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    Garcia-Roza em seu escritório com vista para a Baía de Guanabara: “Não fico querendo ler tudo porque senão vou ficar sabendo como se faz literatura brasileira e eu não escrevo literatura brasileira. Eu escrevo a minha literatura.” FOTO: MATEUS BALDI

questões literárias

Espinosa nas sombras

Uma tarde de conversa com Luiz Alfredo Garcia-Roza, o pai da literatura policial brasileira, sobre seu novo livro Sombras, o vício em paillard de frango e o assunto proibido com Rubem Fonseca

Mateus Baldi | 14 jun 2017_17h13
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Um.
Sujeito trágico

No princípio era o projeto da literatura policial brasileira, e esse projeto era dominado por José Rubem Fonseca. De 1963, quando surgiu, até meados dos anos 90, o mineiro de Juiz de Fora era tido como o grande pai e único autor de uma literatura que se dizia verdadeiramente policial. Mas nem Fonseca e nem a literatura brasileira consideravam Lúcia McCartney, Feliz Ano Novo e Agosto como exemplares policiais.

Na metade dos anos 90, contudo, um professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, já consagrado autor de livros de psicanálise e bastante cansado do ambiente acadêmico, resolveu se aventurar pelo universo da ficção. O Silêncio da Chuva, estreia avassaladora do carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza, arrebatou de uma só vez os prêmios Jabuti e Nestlé, os dois maiores da literatura nacional. Ao primeiro volume se seguiram outros dez. Numa tarde de maio último, a escritora Livia Garcia-Roza, sua mulher, postou no Facebook que ele havia entregado à Companhia das Letras o original de seu próximo romance.

Quinze dias depois, sorridente, Garcia-Roza me recebeu no Villarino, tradicional restaurante no Centro do Rio.

Inaugurado em 1953, o Villarino é famoso por ter sido o local onde Tom Jobim e Vinicius de Moraes começaram a longeva parceria musical. Espremido de forma aconchegante atrás de uma loja de frios, o restaurante é o preferido do autor. Numa tarde no começo de junho, ele vestia calça jeans e camisa azul com o último botão solto. Sobre a mesa, uma cestinha com pasteis e quibe. Assim como todas as paredes da casa, a pilastra ao nosso lado tinha fotografias dos frequentadores ilustres. Logo acima de nossas cabeças, o próprio Garcia-Roza com o advogado e amigo Marcio Donnici.

– Ali na frente tem outra foto: eu, Livia, Lucia Riff [agente literária] e o marido dela. Almoço aqui todo dia – explicou. – Com o dinheiro que ganhei do prêmio Nestlé, comprei meu escritório aqui atrás. Para não ter que ficar indo para casa almoçar, venho aqui. O pessoal todo já me conhece.

Ramos, garçom baixinho de cabelos brancos bem penteados e óculos de aro fino, se aproxima com o cardápio e um sorriso. Garcia-Roza me olha. Peço para que ele escolha.

O copeiro se antecipa e sugere paillard de frango à milanesa, caldinho de feijão e arroz branco no capricho. O escritor pergunta se o frango é “bem chapado, como se um caminhão tivesse passado por cima”. O garçom sorri – Um carro de Fórmula 1, professor.

Ramos leva o cardápio e os pratinhos dos pasteis.

– Eu como isso todo dia – Garcia-Roza explica. – Ele estava brincando. Adoro esse frango.

O delegado Espinosa, protagonista de todos os seus livros, exceto Berenice Procura, jamais seria visto em situação semelhante. Seu cardápio de café da manhã, composto de congelados, comidinha árabe da Galeria Menescal e pão feito numa torradeira que só tosta de um lado, é imutável desde os primeiros romances. A exceção acontece quando Irene, namorada surgida em Vento Sudoeste, sobe as escadas do edifício no bairro Peixoto, coração de Copacabana, munida de sacolas e mais sacolas recheadas de frios e outros tipos de pães. Dona de um apetite sexual intenso, Irene é arquiteta e dez anos mais nova que Espinosa. O escritor explica que ela foi criada para dar algum sentido à vida dele, “senão o personagem não se sustentaria”, mas acabou caindo nas graças do público leitor. No apartamento do bairro Peixoto, outro trunfo do adorável delegado: a estante de livros.

– Tive uma estante igual à do Espinosa – Garcia-Roza conta. – Eu devia ter uns 30 anos, por aí, e começou pequena, mas conforme foi crescendo eu fui fazendo exatamente que nem ele: uma fileira, depois outra, e aí outra e quando vi os livros se sustentavam por si só, sem armação nenhuma.

Com o mesmo vozeirão grave de quem deu aulas durante cinquenta anos, ele passa a discorrer sobre o novo livro.

– A história se passa na Lapa e em Copacabana. Tem um grupo de prostitutas e o cafetão delas, um sujeito conhecido como Rato.

Na coletânea Rio Noir, organizada por Tony Bellotto, o primeiro conto se passa no Centro da cidade e envolve justamente prostitutas e um sujeito chamado Rato. Garcia-Roza ri diante da observação e explica que aquelas páginas são justamente o começo do livro.

– Eu não escrevo contos, mas o Tony me pediu um e eu achei que aquele começo do Rato e as prostitutas cabia no projeto.

Pergunto o que um sujeito como Espinosa, tradicionalmente soturno e solitário, quase que eticamente perfeito, faria entre as prostitutas.

– O Espinosa é forçado a entrar na história. E depois sai, como quem diz: Não tenho mais nada a dizer. Mas também tem um delegado da Homicídios. Os dois trabalham juntos, mas a razão de cada um deles existir opera diferente.

– Então há assassinatos.

– Dois.

A previsão é de que Sombras seja lançado ainda em 2017. A primeira leitura foi aprovada pela editora e seguirá para um processo que envolve revisão, preparação, edição e uma segunda revisão. De acordo com Garcia-Roza, o modus operandi é sempre o mesmo, e ele faz questão de ter o OK precioso de Luiz Schwarcz, fundador do Grupo Companhia das Letras.

– Em vinte e tantos anos, o Luiz sempre me deu liberdade. Isso é muito importante. Mesmo discordando de um ou outro final, sempre me deu liberdade.

Ramos se aproxima.

O filé à milanesa parece recém-saído de uma prensa. Garcia-Roza pega o potinho com caldo de feijão, espesso na medida certa, e despeja com uma colher por cima do arroz.

Enquanto almoçamos, pergunto sobre os famigerados finais abertos – uma característica marcante de seus romances.

– Eu não gosto dessa coisa de dar final fechado às minhas histórias.

– Por quê?

– Porque aí eu vou estar satisfazendo o leitor. Se eu mantenho os finais fechados, dou ao leitor aquilo que ele quer ler, que é o escritor fazendo o trabalho completo. Eu não quero satisfazer o leitor. É uma ilusão a gente achar que vai satisfazer alguém nessa vida. Você pode dar forma à fantasia dos sujeitos, mas realizar? Nunca. O leitor tem que buscar o final dele, interpretar aquele final. Se eu der o caminho, estarei contribuindo ativamente para o leitor morrer, porque aí ele se priva de alcançar a verdade e sua própria inescrutabilidade.

Qualquer pessoa que assistiu a alguma palestra de Garcia-Roza sabe do seu fascínio pela inescrutabilidade. A gênese de sua obra talvez se baseie justamente nessa palavra, cuja definição pode ser encarada como a própria impenetrabilidade daquilo que nos faz sermos o que somos. Tomando água depois do suco de laranja, o autor adota um tom mais sério.

– A inescrutabilidade não é contível em nada que não seja o próprio leitor. A inescrutabilidade é justamente aquilo que pertence ao inescrutável, que faz com que você seja aquilo que você é. A sua essência. As angústias, a sua angústia, isso você nunca vai saber. Não adianta fazer análise, o seu analista sabe disso, que não vai descobrir suas angústias. Não existe cura para isso. Existem caminhos para aprender a lidar com a própria angústia. A essência do homem é trágica, sabe?

Por um instante, parece que o escritor desapareceu e emergiu o professor.

– As pessoas confundem trágico e tragédia – continua, a voz doce e calma. – A tragédia é uma forma literária que nasceu e morreu entre os séculos V e VI antes de Cristo. Depois disso não tem mais tragédia. Shakespeare, as pessoas adoram dizer que Shakespeare fez tragédia. Shakespeare não fez tragédia. Shakespeare usou o trágico no homem para construir suas histórias. O sujeito trágico é aquele que, por sua própria condição de já nascer trágico, acaba provocando sua morte. Mas a natureza trágica também pode levar o sujeito a fazer algo de excepcional.

– Você acredita que o trágico pode ser positivo, então?

– Claro. O sujeito, no trágico, pode acabar descobrindo uma coisa maravilhosa.

– E o Espinosa é trágico?

– Não. O Espinosa tem traços de que pode existir algo trágico, mas isso é uma centelha que surgiu lá pelo quarto livro. Depois, quando escrevi Na Multidão [livro de 2007, em que o delegado tem de investigar uma senhora e um agente da Caixa Econômica] isso ganhou uma dimensão maior, mas o público não percebeu. Ali surgiu uma ideia, uma faísca de que o Espinosa poderia ganhar uma dimensão trágica. E desde então vem sendo explorada cada vez mais.

– E você pretende dar um final a ele?

Garcia-Roza termina o prato.

– Com certeza. Inclusive é algo que venho pensando recorrentemente. Eu tenho 80 anos e me dou mais uns dez, sendo bem positivo. O tempo não para. Desde Na Multidão que eu venho sentindo isso, essa necessidade de me aproximar do final do Espinosa.

– Já no próximo livro?

– Não, nesse não.

– Então mais quantos?

Ele dá de ombros.

– Não sei. Sei é que vai haver um final.

Ramos se aproxima, recolhe os pratos e traz um café.

 

Dois.
O caldeirão da bruxa

O Villarino fica quase em frente à Academia Brasileira de Letras. Andando com os ombros ligeiramente curvados, Garcia-Roza dá passos lentos. Pergunto se ele já pensou em se candidatar ao fardão.

– Nunca. Nem quero. Já passei tempo demais da minha vida me dedicando aos assuntos acadêmicos.

Virando a esquina da Presidente Antônio Carlos, uma das artérias do Centro do Rio, seguimos por um pequeno trecho de pedras portuguesas onde se abrigam camelôs e uma banca de jornal. De súbito, ele para sob uma marquise gorda e toca o interfone. A porta é aberta por um porteiro diminuto. Com piso branco e verde, o hall é pouco maior que uma caixa de fósforos. Logo de cara, a porta pantográfica se arrasta num ruído metálico. A cabine também é verde. No elevador, Garcia-Roza encontra um amigo de blusa branca e óculos. Os cabelos grisalhos do sujeito contrastam com a cabeleira branca do professor, as maçãs altas e o lábio grosso que o fazem reconhecível por onde passa. Ambos conversam enquanto a caixa de metal se move. O homem sai no sétimo andar. Subimos mais um pouco. É o próprio Luiz Alfredo quem me abre a porta do elevador. Um corredor amplo dá de cara para uma janela de serviço. O prédio é mais largo do que parece. Andamos com os sapatos fazendo eco no piso frio até pararmos na primeira porta.

– Bem-vindo ao caldeirão da bruxa.

Ele gira a maçaneta, empurra a porta e surge a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar espetando o céu ao longe.

Comprado com o dinheiro da premiação por O Silêncio da Chuva, “antes que acabasse gastando em alguma besteira”, o apartamento tem paredes brancas e pé-direito alto. A sala dá para uma minicozinha e um banheiro de portas fechadas. Na parede oposta à quina do banheiro, um quadro de Pedro Pellegrino. Junto à porta, a escrivaninha acomoda fotografias dos pais do proprietário do imóvel, Luiz Alfredo, suas netas Anaik e Lais, e o filho, Pedro. Recentemente, Anaik veio de São Francisco com o marido, trazendo o filhinho Oliver. Presença constante nas redes sociais de Livia, o neném faz o bisavô se derreter.

– Você só fala o nome dele e ele já ri – Garcia-Roza diz.

Casado com Livia há quarenta anos, o escritor explica que os dois não se intrometem na literatura um do outro.

– Nunca tentamos, sabemos que não vai dar certo. Ela escreve de um lado, eu do outro, e só nos lemos quando acabamos de escrever.

– E você não escreve nesse escritório aqui? – perguntei.

Ele sorri.

– Às vezes sim, às vezes não. Depende. Eu sou o rei dos pendrives, o último livro foi escrito inteiramente no pendrive. Tenho um computador em casa e outro aqui, mas tenho escrito mais em casa. Mas já escrevi muito aqui. Preciso da mais absoluta concentração, não anoto nada, no máximo uma listinha com os nomes dos personagens, para criar é necessário ter esse caos da imaginação aliado à técnica, e em casa é complicado, quase impossível, não dá para escrever com alguém te perguntando se acabou a manteiga. Você aceita uma água?

– Não, obrigado.

– Então fica à vontade. Já volto.

A parede oposta é ocupada por uma estante gigantesca dividida em três seções: filosofia, psicologia e literatura policial. Garcia-Roza possui quase todos os volumes da Coleção Policial, da Companhia das Letras, além de boa parte da Coleção Negra, da editora Record.

– Adoro Cormac McCarthy. Essa Trilogia da Fronteira é espetacular.

Noto um Bernardo Carvalho sobre uma coleção de filosofia.

– É um dos poucos de literatura brasileira que eu leio. Ando relendo muita coisa, sabe? Não fico querendo ler tudo porque senão vou ficar sabendo como se faz literatura brasileira e eu não escrevo literatura brasileira. Eu escrevo a minha literatura.

– Mas você não tem curiosidade em saber o que o pessoal anda fazendo na literatura brasileira?

– Tenho medo da interioridade. Quero manter minha exterioridade preservada. Prefiro mantê-la com certo equilíbrio. Eu era muito amigo do Zé Rubem [Fonseca], a gente ia na casa um do outro, ele dizia pra mim. Ó, meu livro sai na terça-feira, e na terça-feira lá estava eu na livraria pra pegar o livro.

Garcia-Roza sorri. Sugiro um volume de Dennis Lehane e ele deixa separado numa pilha.

– Quando resolvi escrever, fugi do Rubem. Não houve animosidade nenhuma, continuamos nos falando, mas nunca sobre literatura. Eu sabia que ele ia querer me dar conselho, e eu não podia escrever literatura policial pedindo dica pro Rubem Fonseca.

– Mas ele leu seus livros?

– Sei lá. Nunca falamos sobre isso. Virou uma espécie de muro invisível, falamos de tudo, menos dos nossos livros. Mas, repito, sem nenhuma animosidade. Somos ótimos amigos. Ele é um doce de pessoa.

Luiz Alfredo puxa um exemplar da primeira edição de bolso de Agosto, lançada pela Companhia das Letras em meados dos anos 90. Na dedicatória, Para Livia e Luiz, com o abraço do amigo Rubem Fonseca.

 

Três.
Yoknapatawpha tropical

De pé contra as franjas da persiana, Garcia-Roza parece uma esfinge atenta. Retira os óculos com cuidado, ultrapassa a mesinha de centro rodeada por três cadeiras e abre uma porta. Na parede do escritório propriamente dito, erguendo-se imenso, um mapa de Copacabana que a Prefeitura lhe deu de presente. Cheio de rabiscos e trilhas feitas com marca-texto verde-limão, o mapa em escala 1:2000 é um precioso auxílio na hora de compor as andanças de Espinosa.

– A Prefeitura até vende os mapas, mas esse eles me deram, faz um bocado de tempo. Essa confusão de riscos fui eu que fiz, mas me ajuda muito. Tem cada ruazinha, a localização exata dos prédios e os números deles.

Colada na parte inferior do mapa, uma caricatura d’O Pensador de Rodin vestindo um terno e encarando uma fatia de pizza. A obra é do cartunista Claudius. Todo ano, no aniversário do escritor, o cartunista lhe presenteia com um desenho enquadrado. Os oito exemplares que estão no escritório possuem os mais variados formatos artísticos – da caricatura à colagem, passando por uma divertida brincadeira com o filósofo Baruch Spinoza, as molduras maiores servem de guarda para uma moldurazinha posicionada bem no centro da parede, de frente para a mesa em que o escritor trabalha: em cima do telhado, Snoopy tecla na máquina de escrever: It was a dark and stormy night.

A janela está aberta. Persiana afora, a Baía de Guanabara se descortina do começo do Centro ao Aeroporto Santos Dumont. O VLT, inaugurado na última Olimpíada, passa a cada cinco minutos chiando sua buzina metálica.

– Às vezes eu me distraio e fico olhando os aviões indo e vindo – Garcia-Roza diz. – Quando vejo, já nem me lembro mais o que estava fazendo.

– Você vem aqui todo dia?

– Todo dia. Saio de casa, contorno a avenida Rui Barbosa, desço um pedacinho da Oswaldo Cruz e entro na Marquês de Paraná. Ando mais um bocado e estou no metrô. Desço na Cinelândia e chego aqui.

– E escreve todo dia?

– Todo dia. Às vezes, entre um livro e outro, dou uma acalmada, espero um mês, dois meses, mas aí volto a trabalhar.

– Quanto tempo você leva para escrever um livro?

– Ah, de um a dois anos. Depende.

Em cima da mesa há um MacBook. Ao lado dela, uma poltrona igual às da Livraria da Travessa, que o escritor conseguiu com o próprio dono da rede. Colada na cadeira, embaixo do grande mapa de Copacabana, uma mesinha de cabeceira com quatro gavetas e três canecas contendo dúzias de canetinhas, marca-textos, lápis.

– Você desenha?

– Já desenhei muito.

– Tem mais dois quadros na sala, além do Pellegrino. São seus?

– De um tio meu. Ele pintava usando uma técnica de pintura que os egípcios utilizavam nos navios, para resistir ao sal do mar. Aquilo ali não sai nem com esfregão. É muito bonito.

Ele se senta na cadeira em frente à mesa e conta que no livro novo Espinosa ainda tem 52 anos.

– Meus livros têm uma historicidade, mas não uma que corresponde à historicidade real. No primeiro livro o Espinosa tinha 42 anos, vinte anos depois ele tem 52 anos. No próximo, continua com 52. Ele envelhece, o tempo passa, mas não passa na mesma dimensão que passa pro leitor. É impossível escrever um livro que se passa em Copacabana sem historicidade nenhuma, se eu parar Copacabana no tempo, dez anos depois ela está acabada. Viraram a avenida ao contrário, agora já tem metrô. Mas também não queria correr tanto. Nem correr e nem paralisar no tempo.

Menciono Faulkner, uma das paixões de Garcia-Roza. Prêmio Nobel de literatura, o americano criou a fictícia Yoknapatawpha como um semissimulacro do real Lafayette County, no Mississippi. Quando pergunto se os livros pretendem incluir algum traço de nostalgia ou espécie de Yoknapatawpha particular, Garcia-Roza abre um sorriso.

– O Rio da minha infância era muito calmo. Pode ser que eu pegue a calma e bote nos livros. Eu não nasci no Rio de Janeiro, eu nasci em Copacabana. A rua em que eu morava – 5 de julho – não tinha prédio, só casa. Até hoje trago em mim essa calma. Passava carro na rua e eu parava de andar e pensava, poxa, um carro passando. Já maior, a gente jogava futebol na rua e tinha que parar porque vinha um ou dois carros, e não parava por ser perigoso, não, a gente parava porque ninguém queria que furassem a bola.

Mais de mil páginas depois, a sensação é de estar presenciando toda a atmosfera literária naquele escritório de frente para o mar. Ele continua:

– No caminho da praia só tinham casas com quintais cheios de pitangueira e mangueira, até chegar à praia já tinha roubado mangas, pitangas, carambolas. Era uma farra, eu e meus amigos, a gente fazia farra à luz do dia em Copacabana. Até a década de 50 essa calma existiu mesmo.

E torna a ficar sério:

– Logo depois da guerra, Copacabana começa a ganhar uma dimensão americana, quase europeia, que ela não tinha. Hoje em dia as pessoas não sabem o que é carambola. O leitor não sabe o que é, nunca viu pitanga. Não é que eu queira que aquele tempo volte, é uma questão de memória afetiva. Nasceu agora nosso bisneto, eu não espero que ele viva o que eu vivi, porque não cabe, não há sentido, o que teria sentido para mim, para ele será uma aberração. Eu não pretendo que ele leia meus livros com esse sentimento.

– E sua família lê seus livros?

– Ingrid e Carla, filhas da Livia, sim. Sempre leem, dão sugestões. Lais, minha neta, começou a ler de uns tempos para cá. Meu filho é que lê pouco. Ele é piloto de helicóptero, são outros ares. Ele diz que se pegar para ler, vai acabar derrubando aquele troço.

Sobre ser considerado o pai da literatura policial brasileira, Garcia-Roza brinca que não tem nenhuma crítica a essa paternidade, mas fecha o semblante quando pergunto sobre o atual momento, dominado por best-sellers e autores brasileiros tentando imitar os estrangeiros.

– Nesse próximo livro o Espinosa vai atuar junto com um delegado da Homicídios, mas a razão da atuação deles é muito diferente. E eu não escrevo literatura policial. O que me move não é fazer uma literatura policial, é fazer algo no campo disso, uma leitura policial, nem literatura, talvez.

Para ele, morte e sexualidade são as duas coisas mais íntimas e presentes no ser humano. É a partir desses pilares que ele constrói sua própria investigação da condição humana.

– É o que todos os romancistas fazem. Você pega Dostoiévski, com um puta de um assassinato de duas velhinhas, a machadadas, e compara o que vai sendo investigado e criado: todos os romancistas fazem isso. E ninguém pensa em incluir na estante de literatura policial um cara como Dostoiévski, mesmo ele tendo feito algo que é puramente tocante ao gênero que se chama de literatura policial.

 

Quatro.
Horror a herói

Pouco antes de o sol começar a cair, entrego meu exemplar d’O Silêncio da Chuva. O autor do livro observa a capa e dá uma batidinha em cima do título.

– Essa capa é muito bonita – diz, orgulhoso. – Muito bonita mesmo. Sabia que fui eu que escolhi? O Schwarcz me perguntou como eu pensava uma capa pro livro e eu disse que imaginava um cachorro todo molhado embaixo da chuva. Foram lá e fizeram.

– E o Sombras? Como você imagina?

– Esse vai ser complicado, eles vão ter trabalho. Não faço a menor ideia.

Ele apanha uma caneta e assina. Enquanto guardo o livro, pergunto por que Espinosa nunca voltou a falar na primeira pessoa.

– Primeira pessoa me aproxima demais do leitor. É bom dar uma distância.

Na despedida, noto pôsteres espalhados nas paredes, principalmente numa espécie de quartinho colado ao escritório. Ali, num cabideiro, camisas dependuram-se sob dois pares de sapatos, tudo observado de perto por um pôster do lançamento de Uma Janela em Copacabana.

– Este aqui é anunciando o Nestlé – Garcia-Roza aponta para um pôster do primeiro livro.

– Você esperava ganhar algum prêmio?

– Absolutamente, não. Um dia me ligam, sem anunciar finalista nem nada, e dizem que eu ganhei um prêmio. Dois dias depois, me telefonam novamente e dizem que ganhei outro prêmio. Inclusive tá lá o Jabuti, você viu?

Voltamos ao escritório. Em cima da mesinha, entre as canecas, a figura de um jabuti.

– Agora, olha esse aqui.

Ele aponta para a estante adjacente à porta, repleta de seus romances traduzidos para mais de dez idiomas. Ao lado dela, uma estátua em que eu mal havia reparado. Dourada e incrivelmente pesada, absorve toda a luz que chega por entre as frestas da persiana.

– Este foi do Nestlé – diz. E, segurando-a pela cabeça, puxa a estátua, que mal se move de tão pesada. Com esforço, conseguimos ver a plaquinha na base indicando a premiação por O Silêncio da Chuva. Suspiro. – Se ao menos os prêmios fossem grandes como as estátuas…

Em breve, Vento Sudoeste, terceira aventura de Espinosa, ganhará uma versão para o cinema. A produção anda a todo vapor, mas o protagonista ainda não foi escolhido. Em 2015, a produtora Zola exibiu no GNT uma adaptação de Uma Janela em Copacabana protagonizada por Domingos Montagner, morto durante as gravações da novela Velho Chico.

– Dentro do que o pessoal se propôs a fazer, ele era o próprio Espinosa. Não faço ideia de quem vai ser o Espinosa agora, porque o Espinosa não tem rosto, não tem sobrenome. Ele é só mais um funcionário público, um cara que acorda cedo, vai trabalhar durante o dia e volta de noite. Eu tento fazer de tudo para não transformar ele num herói. Tenho horror a herói. Capitão América, Super-Homem. São todos fake, uma burrice, não tem a ver com o homem, são justamente o não-homem. O Espinosa só quer fazer o trabalho dele. Claro que de vez em quando saem uns tiros, mas pouquíssimas vezes ele foi levado à ação desnecessária. O resto é cabeça e busca de elementos.

Anoitecia. O Philip Marlowe de Raymond Chandler, ou até mesmo o Mandrake, de Rubem Fonseca: qualquer um poderia ter sala naquele prédio. A 500 metros dali a Lapa começa a encher de gente. A Lapa profunda, como se refere à parte que as fotografias dos Arcos não captam, será mostrada na próxima aventura do delegado Espinosa. As prostitutas e os cafetões, também. Lentamente, vagando num Rio de Janeiro psicologicamente denso, construído com argúcia ao longo das últimas décadas, o delegado vai se preparando para o Grand Finale.

Atrás do Villarino, buzinando seu ruído metálico, o VLT.

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