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questões cinematográficas

Cinema político (II)

É preciso reconhecer que o cinema brasileiro sequer tem influência em âmbito nacional. Quem alimenta o imaginário coletivo do país é a ficção televisiva

Eduardo Escorel | 06 jul 2017_15h39
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Não há como negar que filmes norte-americanos, em especial, podem exercer influência em escala mundial e provocar “mudanças de comportamento” ou “até mudar opiniões”, escrevem Leif Furhammar e Folke Isaksson em Politics and Film. Mas, daí a afirmar que todo filme é político, como é costume, vai uma grande distância.

Para um autor (André Leroi-Gourhan), é de se esperar que o cinema “seja uma sentinela da sociedade: que exprima sua unidade e coesão mais ainda que as outras artes; outro, (Jean Pivasset) reafirma a expectativa de “que seja também espelho, farol e projetor”. Para esse último, o cinema “não poderia deixar de se tornar questão de Estado: indústria vulnerável e de prestígio, cujos produtos têm consumo de massa e determinam comportamentos miméticos”.

Com relação ao Brasil, porém, é preciso reconhecer que o cinema brasileiro sequer tem influência em âmbito nacional. Quem alimenta o imaginário coletivo do país é a ficção televisiva. Daí uma das dificuldades de reconhecer quaisquer filmes feitos entre nós como sendo políticos.

De qualquer modo, embora até o fim da década de 60 tenha prevalecido a noção de que o cinema per se teria o poder de conquistar direitos e causar mudanças políticas e sociais, desde então essa crença deixou de ser consensual e hoje atrai cada vez menos adeptos.

A origem da mística revolucionária do cinema parece ser a famosa declaração atribuída a Lenin, chefe de governo da União Soviética. “De todas as artes, o cinema é para nós a mais importante”, ele teria dito, cinco anos após a Revolução de Outubro. Nas décadas seguintes, a maneira como essa frase foi interpretada e difundida serviu para arraigar a convicção de que o cinema possuiria poder transformador.

Mas, na verdade, a importância que Lenin atribuiu ao cinema era diretamente vinculada à intenção de envolver a massa popular russa no projeto político bolchevique, vitorioso em 1917. E o instrumento mais importante para cumprir essa tarefa seria um cinema didático e de propaganda a serviço da erradicação do analfabetismo e do estímulo da consciência revolucionária da classe trabalhadora.

Se diferenciarmos, portanto, filmes educativos e de propaganda dos propriamente políticos, em vez de contemplar a possibilidade de o cinema ser um agente de mudanças revolucionárias, a frase de Lenin pode ser entendida tão somente como o reconhecimento que ele tinha da possibilidade de ser um importante fator de consolidação do Estado soviético.

No final dos anos 90, escrevendo sobre Joris Ivens e o “legado do cinema engajado”, o professor e escritor canadense Thomas Waugh considerou que até o fim da década anterior não houvera “nada de novo no campo do documentário engajado”. Para Waugh, haveria uma “assombrosa simetria e assonância, tanto textual quanto contextual, entre” sequências de filmes de Ivens concluídos em 1934 e 1946, e documentários da segunda metade da década de 90. Certas cenas desses filmes seriam testemunho, segundo o mesmo autor, “da notável continuidade nas estratégias textuais e políticas de artistas intervindo na [história política e cultural do século], artistas fazendo documentários para mudar o mundo”.

Chama atenção o fato de Waugh desconsiderar dois projetos pioneiros, um nos Estados Unidos, outro na França, que marcaram uma inflexão na postura messiânica do documentarista político. Projetos que, de alguma forma, repercutiram no Brasil.

Na segunda metade da década de 60, a antropologia e o cinema puseram em questão a soberania do cineasta profissional e prenunciaram a tendência à apropriação, por não-profissionais, da técnica e da linguagem cinematográficas, com a expectativa que esse apoderamento teria efeito transformador e levaria ao surgimento de um novo cinema.

O projeto Navajos Filmam a Si Mesmos, realizado no verão de 1966, no Arizona (Estados Unidos), tinha a premissa de “entregar a câmera a outros”. Os antropólogos Sol Worth e John Adair propuseram determinar se “podiam ensinar pessoas de outra cultura a fazer filmes, retratando sua própria cultura e a si mesmos da maneira que considerassem adequada”. O pioneirismo da iniciativa não suplantou, porém, suas limitações – passado o verão, além dos sete filmes silenciosos que realizaram, os Navajo não tiveram condições para continuar a fazer filmes.

No ano seguinte, na França, Chris Marker filmou o documentário Até Breve Espero a pedido dos operários da Rhodiaceta que haviam ocupado a fábrica de tecido sintético, em Besançon. No debate, após a projeção do filme, já em 1968, um antigo operário, na época dirigente sindical, acusou Marker de ter visto “os trabalhadores, a organização sindical, com romantismo”. Em resposta, Marker declarou: “[…] sempre me pareceu evidente que […] será quando os operários tiverem nas mãos os aparelhos audiovisuais que eles nos mostrarão a nós os filmes sobre a classe operária, e sobre o que é uma greve, e o interior de uma usina. […] evidentemente não é possível exprimir realmente a não ser o que se vive.”

Desse impasse resultou o surgimento do grupo Medvedkine, em homenagem a Alexandre Ivanovitch Medvedkine (1900-1989), considerado o inventor do cine-trem. O grupo foi responsável por um conjunto de filmes em sua maioria sobre o operariado francês, feito pelos próprios operários, a partir de 1968, com apoio de alguns técnicos profissionais. Assistindo a esses documentários, confirma-se o utopismo de Marker. Não se encontra uma perspectiva original, tampouco revolucionária, mesmo sendo feitos por operários sobre operários. Pelo contrário, prevalecem narrativas convencionais que expressam valores e hábitos conservadores.

O projeto Navajos Filmam a Si Mesmos, assim como a rejeição de Até Breve Espero pelos operários e também a produção do grupo Medvedkine são indícios dos dilemas de propostas que pareceram alternativas para enfrentar os impasses do cinema político, mas acabaram se revelando fugazes dado seu caráter voluntarioso.

Quando os antropólogos Sol Worth e John Adair chegaram ao Arizona para iniciar o projeto com os Navajo, “a primeira coisa que fizeram foi procurar um dos principais pajés da área, chamado Sam Yazzie, para explicar que pretendiam ensinar os Navajo a usar câmeras de filmar. Sam estava, na época, com cerca de 80 anos e acabara de voltar do hospital após um ataque severo de tuberculose crônica. Com alguma dificuldade, encontraram Sam em sua cabana de madeira, perto de outra que ele usava apenas para as tradicionais cerimônias curativas dos Navajo. Adair explicou o que queriam e quando acabou, depois de pensar algum tempo, Sam perguntou: ‘Fazer filmes fará algum mal aos carneiros?’ Satisfeito, Worth explicou que até onde sabia não havia a menor possibilidade da realização dos filmes fazer mal aos carneiros. Sam refletiu sobre a resposta e aí perguntou: ‘Fazer filmes fará bem aos carneiros?’ Worth foi obrigado a responder que até onde ele sabia, realizar filmes não faria nenhum bem aos carneiros. Sam pensou sobre isso e aí, olhando em volta, disse: ‘Então, por que fazer filmes?’”

De fato, se não fazem bem, nem mal, por que fazer filmes?

Para que possa haver cinema político, as condições mínimas necessárias seriam, então, as do seguinte decálogo: (1) considerar o cinema um “território criativo sem dono” e (2) um meio dotado de imensa liberdade formal que “olhe acontecimentos de maneiras novas e inesperadas”; (3) ter inserção social, (4) independência do Estado, (5) índice baixo de rejeição, (6) capacidade de identificar causas relevantes, (7) agilidade para reduzir ao mínimo o tempo entre concepção e lançamento dos filmes, (8) equilíbrio entre reflexão e entretenimento; além de fazer filmes que levem (9) “as pessoas a fazer perguntas” e (10) “questionar pressupostos estabelecidos sobre o próprio cinema”.

Leia a primeira parte da série de textos de Eduardo Escorel sobre cinema político

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