Vi o post sobre a morte da escritora e achei que fosse uma piada, um modo de Elvira dizer que estava cansada do país e iria se retirar. Não era IMAGEM: ELVIRA VIGNA
O que deu pra fazer em matéria de obituário
Meu encontro com Elvira Vigna
Maria Emilia Bender | Edição 131, Agosto 2017
Durante muito tempo eu trabalhei com livros. Um dia, em 1996, na Companhia das Letras, eu fazia uma triagem entre as pilhas de propostas que chegavam pelo correio (sim, as pessoas que trabalham em editoras leem as propostas, se bem que agora elas sejam enviadas por e-mail) e me deparei com um romance juvenil chamado Mônica e Macarra, que me pareceu bem interessante. Entrei em contato com a autora, uma tal Elvira Vigna, no Rio de Janeiro. Quando nos falamos (e-mail?, telefone?, carta?), ela já havia se comprometido com a editora mineira Miguilim. Ou ela foi muito rápida ou eu demorei a responder.
Lamentei. Marcamos um café. Àquela época, eu ia ao Rio uma vez por mês para falar dos títulos da Companhia com os editores de Cultura dos jornais (sim, existiam cadernos destinados aos livros recém-lançados).
Combinamos nos ver na livraria Marcabru, no Gávea Trade Center. Nem sei por que escolhemos esse shopping, acho que era conveniente para ambas. E assim foi. Num fim de tarde, nos encontramos na livraria – o Luiz Costa Lima estava lá, não sei se assinando algum livro ou fazendo alguma conferência, mas lembro que fumava um cachimbo (sim, podia) – e fomos tomar um café ou um guaraná em algum lugar inóspito por ali mesmo. As lojas fechavam as portas, as pessoas loucas para ir embora, um cenário parecido com os ambientes desolados que ela viria a descrever mais tarde.
Eu estava meio sem graça, sem saber o que dizer, como me apresentar. Em geral não costumo ser tímida, mas travei. Achei a Elvira fodona, assertiva; perto dela me senti boba, café com leite. No pingue-pongue de tentar conhecer o interlocutor pesquisando seu gosto literário, pouco coincidimos. Ou melhor, ela parecia não gostar de autores vivos. De brasileiros vivos. Mas isso foi há 21 anos: ao longo do tempo, pelas redes sociais eu soube que ela passou a ler de um tudo – o que não quer dizer que tenha gostado. No dia do café, ou do guaraná, ela acabou revelando que era fã de Autran Dourado. Eu nunca havia lido nada dele.
E então ela contou que tinha um romance para o público adulto. Não lembro se pronto ou em vias de. Pedi que me mandasse. E a partir daí começamos uma relação de editora e escritora, com tudo de bom (e de ruim, às vezes) que essa experiência envolve. Foram seis livros para adultos e um infantojuvenil – acho que o juvenil, de 2001, nem fui eu que editei, já não cuidava mais da área na editora. (Os dois últimos romances que ela publicou na Companhia das Letras foram editados pelo André Conti, eu já não trabalhava lá.)
Recusei um ou outro. Talvez uns dois ou três, não lembro. Meu Outlook está perdido em outro computador, não consigo, ó posteridade, dizer o que aconteceu. Mas aconteceu. O que não significa que ela não tenha me reapresentado o original, alterado. Ou, como não há muito tempo ela me confessou, dado apenas uma “penteadinha”. Confiando que, como havia passado certo tempo entre uma avaliação e outra, eu, que também já não era a mesma pessoa entre a primeira leitura e a mais recente, não perceberia que as mudanças haviam sido discretas. Leio agora, no Jornal Rascunho, um depoimento de 2014:
“O que Deu para Fazer em Matéria de História de Amor foi feito em 2006 e apresentado para a Companhia das Letras em 2007. Na primeira vez o original foi perdido; na segunda, foi recusado. Quando resolvi reapresentar e peguei o texto para ler, algumas frases eram tão secas que eu botei lá um ‘molhinho’. Porque a coisa me pareceu muito seca. Então, não [é só cortar]: você corta e pode ter o movimento contrário também.”
O original foi perdido. Shame on me. Disso eu não me lembrava.
Elvira tem uma prosa elíptica, do capeta. Não facilita muito para o leitor: se ele entendeu, tudo bem; se não entendeu, problema dele. E vamos em frente. (Antes de fazer alguma observação à margem do texto, eu relia com muita atenção o trecho, tinha medo de passar por burra.)
São narrativas quase sempre num mood final de tarde depois de uma chuva morna, bocas de lobo entupidas, uma sujeira difusa no ar. Chuva morna é muito triste, sempre achei. Hotéis de segunda vazios, boates esquálidas com pipoca murcha, uma casa modorrenta no interior, uma praia decadente, espigas de milho fervendo na panela. (As espigas são minhas.)
Matou ou não? Foi crime? De quem é a culpa? Não dá pra saber. Tem sempre uma lacuna, uma informação negada, um segredo jamais escancarado (sugerido, se tanto). O tempo todo. Narradoras inconfiáveis a mais não poder. O sexo a permear tudo, nunca explícito, mas sempre presente. Uma vez ela me mandou um texto que acabava assim: “Acho mesmo que meus livros podem ser lidos como histórias de detetive contemporâneas sem detetive. Gosto disso. Mas, repito, é sem detetive, ou seja, sem estabilidade no horizonte.” Não sei por quê, mas ela eliminou essa consideração da versão final. “Sem estabilidade no horizonte” era muito bom.
A urgência em contar uma história (“Sem histórias pela primeira vez na vida, estou bem assim” – esse é o final de um dos romances), mesmo que essa história não fique inteiramente (e de propósito) clara para o leitor: “Continuo sem saber como acaba” é a última frase de outro.
Na segunda-feira, dia 10 de julho, li no Facebook um post da filha dela, Carolina Vigna. Nota de falecimento: Elvira Vigna etc. Primeiro lembrei do meu primo Lazinho, em Ariranha, no interior de São Paulo, a cidade onde eu passava as férias durante a infância. Menor que Jaú, de onde vinha a família de Elvira, e que aparece meio camuflada no Assassinato de Bebê Martê – uma melancolia crepuscular que não tem matinê nem suco de tamarindo que resolvam.
Uma das ocupações do meu primo Lazinho, além de atuar como caixa e lanterninha do único cinema da cidade (do pai dele, meu tio Bruno), era dirigir um Fusca (ou seria um Corcel?) equipado com um megafone. No final da tarde, ele anunciava num tom monocórdio (não precisava se esforçar: era a sua natureza) a chegada de um circo, uma quermesse, a morte de alguém. Nesse caso, começava sempre assim: “Nota de falecimento.” E aí entrava uma Ave-Maria de Schubert tristíssima, meio desafinada (a fita do gravador era velha). E Lazinho falava do morto. Quem era, onde seria o enterro (não tinha muito mistério, havia um único cemitério na cidade). Com a música ao fundo, até o final. De cortar os pulsos.
Li o post e achei que fosse uma piada da Elvira. Uma pegadinha ácida, um modo de dizer que ela já não aguentava tudo que o país estava vivendo e que resolvia se retirar. Como se declarasse: “Pra mim, deu. Com licença.” E como corolário da decisão, mandava a filha postar uma “nota de falecimento”, já que ela, Elvira, abandonara o Facebook havia muito tempo, agora estava no Twitter.
Não era blague, era verdade. Carolina comunicava a morte da mãe. Que estava com câncer havia cinco anos, mas que escolhera não tornar pública a doença para não ficar estigmatizada e ser excluída da vida profissional, de mesas, lançamentos e festivais.
Nos últimos anos, nós nos vimos algumas vezes em cursos e conferências. Julguei, numa das ocasiões, que ela estivesse doente. Magra, pálida, com um cabelo que me pareceu peruca. Numa troca de e-mails logo depois desse encontro, comentei a respeito do novo livro dela e perguntei se ela estava fazendo quimioterapia. Ela respondeu falando do livro recém-lançado e ponto final.
A família anunciou que Elvira seria cremada e não haveria nenhuma cerimônia, por vontade dela. E que ninguém estava convidado. Era um momento íntimo. Arrisquei e perguntei inbox se eu podia ir, frisando que esperava da filha a mesma franqueza rascante da mãe. Pai e filhos deliberaram e concordaram com a minha presença. Porque era eu, disseram, porque a Elvira gostava muito de mim.
Era uma revelação. Porque era ela, porque era eu.
Crematório Horto da Paz, em Itapecerica da Serra, a 50 quilômetros da capital. Dia 12 de julho, uma quarta-feira fria de sol, céu límpido e muito azul. Um lugar bonito, muito arborizado, com palmeiras. Havia uma sala principal, emoldurada de dourado, cheia de gente. Afastadas desse salão, num canto, cinco pessoas me esperavam. O marido de Elvira, Roberto Lehmann; seus dois filhos, Carolina e David, e mais dois amigos da família.
Faltavam quinze minutos para as 11 da manhã. Uma moça uniformizada, com crachá da administração local, se aproximou e perguntou se podia dar início ao procedimento. Sim. E nós seis a seguimos por uma escada de poucos degraus e chegamos aos fundos do prédio, a um espaço que em geral é destinado aos serviços de manutenção, à casa das máquinas do elevador. Se fosse residencial, poderia ser uma lavanderia ou uma garagem.
Estávamos no cerne do edifício, face a face com a razão da existência daquele lugar: aquela área abrigava o forno. Grande, industrial, de aço inoxidável. Em frente às duas portas fechadas, sobre uma espécie de bandeja – como aquela que abrimos na impressora para que a folha impressa possa sair –, um caixão fechado. Elvira pedira uma cremação a mais simples que houvesse, nenhuma cerimônia, nada de música, zero ritual.
Um rapaz de macacão de operário, ao lado do forno, no controle de um dispositivo que parecia saído de filmes de espionagem da Guerra Fria, protegeu os olhos com uma viseira de soldador. A um sinal da moça da administração, ele virou uma chave; as portas se abriram o suficiente para permitir que o caixão deslizasse para dentro. Sem choro nem vela. Na lata.
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