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Uma linha que não fecha
Marília Garcia | Edição 131, Agosto 2017
HOLA, SPLEEN
um dia
ela me disse
“hola, spleen”
e eu demorei mas depois
percebi que era uma
frase sobre
o tempo.
talvez
um jeito de dar
as boas-vindas,
mas a gente nunca sabe
o que vem depois.
um dia quis ler em voz alta
um poema chamado
“hola, spleen”,
mas quando chegou a hora
fiquei totalmente
sem voz.
se tivesse gravado
o poema antes,
podia ligar a voz
e tocar em vez de ler,
mas eu não tinha
uma voz gravada
e não havia como produzir
voz.
então, combinei
que faria a leitura outro dia
e ainda faltava um mês
para chegar a leitura que vou chamar
aqui de caixa-preta
e eu não tinha ideia
de como eu estaria no dia da caixa-preta
e pensei que se este mês
seguisse o ritmo acelerado
e catastrófico deste e do último ano
tanta coisa já teria
acontecido hoje,
que me dava medo
imaginar.
assim,
esta voz que fala aqui
é a voz de uma marília de um mês atrás
é a minha voz falando a partir do passado,
é a minha voz,
mas sem controle.
há um mês eu não tinha
como prever nada
e eu fiquei me
perguntando:
– como fazer para essas palavras escritas
há um mês dizerem algo
sobre estar aqui
agora?
e eu não soube responder.
então, fiquei me perguntando
se hoje estaria chovendo
ou fazendo sol,
se faria frio ou não,
e se haveria poeira no ar.
eu sempre me surpreendo
com a poeira que turva a vista:
de repente no meio do dia
uma poeira que se ergue,
uma nuvem
de poeira,
pode ser a poeira vinda das coisas quebradas
todos os dias na vida das pessoas
e eu fiquei pensando
se estaria muito seco nesse dia ou não
e pensei que talvez a gente pudesse
fazer silêncio
e deixar a escuta aberta
para ouvir.
talvez a gente pudesse fazer silêncio
e de repente neste silêncio
acontecer de ouvir algo por detrás
dos ruídos das máquinas voadoras que
cruzam o céu.
talvez não desse para ouvir as máquinas voadoras
neste dia,
foi o que pensei,
mas eu me enganei
porque hoje
desde cedo
os helicópteros estão voando.
– vocês estão ouvindo?
um som infernal
estrelas caindo do céu
em cima da cabeça
com as pontas viradas
para baixo.
o som está cada vez mais perto,
posso encostar a mão
se me viro vejo a sombra
em câmera lenta
sobre a cabeça.
imaginem que isso aqui é um quadrado
com drones volantes,
ou uma cena congelada
com o céu cheio de zepelins,
mas o som é um só:
barulho de máquinas
voadoras
pelo céu.
se a gente prestar atenção e fizer silêncio
– se a gente prestar atenção e fizer
silêncio –
pode ser que ouça
alguma mensagem
perdida no ar.
UMA LINHA QUE NÃO FECHA
aqui o rio é verde, tem o mesmo tom do
gradil da ponte. um dia você
disse que a única coisa verde
dessa cidade
era o rio.
o resto,
disse,
só galho seco.
o resto não apaga, pensei,
e hoje quando cruzei a ponte
lembrei da sua voz
na gravação:
– é uma linha que nunca se fecha.
os anos vão passando
e a gente em cidades
diferentes –
quando vi o rio passando
lembrei dessa linha e do dia em que
nos conhecemos.
você sabe o que se diz para alguém
no primeiro encontro?, ele me disse:
– sabia que nessa cidade
quando chega o inverno
a grama entra em repouso?
eu poderia ter dito
– quer ver na ilha em frente
os emus australianos?
mas não disse nada, fiquei
muda olhando a grama em repouso.
ele usava 24 tons de verde
para desenhar, só não via do lado
de fora. quando lembro
dele, não penso no verde das telas.
só penso no buraco:
– como se apaga um buraco?
hoje quando fecho os olhos
penso naquela linha que não fecha
e no primeiro dia, quando ele
disse:
– você ainda vai me ver três vezes
antes do fim. fique atenta
aos sinais