuração do aparelho, que pode enviar um sinal com a localização do condenado a cada 10, 20 ou 30 segundos, ou ainda de minuto em minuto. Quanto mais a máquina tiver que trabalhar, mais rápido esvai a carga. “É ruim, tem que carregar praticamente todos os dias, mas não chega a ser pior que um iPhone”, disse o empresário Marcos C., que se livrou do aparelho de 100 gramas no último dia 21.
Ele foi monitorado por um ano e meio depois de ter sido considerado culpado de agredir uma ex-namorada. “A história não foi bem como ela contou, mas vida que segue”, disse ele, que mora em Alphaville.
A separação entre o empresário e seu aparelinho deixou sequelas. “Até hoje eu sinto que o Totó está comigo.” Totó? “Era o apelido da minha tornozeleira, porque ela ia no meu pé aonde quer que eu fosse”, lembra. Totó tinha seis centímetros de comprimento, três de altura e menos de um centímetro de profundidade – um dos mais avançados do mercado. A primeira geração das tornozeleiras, de 2010, tinha 10 cm de comprimento. A segunda, lançada em 2012, diminuiu para 8 cm.
O modelo usado para monitorar os envolvidos da Lava Jato, como o de José Dirceu, se comunica com o dono por meio de luzes coloridas, como um semáforo de quatro fases. A verde diz que está tudo bem; a azul denuncia que o GPS não está funcionando; a roxa pede que o usuário entre em contato com o supervisor do presídio; e a vermelha significa que é preciso recarregar a bateria. “Não é nada que chegue a impedir de dormir num quarto escuro”, explicou Marcos.
O sistema também funciona como uma espécie de zona virtual proibida a réus que não podem se encontrar fora da cadeia. Quando dois tornozelados se aproximam, o aparelho vibra e apita – é a suspeita de que os monitorados estão rumo ao crime de formação de quadrilha. Agentes que monitoram os presos federais, especificamente os da Lava Jato, narram pelo menos uma ocasião em que isso aconteceu: a tornozeleira de dois presos da operação apitaram quando ambos tinham voos no mesmo aeroporto, em horários próximos. Apenas uma coincidência. Como a viagem era autorizada pela Justiça, a polícia permitiu que os condenados decolassem sem reprimendas.
Um estudante de 22 anos do Paraná, preso por roubo em 2015, passou trabalho com a tecnologia. Mas por culpa própria. “Acabou a bateria. Quando isso acontece, temos 20 minutos para dar uma carga e ligar para a central, avisando o que aconteceu”, disse, em condição de anonimato. O jovem condenado não encontrava o carregador em casa. “Fiquei com medo de voltar pro [regime] fechado.” A solução foi se apresentar na delegacia de Maringá e passar a noite no sofá do Departamento de Polícia até conseguir um novo carregador, o que só aconteceu na manhã seguinte.
A localização de cada monitorado é transmitida pela rede de telefonia móvel através de uma VPN (rede virtual privada, um túnel de informação que é criptografado para evitar interceptações do sinal). Mas, como a cobertura de celular não é lá essas coisas, foi preciso criar uma adaptação tecnológica para o Brasil. Fontes do sistema prisional que não têm permissão para dar entrevistas me disseram que a maioria das tornozeleiras nacionais funciona com dois chips de operadoras diferentes (Claro, Vivo, Tim e Oi aparecem nos sites das fabricantes como parceiras). São escolhidos os chips das duas operadoras de telefonia que tiverem o sinal mais forte na região da casa do monitorado. Se um falhar, o outro entra em ação.
Não que isso impeça as chamadas “zonas de sombra”, ou lugares em que o celular não pega, como a adega de Marcos C. em Alphaville. “Fiquei seis meses sem poder entrar nela”, lamentou. Ele tomou dois sustos ao receber ligações logo depois de sair do porão, que acomoda 400 garrafas. Os telefonemas avisavam que ele havia desobedecido as regras de monitoramento e poderia ser punido – o que não se confirmou, mas o desencorajou a entrar no espaço de vinhos até o fim da sentença. “Falam que é prisão domiciliar, mas podiam chamar de prisão quarto-e-salar”, reclamou.
Quando o monitorado perde o sinal de celular e de GPS, um acelerômetro continua funcionando para calcular a distância que ele caminhou quando estava fora do mapa virtual. A Justiça determina quanto tempo de apagão cada condenado pode ter, dependendo de sua sentença, mas há quem possa ficar até meia hora fora do radar e não ser notificado. Quando o condenado sai da área em que pode trafegar, o aparelho começa a vibrar.
O governo de cada Estado decide se monta uma equipe de monitoramento própria – com profissionais que acessam os dados e os repassam para o órgão de segurança pública local – ou se terceiriza esse serviço para a própria empresa que produz a tornozeleira. A Spacecom, líder do mercado, tem uma central de monitoramento 24 horas em Curitiba (estar no epicentro jurídico da Lava Jato não passa de uma coincidência, disse a empresa).
As tornozeleiras também vêm ajudando vítimas da Lei Maria da Penha. Em vez de monitorar passos, o aparelho apita quando a vítima (que nesse caso também usa o artefato) chega perto de seus algozes, para evitar que agredido e agressor se cruzem.
A principal função do aparelho, no entanto, é garantir que as autoridades possam encontrar o condenado a qualquer momento. Quando uma tornozeleira “some” do sistema, os monitores enviam uma mensagem de SMS para o monitorado. Coisa de dois minutos depois, uma telefonista liga e avisa, com um texto cheio de jargões, que a situação é de urgência. “Não é muito diferente dessas mensagens de telemarketing que falam tudo no gerúndio”, explicou Marcos. “Estar gerando uma ocorrência” significa que o sujeito foi a um local que não poderia ir, por exemplo. Ou seja: que o condenado esteve em uma “área de exclusão”, na gíria do pastoreio de monitorados.
Embora lamentasse não poder frequentar sua adega, Marcos tinha acesso liberado à piscina da casa de dois andares – e também podia tomar banho de mar e de rio. O aparelho é à prova d’água, e as únicas limitações são de tempo (recomenda-se que o usuário não passe de uma hora e meia submerso). Não é possível, no entanto, praticar mergulho submarino. O dispositivo mais comum no país suporta pressão de até cinco metros de profundidade, apenas.
Quando Marcos saía da piscina, apontava um secador de cabelo para o aparelho secar mais rápido. Tinha que usar a opção “ar frio”. Caso o vento fosse quente, ele poderia receber um pito dos agentes que o monitoravam. Os fabricantes afirmam que o aparelho detecta mudanças de temperatura que podem denunciar tentativas de rompimento da braçadeira com maçarico, por exemplo. O tecido da braçadeira, que leva fibra óptica na trama, denuncia quando o usuário tenta arrancar a geringonça, mesmo que seja só uma coceira na região do calcanhar.
Na esperança de provocar um bug no aparelho e tentar burlar as regras, um monitorado deixou a tornozeleira no sol por horas a fio. “Até deu certo, mas quando ele chegou com ela em pane a gente sabia o que tinha acontecido”, contou uma funcionária da Secretaria de Administração Presidiária de São Paulo, que pediu para não ser identificada. O aparelho foi trocado, e o usuário, ostentando a marca pálida da tornozeleira em meio ao bronzeado da perna, foi instruído a limitar seus banhos de sol.
Três empresas controlam o mercado de tornozeleiras no Brasil, que vive crescimento vertiginoso nos últimos anos. A primeira é a Geocontrol, sediada em Vitória e responsável pelos monitorados do Espírito Santo. A segunda é a UEBrasil, de Brasília, fornecedora do governo do Rio Grande do Sul, entre outros. A terceira e maior é a paranaense Spacecom, que atende à Justiça Federal e vários Estados, amealhando cerca de 90% do mercado.
A Spacecom reportou crescimento de 296% entre 2010 e 2015, conforme mais Estados passaram a adotar a tecnologia – Amapá, Bahia e Sergipe são os únicos que ainda não usam. Hoje, o custo é do Estado, mas tramita na Câmara um projeto de lei que impõe ao preso o gasto com o equipamento. Uma tornozeleira custa em torno de R$ 300 mensais e tem vida útil de até cinco anos.
Os hábitos dos condenados brasileiros debilitam os aparelhos antes do prazo esperado. “O pessoal bate bola com o equipamento no pé. Os materiais têm de aguentar água, pó e impacto”, disse Sávio Bloomfield, presidente da Spacecom. Em alguns países do mundo, a caixa da tornozeleira tem um visor que se parece com a tela de um smartphone. Mas, para reduzir danos, os modelos brasileiros mais se parecem com um bip resgatado dos anos 1980. “O cara aqui quebraria [a tela] em duas semanas”, projetou o empresário.
Nenhuma tornozeleira brasileira, entretanto, sonha em ser indestrutível. “Mesmo que fosse de aço, o monitorado conseguiria serrar e tirar”, disse Bloomfield. O que não chega a ser um problema. “O intuito é constituir uma prova para a Justiça, caso ele tente.” O próprio Bloomfield, um homem calvo com uma voz grossa e calma, foi cobaia de seus produtos. Entre 2008 e 2010, circulou pelo Paraná com uma tornozeleira presa à perna, ainda que sem sentença. “Eu tinha que saber se funcionava ou não. No começo achei esquisito, mas depois me acostumei.”
A quarta geração de tornozeleiras nacionais deve chegar ao mercado em seis meses. O aparelho deve ser ainda menor e com uma vida útil de bateria que supera as 48 horas. “Vai chacoalhar o mercado”, disse Bloomfield.
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